Isaías Dalle

Tainá de Paula, secretária municipal do Ambiente e Clima da capital do Rio de Janeiro, nasceu e viveu na periferia e acredita que parte significativa das ações que a cidade precisa para sobreviver às mudanças climáticas também passa pelas periferias e favelas.

Arquiteta e urbanista, pós-graduada em Patrimônio Cultural e mãe da Aurora, Tainá foi eleita vereadora pelo PT. Dois anos depois, foi convidada a conceber e comandar uma nova política para as questões ambientais e climáticas da Cidade Maravilhosa. E isso envolve tantas outras questões políticas, se não todas.

Tainá sabe que o caminho é longo e não se esgota neste ciclo. Mas acredita firmemente que os passos que estão sendo dados serão transformadores e vão pavimentar o caminho, numa cidade que ainda não encontrou, de fato, um novo modelo que faça jus a todo o potencial que têm.

Acompanhe os principais trechos da entrevista:

Numa entrevista recente, você disse que o Rio não é uma cidade adaptável. Você comentava sobre mudanças climáticas e alterações que essas mudanças trarão ao desenho da cidade do Rio de Janeiro. Não é uma previsão um tanto sombria?

A gente está falando de uma cidade-metrópole, uma cidade que dialoga com setores da sociedade tão numerosos. Acho que é desafiador pensar nisso urbanos à luz das nossas grandes cidades, que não versam apenas sobre o Brasil, mas também sobre questões mundiais.

Não à toa que Rio, São Paulo, Salvador, Belo Horizonte, figuram aí como cidades de estudo, de diálogo internacional para os desafios do século XXI. E quando se fala de Rio de Janeiro é preciso dizer que a cidade que passou por um processo pós-escravista de desenvolvimento econômico e urbano do século XX sem dialogar sobre o seu desenvolvimentismo, as suas periferias e as suas favelas e que não resolveu, do ponto de vista pragmático, os seus problemas, os seus enclaves, as suas questões.

O Rio de Janeiro talvez tenha um dos maiores repertórios de projetos urbanos, de moradia, tanto pilotos como de larga escala, mas que ao longo deste mais de um século de debate de estratégias não conseguiu chegar a uma definição sobre o fato de que 25% do seu território ainda são áreas periféricas de grande vulnerabilidade socioambiental.

E 40% do território do Rio de Janeiro já passou por alguma crise climática ou alguma grande ocorrência climática que não se resolveu. Estou falando sobre deslizamentos, enchentes e, obviamente, desabamentos, desastres maiores, como recentemente a gente passou na minha Acari, no bairro de Acari, Jardim América e Pavuna. Eu estou falando das encostas mais íngremes, aquelas áreas de risco de que tradicionalmente a gente falou muito, debateu muito ao longo do século XX e não resolveu: remove ou não remove, realoca ou não realoca? Qual é a discussão qualificada teremo de alternativa à produção de moradia?

À luz da crise do morar, saímos de um grande ciclo de produção do Minha Casa Minha Vida, que inclusive foi promovido pelo governo lulopetista. E voltamos ao ciclo neste Lula 3 com os mesmos problemas, com as mesmas contradições colocadas. O que fazemos com o nosso déficit habitacional de risco? Como é que a gente fala das soluções baseadas na natureza? Como é que se naturaliza a perda dos nossos rios e lagoas? Só 6% da água como um todo, nossa água acessível, do lençol freático, estou falando dos nossos corpos hídricos, são de fato potáveis.

Porque o Rio de Janeiro perde a sua grande potência de pensar ser uma cidade protagonista de uma outra relação com o desenvolvimento.

No pós-pandemia tomamos um golpe das crises alimentar, hídrica, da falta de acesso à água, de recursos hídricos, de saneamento. Foi preciso ter um ponto de não-retorno. É preciso ter uma cidade cada vez mais responsável com o campo, com o alimento, com o modo de produzir. Porque a crise alimentar e a crise hídrica vêm aí.

É preciso neutralizar com mais árvores tudo o que se emite, o que se produz e o que se destrói. Há uma ideia de que se pode tudo na cidade, ser irresponsável do ponto de vista ambiental, porque aqui fica o desenvolvimento. É lá no campo, lá na floresta, os indígenas. Uma ideia romântica de distância dessa floresta que é quase a negação da floresta. No debate da preservação e das nossas prioridades ambientais, isso acabou.

Secretária, você falava de um século de caminhos equivocados na urbanização da cidade. Provavelmente se referia ao bota-abaixo do prefeito Pereira Passos em 1924. Realmente. E falou também de um ponto de não-retorno. Tem retorno? Há o que fazer? E esse mandato, essa gestão, tem algum projeto que possa dar início a isso?

Claro. Eu estou muito dedicada aqui no Rio de Janeiro a fazer dois movimentos. Como é que a gente diminui, por exemplo, a nossa escala de emissão de gases, que é algo que a gente está conseguindo produzir aqui na cidade, melhorando o nosso manejo de resíduo sólido, fazendo uma discussão de replantio em uma maior escala.

Isso tudo já se está tratando de fazer e traduzir em dados e projetos mais intensos. E na outra ponta, a agenda do simbólico, aquela que vai nos levar até 2030 e a que precisa nos guiar até 2050, que acho que são dois pontos chave cruciais para a gente disputar a agenda ambiental.

Falando primeiro de agenda concreta, eu estou muito empenhada em organizar o nosso cadastro de emissões. Quais são os grandes setores produtores de emissão de gases de efeito estufa na cidade? E aí eu já destaco dois. A gente tem o grande vilão, que é a indústria como um todo. Algumas refinarias e um setor industrial que ainda não fez a sua transição ecológica, energética. E temos feito acordos e termos de ajustamento de conduta para que essas empresas façam a sua transição ecológica até 2030 e até 2050, ou seja, implementado filtro nas suas turbinas, o projeto de reflorestamento numa lógica que é de obrigatoriedade.

Eu acho que a discussão ambiental na lógica do mercado de carbono é um caminho, mas precisa vir acompanhada de responsabilização, reparação ambiental, que não é algo que o mercado de carbono gosta de tocar. Na verdade, é o que a gente chama de a lavagem verde. Senão fazem algumas ações para inglês ver e está tudo pago, tudo resolvido. Não adianta nada você comprar o crédito e não ir diminuindo a sua emissão.

Compra uma indulgência e continua a cometer os mesmos pecados.

É a tal da medida compensatória que não compensa coisa nenhuma. Em outra chave, é importante falar do transporte. Eu entrei na secretaria com dois grandes problemas. O prefeito Eduardo Paes tinha acabado de fazer uma grande compra em ônibus. A gente tem aqui um sistema BRT que recebeu um grande investimento, inclusive do governo federal, e investiu no ônibus a diesel. Já estavam comprados. Eu falei: ‘Olha, vamos pelo menos fazer a compra de filtros e adaptar esses nossos ônibus’. E conseguimos adaptar essa leva de novos ônibus para dar conta da filtragem da emissão de gases que ele produz e, claro, colocar atrelados à contratação dos novos ônibus do Rio a partir de agora, todos eles a partir do combustível de energia limpa.

Na outra linha, como é que se acelera o reflorestamento do Rio? E o Rio de Janeiro tem um dado curioso que não é uma das cidades com menor capacidade de reflorestamento, não. A gente consegue dar conta de 40 a 45 hectares por ano, em média. Mas temos, por outro lado, uma capacidade de desmatamento muito grande, que chega a 100, 120 hectares por ano.

Ou seja, minha capacidade de reflorestar está com menor densidade em comparação à minha capacidade de desmatar. Então, estamos aumentando as florestas, implementando novas espécies, ampliando a capacidade de neutralizar os gases de efeito estufa das nossas florestas.

Temos as duas maiores florestas urbanas do mundo e toda a composição de matas, bosques que as acompanham: a floresta Nacional da Tijuca e o Parque Estadual da Pedra Branca. E, ao lado disso, estamos implementando a tecnologia que a gente antes só usava no campo, que é a inteligência artificial e a utilização de drones para construir florestas. Vamos dizer aqui no bom português, para todo mundo entender: florestas artificiais com plantio artificial, mas que se aceleram no tamanho da nossa pressa. A gente precisa ter mais árvores até 2030 e ainda mais até 2050. Não podemos esperar o plantio natural e o plantio mecânico dos nossos mutirões de reflorestamento.

Mecanismos como o de lançar sementes por drones, por exemplo?

Sim, é isso. É usar a inteligência artificial para indicar as espécies que faltam em determinados biomas, determinados bosques, pequenas florestas que já foram, inclusive, objeto de reflorestamento. Antigamente era muito comum adotarmos uma espécie, no máximo duas espécies, para o reflorestamento, porque a ideia era que ter sombra, verde, árvore, já era suficiente.

Queremos garantir que a gente tenha uma floresta secundária, uma flora, uma floresta densa daqui a cinco, dez anos, para de fato ter densidade vegetal, que é o que garante a minimização, a neutralização desse gás carbônico.

Qual é a meta de reflorestamento deste mandato?

A meta para 2030 é dobrar a capacidade de plantio, com 30 hectares por ano em 2022. No ano de 2023, quando eu assumi a secretaria, passamos a 45 hectares. Eu já quero em 2024 chegar a 70 hectares. E até 2030 a nossa meta no Plano de Desenvolvimento Sustentável do Rio é literalmente dobrar. Fazer chegar a 90 hectares por ano a capacidade de plantio. E aí a gente começa a acompanhar o desmatamento, que vem basicamente de três setores: construção civil, milícia e crescimento linear das favelas, dos territórios vulneráveis existentes. E este, hoje, é o menor componente. O que já foi uma preocupação ambiental no Rio de Janeiro nos anos 1960, 1970, quando a periferia cresceu de forma muito acelerada, hoje é um crescimento muito mais vertical do que horizontal da favela, da periferia. A nossa discussão são principalmente os territórios de loteamentos irregulares na franja entre Rio de Janeiro e Baixada, em áreas que são loteadas por uma milícia que migra dos seus serviços informais – gatonet, venda do gás – e passa a vender lotes. Essa é a nova dinâmica de ocupação territorial do Rio, nas franjas ambientais, áreas que não estão disponíveis de modo formal ao estoque imobiliário.

Existe uma crise da terra impulsionada por setores paramilitares narco milicianos que operam, a lógica da droga e do grande narcotráfico, mas também têm interesse na venda e na expropriação de determinados territórios. A disputa da terra ainda continua sendo uma grande questão no Brasil, inclusive na pauta ambiental.

Complementando um pouco a pergunta de como é que estamos atuando. Falei das frentes pragmáticas. Como é que se neutraliza o carbono, como dar conta dessa crise e qualificar melhor a atuação de proteção e conservação ambiental. Do outro lado, fazemos também algo muito estratégico, que é aumentar a a capacidade de debate ambiental na cidade. Ampliamos o nosso programa de educação ambiental criando dois eixos específicos voltados para as mulheres, principalmente para as mulheres negras de periferia, que são as Guardiãs das Matas. Elas fazem a discussão ambiental direto nos seus territórios, nas suas favelas, sem que seja algo estrangeirista, de gente educadora ambiental, que sai do asfalto, vai pra favela falar o que é crise ambiental, climática. Não. Temos uma gestora ambiental que é da favela.

É um projeto criado por sua gestão, em parceria com as pessoas que moram nas favelas, nas periferias?

Exato. Depois da COP, da última conferência do clima, e depois da discussão com o nosso governo, inclusive estamos preparando um piloto de nacionalizar essa ação em conjunto com o Ministério das Mulheres, formando mulheres de Norte a Sul do Brasil. É algo que, na minha opinião, é a chave do debate ambiental do século XXI, que, diferente do século XX, não conseguiu entrar na veia da realidade territorial de chão, dos rincões do Brasil.

E é muito desafiador ter mulheres que são as guardiãs naturais de seus territórios, as sacerdotisas, que literalmente guerreiam por sua proteção, formularem e forjarem políticas ambientais construídas ali, no chão.

Quantas guardiãs você já conseguiu trazer para esse projeto? E é também uma forma de complementar renda, certo?

Claro. Elas ganham [a primeira turma é composta de 125 guardiãs] uma bolsa-auxílio durante todo o processo de formação e depois elas passam por um processo de seleção. Passada a formação, têm acesso ao salário. Um outro programa muito inspirado e, na verdade, em continuidade ao diálogo das guardiãs, também na chave ambiental, mas ampliando para a escala global, são Jovens Negociadores pelo Clima, que discutem clima muito numa perspectiva de conectar outras periferias do Sul global e do Norte global. Também para fazer os debates sobre as periferias, inserindo uma discussão de que nós não vamos pagar a conta sozinhos.

Os jovens são os mais impactados pela crise climática. É muito importante falar de financiamento, é muito importante, hoje, territórios de favela, de periferia, estarem nas mesas de negociação. E aí eu fiquei superfeliz de ter sido a formuladora e a comunicadora entre uma periferia que até então não tinha voz e não participava dessas reflexões, levando uma delegação pela primeira vez das periferias do Rio de Janeiro para a última COP realizada lá em Dubai, em dezembro.

E lá na COP, você recebeu também alguma experiência que pode ser adaptada aqui para o país, para a cidade do Rio?

Estou muito encantada com as soluções locais, tanto da Índia quanto dos países do sul da África, no investimento que eles têm tido no resíduo, da produção em larga escala de lixo. De resíduo urbano, principalmente, que é algo que promove lixões clandestinos, numa escala que hoje está sendo cada vez mais global.

Isso também é uma realidade brasileira. Nós estamos importando lixo, que é muito mais barato enterrar. Além de trazer lixo para cá no navio, no container, enterram num terreno de uma periferia do Rio de Janeiro, numa periferia do Estado de São Paulo. As grandes corporações já estão fazendo isso. E aí, quando a gente começa a refletir sobre produzir melhor, precisamos fazer produtos recicláveis, reciclar, diminuir a quantidade de resíduo e pautar as cadeias produtivas.

É um ecossistema que começa desde o gerador, as grandes empresas, as grandes indústrias. Muito por conta desse meu diálogo, surge a iniciativa da Fábrica Verde. Aqui no Rio estamos construindo a primeira fábrica de economia circular do Estado do Rio de Janeiro, que transforma alguns setores do nosso resíduo em novos produtos e recondiciona diversos materiais para utilização em novos produtos.

Onde fica essa fábrica? Ela vai ter capacidade de produção em grande escala?

Na Avenida Brasil. E vai ter escala, sim. Nosso projeto é que dê conta de todos os nossos complexos de favelas, com um grau de prioridade. Entendemos o seguinte: quais são os territórios mais vulneráveis e mais sensíveis ao resíduo hoje? Então, acessar todos os territórios que têm lixão clandestino, como é que se garante esse ecossistema? Como é que melhora a qualidade desse ecossistema e territorial, garantindo a eliminação do lixão? A Cidade de Deus, a eliminação dos lixões da Rocinha, favelas que têm lixões. Como melhorar a coleta seletiva de bairros que são grandes geradores? Exemplo: o maior bairro que gera resíduo eletrônico hoje é Copacabana. Queremos garantir que 100% do lixo eletrônico de Copacabana vá para a Fábrica Verde e a gente consiga recondicionar. O Rio de Janeiro é uma cidade que não possui aterro sanitário, transporta o resíduo para outra cidade e paga para enterrar o lixo. Hoje gastamos, em média, cerca de R$ 2 bilhões por ano enterrando o lixo com o contrato de aterro. Sem contar o transporte, a gasolina.

Uma espécie de imperialismo do lixo, digamos.

Eu quero brincar de ficar viva aqui depois dessa nossa conversa. Eu já falei da milícia, da máfia de drogas e do extrativismo brasileiro, que têm interesses territoriais também, e estão aí espraiando os seus interesses econômicos. E agora cheguei na máfia do lixo, as mesmas empresas que invadem literalmente diversos municípios e fazem consórcios a partir de empresas “laranjas”, “fantasmas” e inviabilizam a lógica de participação do processo, tanto de catação, de coleta desse resíduo porta a porta e dos grandes geradores dos catadores, que são solução, na verdade, para muitos dos gargalos, mas são inviabilizados pelas grandes empresas de resíduos.

Por que é que inviabilizam? Porque conseguem entrar nas grandes licitações, cujas especificidades impedem que médias empresas ou cooperativas entrem de forma legítima e de forma equiparada aos grandes conglomerados.

Você tem projetos que já estão em implementação. Onde a cidade do Rio de Janeiro vai captar investimentos para isso. O PAC está na lista? O recém-lançado plano Nova Indústria? E aproveito e coloco uma segunda pergunta: como enfrentar as máfias que existem em mais de um ramo de atividades? Quem é que vai te ajudar?

Há uma primeira estratégia e talvez a mais importante. E é um dever de casa que eu tenho feito. Conscientização e educação ambiental não é algo menor. E aí eu falo da mudança de hábito. A gente pode achar que é pouco, mas todo mundo sabe que jogar lixo no chão, guimba de cigarro no chão, seja por uma multa municipal, seja por hábito, é ruim pelo comportamento, mas é também ruim do ponto de vista ambiental.

Todo mundo que encontra um animal silvestre sabe que ele tem um nível de proteção. Ele tem uma importância. Todo mundo que derruba uma árvore sabe que está cometendo um crime. Isso são extratos de processos de anos de massificação da pauta ambiental, do debate. E aí, quando há programas estratégicos como os Guardiãs da Mata, os Jovens Negociadores pelo Clima e outro que estabelecemos, os Guardiões dos Mares, para proteger os mangues, é muito importante produzir o movimento de educação ambiental, de aproximação das pessoas, do mangue, de aproximação do manguezal. Fizemos o contrato de educação ambiental com uma atriz que eu adoro, Tereza Seiblitz, que fez uma peça chamada Caranguejo, e que temos levado às escolas, aos atos de periferia, principalmente aquelas que têm manguezal, pra justamente discutir a importância do caranguejo, do mangue, da fauna e da flora e, claro, dos componentes que formam esse novo ideário da função do mangue na cidade do Rio de Janeiro. Assim deve-se fazer com tudo: um projeto de educação ambiental para o resíduo, um processo de educação ambiental para coleta seletiva. As favelas, as periferias, elas são educadas a sobreviver, a compreender que o espaço que habitam não é importante. Então o menor dos seus problemas vai ser o lixo.

Eu acho que a grande crise ambiental que a gente vive hoje está muito associada à ausência de uma educação ambiental mais robusta, mais cuidadosa e específica para cada realidade, para cada território.

Você e sua equipe estão construindo parcerias com a Secretaria de Educação? Pensaram em fazer excursões pelo patrimônio ambiental do Rio de Janeiro, levar as crianças de ônibus? Isso ainda existe? Quando eu era criança, tinha.

Existe. Fizemos aqui no Rio, todas as escolas municipais, em algum momento das suas férias, custeadas pelas secretarias de Habitação, de Educação e de Meio Ambiente, acessaram uma unidade de conservação perto do seu bairro. E aí pode ser algo tolo, mas é importante falar que eu sou uma mulher que veio da Praça Seca, de uma favela chamada Loteamento, ou seja, nem tinha nome, e só fui acessar uma floresta, uma unidade de conservação, com praticamente 18 anos de idade, na minha maioridade. Ir à Floresta da Tijuca, a uma unidade de conservação com equipamentos ambientais, com guia, com educação ambiental, com atividades ao ar livre, é um processo de construção. É o que a gente precisa cada vez mais naturalizar para as nossas crianças.

Você me provocou assim: “como é que o nosso governo está chegando junto”. Eu tenho batido muito nessa tecla junto à ministra Marina Silva e ao Ministério das Cidades. E acho que o PAC pode ajudar muito nisso. Como é que que se criam projetos estratégicos, continuados para as áreas de crise ambiental? A rede de drenagem de 15 anos atrás já não dá conta da precipitação do hoje. É preciso readaptar inclusive os projetos de adaptação já feitos 15 anos atrás. As chuvas de 30, 50 anos atrás, tinham um volume pluviométrico que acontece agora de dois em dois anos. É preciso estar com o orçamento para lidar com a crise, para lidar com problema, para lidar com as perdas e danos que são anuais.

Algo que eu tenho provocado muito no governo é que se não se estimula um fundo climático de perdas e danos que dê conta das capitais que são diretamente atingidas pela crise climática, não é possível dar conta de adaptá-las ao longo do ano. Só se dá conta da crise, enxugando gelo.

Existe hoje a perspectiva de que cuidar do meio ambiente possa ser um bom investimento. Isso faz sentido? A reconstrução do Rio de Janeiro não pode ser uma grande oportunidade para reaquecer a economia? Os empresários estão de olho nisso?

Acho que sim. Mas ao mesmo tempo há uma grande contradição. Pensar o desenvolvimento sustentável é automaticamente algo superinteressante do ponto de vista econômico. Mas estamos falando do capitalismo, que não necessariamente está interessado no desenvolvimento econômico e sustentável de uma cidade, de um Estado como o Rio de Janeiro, que é periferia global, onde as sedes das grandes empresas de quem realmente importa não estão. Ou seja, as elites econômicas, produtivas, o grande capital financeiro não estão nessa periferia global. O que importa a qualidade ambiental, já que eu não estou lá?

Mas e o capital nacional? Não tem interesse?

É por isso que o Lula lançou o pacote da Nova Indústria. Aí eu estou muito casada, fechada com o lulismo, nesse debate.

Você está elogiando um projeto do ministro da Indústria e vice-presidente Geraldo Alckmin.

O Geraldo é essa coisa, esse chuchu maravilhoso. Brincadeiras à parte, o Geraldo Alckmin, neste momento, o que ele quer? Uma indústria nacional. Ele quer o desenvolvimentismo clássico do presidente Lula, associado a uma pauta de transição ecológica, de transição energética do século XXI. Essa mistura se mete entre a alquimia, entre o capital produtivo que, na minha opinião, precisa ser reconstruída totalmente desse ecossistema de Brasil.

Hoje a gente tem mais capital rentista que capital produtivo. Precisamos dos capitalistas produtivos, aqueles que querem produzir, ter a classe trabalhadora junto e querem avançar. Esses são raríssimos e quase inexistentes. É preciso que tenha intervenção do Estado para promover esse tipo de capital.

Por isso, esse pacote para uma nova indústria, ambiental e socialmente referenciada, é fundamental. No outro sentido, a coisa não vai sozinha, né? E aí, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com investimento tanto na infraestrutura e logística. Eu quero empresas ambientalmente responsáveis nos bairros, mas é preciso que este bairro que vai receber a indústria brasileira ambientalmente referenciada tenha estrutura em parte de logística, com infraestrutura limpa, que tenha saneamento básico garantido nesse bairro. E aí entram o desenvolvimento das cidades, a agenda do Ministério das Cidades, a da indústria, que precisam andar muito casadas, e talvez seja algo que a gente não tenha conseguido fazer. Nem Lula 2 e nem o Dilma 1 e 2.

E eu queria repetir a pergunta sobre segurança, porque existem máfias e infelizmente não dá pra pensar essas coisas sem falar disso. A Secretaria de Segurança tem te apoiado de forma consistente?

Temos uma parceria multifuncional que pega o Ministério Público, as áreas de inteligência da Polícia Civil, Militar, mas é algo muito sensível. Aqui no Rio de Janeiro tivemos a preocupação de ter um coronel liberado para dar conta da patrulha e defesa ambiental, porque, fundamentalmente, lidar com defesa ambiental no Rio é dialogar diariamente com os territórios de milícia, os territórios de tráfico. Não tem muito jeito de a gente não fazer esse tipo de debate, de enfrentamento paralelo a isso. E o governo federal, na figura do nosso então ministro Flávio Dino, estabeleceu uma cooperação com a Prefeitura do Rio, para manter uma inteligência comum, principalmente focando no monitoramento da expansão urbana, da atuação das milícias e do tráfico.

Temos praticamente 70% dos nossos territórios ocupados por milícia e apenas 30% dos territórios ocupados por tráfico. Isso é uma inversão muito significativa do tipo de controle que existente, que é a milícia.

Elas estabelecem uma dinâmica de venda também do território. A venda do lote, a venda do apartamento, da casa, é parte fundamental da renda geral desta operação da milícia, frente à escala que se consegue alcançar vendendo um apartamento de R$ 200 mil, de 400 mil em áreas ocupadas por milícias.

E é uma estratégia de ocupação de território também.

Vamos falar claro. Eu crio novos territórios de atuação, não só de atuação, de presença, mas também de controle. Se eu crio novos bairros, eu crio novas prefeituras da milícia, novos acordos da milícia. É onde esses territórios ganham força. O prefeito Eduardo Paes tem sido muito taxativo, muito contundente nessa atuação.

Na minha opinião, dos problemas mais difíceis aqui do Rio, eu posicionaria a milícia em primeiro. Em segundo lugar, eu posicionaria a crise climática. Em terceiro lugar, a dificuldade de geração de emprego e renda e de desenvolvimento econômico do Rio.

Mas você acredita que as medidas que estão sendo construídas apontam um bom rumo? Está otimista com a superação desses problemas?

Não no curto prazo. Em se tratando de Rio de Janeiro, eu vejo, claro, a necessidade cada vez maior de uma incidência do governo federal. Não sou favorável a uma intervenção federal, mas gostaria muito de um posto avançado da inteligência no Rio de Janeiro. Eu acho que a Polícia Federal precisa lidar mais diretamente, mais frontalmente com a milícia. O Rio de Janeiro precisa de um olhar atento do governo federal.

O rumo político que o Estado do Rio de Janeiro tomou não se desconstruiu e não está diferente, passando por toda a tragédia da conjuntura política dos últimos 20 anos. Nesse sentido, eu desacredito em algum arranjo, algum enfrentamento de fato.

O que eu acredito é que é fundamental nós construirmos uma massa política em 2026 que retire esse espectro político que está no poder hoje e volte a ter uma corregedoria que consiga fazer uma limpa do ponto de vista institucional, nas principais cabeças da corporação da Polícia Militar e da Polícia Civil do Estado.

O Rio de Janeiro confundiu a tal ponto a sua política e o crime que, na minha opinião, hoje é tudo a mesma coisa. Então, acho que se a gente não der uma varrida nesse cenário político, continua nesse ciclo vicioso de não ter para onde correr quando o assunto é milícia, quando o assunto é crime organizado.

Você quer acrescentar alguma coisa?

Ah, eu quero. O que eu quero fazer é um chamado, uma convocação para que a gente continue acompanhando o Reconexão Periferias, que, na minha opinião, foi uma das iniciativas mais potentes do nosso campo, mais potentes dos nossos setores do Partido dos Trabalhadores, pois reúne uma série de figuras que estão, na perspectiva de refletir a esquerda, de discutir os processos dos diversos Brasis que a gente tem, com uma meta, um desafio muito claro de transformar e de pensar uma outra sociedade cada vez mais comum, mais diversa e mais justa. Então, de cara, agradeço aí aos nossos acadêmicos, mas aqueles que negam o dogmatismo da universidade, que constroem no chão das nossas realidades, os nossos saberes, nossos fazeres e esses futuros possíveis. Eu sou talvez romântica, mas eu confio muito concretamente na possibilidade de construir um outro Brasil, um outro futuro.

Esta entrevista pode ser assistida na íntegra no canal do Youtube da Fundação Perseu Abramo.