Rose Silva
O sociólogo e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro José Cláudio Souza Alves se dedica há mais de 30 anos a pesquisar o surgimento e o crescimento das milícias brasileiras, especialmente as que atuam na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro.

Autor do livro Dos Barões ao Extermínio: Uma história da violência na Baixada Fluminense, ele falou ao programa Reconexão Periferias sobre as relações entre os três principais grupos armados que atuam nas regiões periféricas: a milícia, o narcotráfico e o jogo do bicho. Ele afirma que a questão fundiária nada mais é do que a porta de entrada das milícias no território.

Sobre a esperança de um Rio de Janeiro livre da opressão miliciana, diz: “Para mudar significativamente essa dinâmica das milícias, é preciso fazer uma atuação política, não há outro caminho. Essa coisa de fazer reformas na polícia, criar projetos, trazer a Polícia Federal para investigar tudo isso não tem expressão. A estrutura é eminentemente política. Quando um governador como o Cláudio Castro manda para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro uma mensagem dizendo que vai destinar para os deputados estaduais 4,5 bilhões de reais para que eles distribuam aonde eles quiserem. E aí esses deputados estaduais indicam o novo secretário da Polícia Civil do Rio de Janeiro (isso foi no final do ano passado), mudando a Lei Orgânica das Polícias Civis, colocam uma pessoa que não tinha 15 anos como delegado. E aí autorizam essa jogada. Está certo que esses deputados estaduais querem botar a mão nesse dinheiro. Para ter um membro e chefe dessa estrutura, o novo secretário de Polícia Civil, controlado por eles, para distribuir esses recursos. E o deputado estadual que indicou o nome desse novo secretário da Polícia Civil é absolutamente comprometido com a estrutura miliciana lá no município onde ele atua”. Acompanhe:


Como surgiram as milícias que hoje dominam vários territórios periféricos no Rio de Janeiro?

Para meus estudos, eu remonto um período muito mais antigo do que normalmente se ouve falar, dato as milícias do período em que surgem os grupos de extermínio aqui na Baixada Fluminense, no final dos anos 60. Digo que vêm dos grupos de extermínio porque eu identifico cinco grandes elementos que fazem a conexão entre essas duas realidades. Primeiro, muitos de seus membros são servidores públicos, membros do Estado, policiais civis, militares, bombeiros, pessoas que têm trajetória dentro da estrutura de segurança pública. Segundo, são especialistas em provocar danos à vida alheia. Porque a estrutura de segurança pública é treinada para fazer operações, matar, ferir e torturar pessoas. Essa é uma prática disseminada na estrutura de segurança pública no Rio de Janeiro e no Brasil como um todo. O terceiro grande elemento: só estabelecem relações a partir de um controle territorial armado. O quarto: recebem financiamento de empresas e comerciantes para controle desses territórios de acordo com os interesses econômicos desses grupos. E o último ponto comum que eu sempre identifiquei é que tanto os matadores de grupo de extermínio como os milicianos têm trajetória política de sucesso. São candidatos, se elegem e vão assim transformar-se em personalidades políticas. A milícia evoluiu, enquanto os grupos de extermínio permaneciam e permanecem há muito focados em assassinatos por aluguel e cobrança de taxa de segurança. A milícia continua matando e também cobrando da segurança. Só que foi para um leque muito maior de negócios ilegais:venda de água, gás, luz, gatonet e transporte clandestino. Vão vender terrenos, aterros para colocar nesses terrenos lixo clandestino, combustível adulterado. A milícia trabalha com uma espécie de dimensão urbana humanizadora, de acordo com os seus múltiplos interesses de serviços e de bens que operam nessas áreas.

Como é que isso afeta a vida da população?

Eles estabelecem um controle territorial armado e vão começar a regular as relações dentro desse território. Então, cobram taxa de segurança, têm o monopólio dos bens que sejam vendidos ali. Garis, água, cesta básica também. Fazem empréstimo de dinheiro como agiotas. Quando você se insere nesses serviços todos, se não pagar ou atrasar pagamentos, vai sofrer sanções. Se disser que não vai pagar a taxa de segurança que eles cobram, muitas vezes altíssima, vai sofrer as consequências, que normalmente são violentas. Podem ameaçar, ferir, matar, ou seja, é todo um universo regulado pela estrutura de um grupo armado. Outra grande consequência, por exemplo, em anos eleitorais eles controlam a estrutura de votos daquela região. Só entram ali os candidatos que eles autorizam, controlam quem pode fazer campanha. Os que eles não autorizarem, com quem não fizerem acordos, não vão conseguir entrar, serão ameaçados e poderão ser vitimados. Outro elemento da questão política são os eleitores. Eles vão ter de votar naqueles indicados. Então eles controlam as duas partes desse processo e aí quem vota é obrigado a votar nos candidatos indicados pela milícia. Ou seja, essa estrutura econômica e política de controle territorial se impõe sobre as pessoas e qualquer grupo ou pessoa. Quem tiver interesses diferentes, dissonantes, que rompam com esses acordos, vai sofrer ameaças e consequências. Em muitos casos são mortes, atentados que vão ocorrer em função dessa discordância. É assim o terror que os milicianos praticam nessas áreas como um todo.

Como foi que se deu a relação entre a milícia e o tráfico?

Normalmente é uma relação mais complexa. Primeiro, a milícia sempre teve relação com o tráfico de drogas. É um mito dizer que combatia o tráfico, nunca foi verdade. A droga é uma mercadoria muito valiosa, por isso todos os grupos armados têm interesse, pois movimenta uma economia significativa dentro desses universos territoriais, e é algo que não pode ser desprezado, que dá muito poder, porque quanto mais dinheiro você tem, mais poder de controle, mais armas. Então o tráfico de drogas é algo essencial. Outra grana muito poderosa e forte é a que vem do jogo do bicho, outra estrutura de grupo armado que tem muito dinheiro e atua de forma superviolenta. Milicianos sempre fizeram acordos e, neles, historicamente, fazem negócios com uma facção específica, que é o Terceiro Comando Puro. Estou falando aqui do Rio de Janeiro. Se você for para São Paulo, há outra configuração do tráfico, e assim vai pelo Brasil afora. Vai depender do histórico de grupos armados, de traficantes, milicianos. No caso específico do Rio, a milícia faz acordos contra o Comando Vermelho, que é uma facção histórica desde o início e uma das fundadoras do sistema de facções dentro do tráfico. Normalmente é uma aliança da milícia e do Terceiro Comando Puro para impedir e diminuir o peso da presença do Comando Vermelho, que tem outros interesses. É claro que tem territórios com outra configuração. Por exemplo, tem uma comunidade lá em Nova Iguaçu chamada Quilômetro 32. O Terceiro Comando lá não faz acordo com os grupos milicianos, historicamente se confronta ele. Já em outras regiões da Zona Oeste do Rio, Terreirão, Recreio dos Bandeirantes e algumas áreas de Jacarepaguá, já se assistiram recentemente algumas alianças entre a milícia e o Comando Vermelho. Mas isso é muito localizado e pontual.

Marielle Franco foi assassinada devido a um projeto que envolvia a milícia. Fale um pouco sobre isso e a questão fundiária.

A milícia está relacionada à ocupação humana em determinado território. Então, a questão fundiária nada mais é do que a porta de entrada no território. Você precisa estar assentado, de posse e usufruto daquele território para estar ali. E isso para a milícia é a chave do negócio. A terra é o primeiro passo. Depois dela vai vir construção de imóveis, aterro para colocar naquele solo, toda uma lógica de empreendedorismo, de investimento em construção de materiais de mão de obra, de serviços em que estão essas construções. E tudo o que vai acompanhar aquela ocupação humana, gás, água, luz, coleta de lixo, começa a ser regulado pela estrutura milícia, transporte de pessoas, acesso a áreas de lazer. E cobrança de taxa de segurança para os comerciantes, ou seja, o confronto no qual Marielle está envolvido não é só de terras. É um confronto de um universo infinito de possibilidades, porque existe um grupo grande de populações que estão migrando, que buscam habitação, que querem sair do aluguel, e quando conseguem um imóvel e não pagam mais aluguel, a vida da família muda absolutamente. Por isso que as famílias buscam comprar, a partir da estrutura miliciana, os terrenos e os imóveis para saírem desse gasto tão pesado e conseguir investir em outras áreas. Marielle não percebeu de fato o jogo de interesses. Ela conhecia os nomes (Domingos e Chiquinho Brazão). Dois deles já tinham sido citados lá na CPI das milícias, em 2008. Ela fazia parte da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, e a pasta acompanhou a relatoria do Marcelo Freixo, então deputado estadual. Quando ele fez o acompanhamento da CPI das milícias, ela sabia desses homens. Só que dez anos depois eles não eram mais aqueles mesmos que estavam lá no processo de 2008. Já tinham outros interesses, com muito mais poder, com toda uma estrutura de avanços. Isso tudo que eu falei até agora aqui, várias áreas que davam dinheiro, voto, projeção, poder. Um deles do Tribunal de Contas do Estado. Imagine, um cara que já se projetou numa outra dinâmica. O outro é deputado federal. Eu acho que ela não pensou, ela não percebeu.

Você começou falando sobre agentes do Estado milicianos, dentro da polícia, do sistema de segurança. Existem pessoas que se opõem a isso dentro da polícia?

Nem todos os que estão na estrutura miliciana são de dentro do Estado. Hoje existe uma variação, são grupos civis que vêm para dentro da milícia. Isso não significa que a milícia não tenha as suas dimensões, conexões, suporte e apoio dentro da estrutura do Estado. Em relação à estrutura policial, nem todos estão envolvidos, é claro, na estrutura miliciana. Há os grupos que não vão se envolver em uma dinâmica criminal e participar de extorsão, ameaçar pessoas. A pergunta é: esses que não estão envolvidos, de que forma podem atuar em relação à estrutura miliciana? Lá onde estão trabalhando, eles têm capacidade de se contrapor e de reduzir a atuação desses grupos ou provocar algum tipo de impedimento ou dificuldade? O que a gente vê normalmente é que não. Esses policiais querem ter uma boa conduta e vão ter na medida do possível. Mas as limitações de uma boa conduta em uma instituição comprometida é muito relativa. Pelo que eu vejo, há muita dificuldade de fazer qualquer modificação desse cenário nas áreas onde a milícia está atuando. Pode haver áreas específicas dentro da estrutura de segurança pública que não são afetadas pela aquela dimensão miliciana. Já tive contato com o pessoal, por exemplo, das perícias. São peritos que fazem perícia de cenas de crime, coisas desse tipo. Homicídios. E é um grupo, parece que tem uma uma capacidade muito autônoma, mas não tanto. Eles hoje lutam para que a perícia não seja vinculada à estrutura de segurança pública e possa ter autonomia em termos institucionais para atuar independente da estrutura de segurança. Porque eles sofrem pressão, é óbvio.

A flexibilização da lei aumentou o número de armas em poder das milícias?

Isso agravou a situação do Rio de Janeiro, do Brasil como um todo, porque aí as pessoas podiam se armar com mais facilidade. Então, com certeza houve um derrame de aproximadamente 1 milhão de armas no Brasil nesse período. Um milhão de armas a mais circulando num país como o nosso é uma loucura. Quem são os grupos que estão acessando? Houve crescimento exponencial, alucinado de Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs), grupos que foram sendo estimulados e montados no Brasil. A partir desses CACs, criou-se um acesso àquilo que se comprava antes por um preço muito alto, importado em mercados externos. O Brasil começou a vender com preços muito mais baixos dentro do próprio país. Tudo legalizado, com acesso muito mais fácil e rápido. Isso potencializou muito essa estrutura armada, e na mão de quem? Acho que chega a quase duas mil pessoas que receberam armas e tinham passagem pela estrutura policial, tinham sido indiciados, estavam respondendo a crimes na Justiça. E quem fiscaliza a ida dessas armas para as pessoas no Brasil são as Forças Armadas, o Exército Brasileiro. Quem compra, quem tem porte, quem vai usar, ele que deveria controlar isso. Não fez de forma alguma o seu trabalho e deixou que quase duas mil pessoas que têm comprometimentos com a estrutura da Justiça tivessem acesso a essas armas. Mas para controlar isso você tem de se dispor. Normalmente são grupos de classe média alta, que têm muito poder aquisitivo, que vão armar os seus seguranças, seus capangas, os jagunços. Essa estrutura toda está montada dessa forma. Vários donos do agronegócio, coronéis, latifundiários, donos de mineradoras, vários grupos, toda aquela estrutura de mineração lá em Roraima matando e destruindo a vida do ser humano é montada no ciclo de grupos armados de mineradores. Você vai confrontar essa estrutura, você vai tirar arma deles? O Exército nem faz as operações simples e básicas que deveria fazer lá em Roraima para proteger os Yanomami. Não leva medicamento, alimentação.

Existe esperança de construir territórios livres da atuação das milícias no Rio?

Para mudar significativamente essa dinâmica das milícias, é preciso fazer uma atuação política, não há outro caminho. Essa coisa de fazer reformas na polícia, criar projetos, trazer a Polícia Federal para investigar tudo isso não tem expressão. A estrutura é eminentemente política. Quando um governador como o Cláudio Castro manda para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro uma mensagem dizendo que vai destinar para os deputados estaduais 4,5 bilhões de reais para que eles distribuam aonde eles quiserem. E aí esses deputados estaduais indicam o novo secretário da Polícia Civil do Rio de Janeiro (isso foi no final do ano passado), mudando a Lei Orgânica das Polícias Civis, colocam uma pessoa que não tinha 15 anos como delegado. E aí autorizam essa jogada. Está certo que esses deputados estaduais querem botar a mão nesse dinheiro. Para ter um membro e chefe dessa estrutura, o novo secretário de Polícia Civil, controlado por eles, para distribuir esses recursos. E o deputado estadual que indicou o nome desse novo secretário da Polícia Civil é absolutamente comprometido com a estrutura miliciana lá no município onde ele atua, inclusive, ele foi o deputado estadual mais votado do Rio de Janeiro. São estruturas de muito poder. O governo do estado está envolvido, os deputados estaduais e agora vereadores e prefeitos nos municípios estarão envolvidos nessa estrutura onde as milícias atuam, onde tem recurso, tem grana, tem poder. Para o governo Lula modificar isso e fazer alguma ação não será só indicando quem matou Marielle. Essa estrutura normalmente não busca matar pessoas tipo Marielle. Eles matam gente de muito menor significado na sociedade e eles vão corrompendo tudo para conseguir grana, voto e manutenção do seu poder. Então você tem uma estrutura legal funcionando por dentro do governo do Estado, dentro das prefeituras, com uma atuação de grupos armados controlando o território. Se analisarmos tudo isso, nós vamos dizer que é preciso fazer uma ação muito mais prudente, muito mais forte. Com 40 dias de Operação Escudo, lá, com Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, se produziram 28 mortos. E com a Operação Verão foi mais um tanto e vamos chegar agora a 70 mortes na Baixada Santista. Por que o Ministério de Direitos Humanos não põe uma comissão de legistas para levantar o laudo cadavérico desses 70 mortos para provar se foram execuções sumárias ou não? Por que não quer confrontar essa estrutura de execução sumária que o Estado está estabelecendo lá em São Paulo? Está interessado nos votos da estrutura do poder político paulista e carioca e fluminense lá no Congresso para aprovar os seus projetos? Você tem de enfrentar, tem de confrontar.