A pesquisa Chacinas e a Politização das Mortes no Brasil, realizada no âmbito do projeto Reconexão Periferias, da Fundação Perseu Abramo, teve início em 2018. A princípio, foi voltada para realização de um mapeamento de casos de chacina, utilizando como fonte de dados notícias de jornal, disponíveis online.

O objetivo inicial era a cobertura de dez anos de casos noticiados, no entanto, o período foi estendido para doze anos, a fim de cobrir de 2011 a 2022. Para além das chacinas cujas motivações estavam relacionadas a conflitos que já havíamos identificado, como massacres que ocorrem por disputa de terra e recursos naturais; práticas de policiamento, como operações e abordagens, ou ainda a atuação desses mesmos agentes fora de serviço, como é o caso de chacinas praticadas por grupos de extermínio e milícias; também estavam marcados em nossa memória coletiva os massacres ocorridos em presídios, fruto das condições e da própria dinâmica de extermínio planejada e executada a partir da escolha política e social – com viés racial – pelo encarceramento em massa. No entanto, com o desenrolar dessa primeira fase de levantamento dos casos, identificamos uma motivação até então ocultada em meio a notícias de chacinas cometidas por agentes de segurança do Estado, por grupos que atuam em mercados ilegais em disputa: aquelas motivadas por violência de gênero contra a mulher.

Uma vez que deparamos com casos de chacinas apresentados nas notícias como crimes passionais, tivemos de fazer uma escolha política de como incluir a classificação desses casos em nosso banco de dados. Assim, optamos por categorizar essas ocorrências como “feminicídio e casos associados”, mesmo quando publicamente divulgados como “crime passional”, por entender que este não é um crime previsto no Código Penal, além de ser usado como maneira de diminuir e/ou justificar casos de violência doméstica e feminicídio. O crime que supostamente estaria relacionado à paixão foi muito utilizado por advogados de defesa como forma de reduzir a pena dos acusados.

Nos últimos anos, tem-se seguido a tendência punitivista como forma de combate à violência de gênero, prezando por medidas como privação de liberdade, atualizando sempre que possível o aumento da pena como demonstração de medidas eficientes. Mas elas são eficientes naquilo a que se propõem? Quais os efeitos de recorrer ao poder punitivo estatal sobre a diminuição da violência contra a mulher? Como a criação de um novo tipo penal repercute na vida de pessoas racializadas como negras? Principalmente aquelas que vivem em territórios sob intensa atividade de práticas de policiamento racialmente enviesadas, marcadas pelo uso de violência extrema, que tantas vezes culmina em chacinas.

Os casos levantados tiveram como motivação apresentada a separação da vítima do agressor; ciúmes; casos com alto teor misógino, inclusive registrados em memória por meio de cartas, áudios, entre outros deixados pelos próprios agressores; extermínio de familiares diretos ou próximos da vítima; casos que revelam premeditação e, em diversos deles, o suicídio do agressor foi o desfecho. Há também aqueles com característica de execução, assassinatos premeditados, encomendados, que envolvem normalmente um número maior de agressores, ações executadas em grupo.
Nesses, há uma tendência de os agressores não conhecerem as vítimas, o que se distancia da maioria das ocorrências de feminicídio. Ainda assim, essas execuções carregam fortes elementos que indicam violência de gênero, e ocorrem em locais como casas de prostituição; há casos em que as vítimas foram executadas com roupas íntimas em via pública; e com violência sexual praticados contra mulheres gestantes. A princípio foram identificados três padrões presentes: o traço de execução, o parricídio e a separação/ciúmes (TOLEDO; ROMIO, 2019).

Mais recentemente, com o Painel de Dados das Periferias1 publicado, onde disponibilizamos os 10 anos de casos de chacina coletados (2011 a 2020), conseguimos apresentar parte das características do contextos em que ocorre o assassinato de mulheres em chacinas, o perfil daquelas que são vitimadas, elementos que nos ajudam a pensar essa relação entre o feminicídio e as chacinas, que tantas vezes são atreladas no imaginário social comum a práticas de policiamento, conflitos entre grupos armados, disputas por terra, água, energia eólica, enfim, um amplo leque em que há associação direta com a execução de várias pessoas em um mesmo local ou intervalo de tempo. O caso dos feminicídios e as chacinas com vítimas mulheres, mas que foram publicizadas com outras motivações, nos ajudam a pensar o amplo alcance das violências de gênero e os diversos contextos em que elas se manifestam, sempre marcadas por um atrelamento à violência racial, que seguem submetendo mulheres negras a uma sobrevitimização geral.
No período de 2011 a 2020, foram levantados 42 casos de chacina com motivação de feminicídio por meio das notícias, em todos os anos. Em 2011, chamam a atenção oito casos de feminicídio, ano em que ocorreu o Massacre de Realengo, um dos mais emblemáticos sobre os quais nos debruçamos no caderno Chacinas e Feminicídios: os casos de Realengo e Campinas. Os anos de 2013 e 2017 também chamam atenção com seis casos de feminicídio cada: a emblemática Chacina de Campinas2, também apresentada no caderno, ocorreu em 2017.

Identificamos chacinas com outras motivações que também vitimaram 405 mulheres. Podemos perceber que há uma grande quantidade de mulheres sendo assassinadas em conflitos e disputas que não seguem o padrão de feminicídio, muitas vezes ocorridas em abordagens e operações policiais, atuação de grupos de extermínio e milícias; ou em meios a disputas por terra ou de grupos armados.
Destaca-se a tendência de crescimento nos últimos anos das mulheres vitimadas em chacinas que foram noticiadas como motivadas por outros conflitos. Enquanto a quantidade de mulheres vitimadas em casos de feminicídio parece ter sido reduzida a partir de 2018, as vitimadas em chacinas seguem aumentando. Isso chama a nossa atenção para a discussão sobre como a definição de feminicídio e violência de gênero restrita ao âmbito familiar e doméstico não dá conta da forma como essas violências se manifestam em outros contextos, que também carregam traços de misoginia na forma como as vítimas são executadas. No entanto, a violência de gênero é ofuscada nos discursos pelo foco em outros conflitos que se sobrepõem – como é o caso de mulheres que morrem em operações policiais, às vezes com traços de violência sexual, e quando a motivação apresentada para a morte é ligada a práticas de policiamento. A relação entre esses contextos de militarização e as violências de gênero ficam submersas.