Rose Silva

Após mais de um ano da expulsão de Bolsonaro da Presidência da República pela força do voto popular, as brasileiras ainda amargam os efeitos nefastos da destruição das políticas de proteção aos direitos e dos equipamentos públicos perpetrada por ele. E sentem literalmente na pele a violência que ele disseminava em seus discursos misóginos no Brasil, que é quinto país do mundo em assassinato de mulheres e apresenta dados estarrecedores sobre estupro.

A secretária Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher do Ministério das Mulheres, Denise Motta Dau, aceitou o gigante desafio de assumir a pasta criada para melhorar os indicadores de violência de gênero, que se agravaram progressivamente nos últimos anos. “Em 2020 o Brasil teve 3.913 assassinatos de mulheres , dos quais 1350 foram registrados como feminicídios. Em 2023 o Brasil teve 1463 feminicídios. Dados estarrecedores do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que 61% das vítimas de estupro têm no máximo 13 anos, 10% possuem de 0 a 4 anos, são bebês, 17% têm de cinco a nove anos e 33% são meninas de 10 a 13 anos”, afirma ela.

Nessa entrevista concedida à revista Reconexão Periferias, a secretária fala sobre o recém-lançado Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios, que visa prevenir todas as formas de discriminação, misoginia e violência de gênero contra mulheres e meninas por meio de ações governamentais intersetoriais, entre outros desafios do Ministério.

Graduada em Serviço Social e Mestra em Saúde Pública, ela atuou como secretária sub-regional da ISP – Internacional de Serviços Públicos, dirigiu o Departamento de Gestão e da Regulação do Trabalho, do Ministério da Saúde, foi Secretária Municipal de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo no governo de Fernando Haddad e integrou o Conselho Editorial da Fundação Perseu Abramo.

Como foi para a senhora ser convidada para assumir a Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, do Ministério das Mulheres?

Foi um desafio enorme e recebi com alegria o convite da ministra Cida Gonçalves, que tem uma vasta experiência na área de gestão de políticas públicas para as mulheres e que assumiu pela primeira vez como ministra. Porém, fiquei preocupada com o desafio diante da necessidade de reconstrução de políticas públicas que foram desmontadas no último período no nosso país e que afetam fortemente as condições de vida e de trabalho das mulheres como um todo, mas, em especial, as diversas violências que as mulheres sofrem.

A senhora já foi secretária de Políticas para Mulheres da cidade de São Paulo anteriormente. Eu acredito que isso lhe tenha dado uma ampla experiência e conhecimento sobre os desafios das políticas para as mulheres. Quais foram os principais avanços e os retrocessos desde lá?

Estar à frente de uma secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres me deu algumas experiências, ainda mais em uma cidade como São Paulo, que já tinha uma história de coordenação de políticas para as mulheres, criada na gestão da então prefeita Marta Suplicy. Na gestão do prefeito Fernando Haddad, finalmente São Paulo passou a ter uma secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres. Em primeiro lugar, quando a gente está no município, faz muita diferença ter uma secretaria estadual ou uma secretaria em nível federal abrindo editais para a construção de centros de referência da mulher, para equipagem desses locais, capacitação e formação política das mulheres nas diversas áreas, formação profissional, formação em políticas públicas. Eu tive a oportunidade de usufruir, em benefício das mulheres da cidade de São Paulo, de diversos editais da então Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres. Eu fiquei à frente da Secretaria Municipal da cidade de São Paulo de 2013 a 2016. De lá pra cá passaram-se oito anos, e muita coisa mudou. Os editais que estimulavam a criação de organismos de políticas para as mulheres, apoiando a criação de secretarias municipais, estaduais, foram totalmente extintos. Tanto é que a gestão da presidenta Dilma havia deixado mais de 300 organismos de políticas para as mulheres organizarem e, quando retornamos (com o governo Lula), não chegavam a 100 os organismos estruturados. Outra questão importante é que muitos dos serviços, por exemplo, as Casas da Mulher Brasileira, que estão dentro do programa Mulher Viver sem Violência, as poucas que surgiram foram implementadas a partir de emendas parlamentares e não por iniciativa do Executivo. Não havia um orçamento robusto, forte para que os serviços de atendimento às mulheres nas diversas áreas, não só da violência, fossem implementados. Porém, para além do corte de investimentos, houve uma mudança no olhar, na visão, no direcionamento. No governo Bolsonaro, foram implementadas políticas com foco em uma visão familista, estreita, da mulher exclusivamente como mãe e ou como parte de um casal de uma família heterossexual. Não com a visão de garantia de autonomia das mulheres, de empoderamento econômico e político das mulheres que garantisse maior autonomia, seja sobre o próprio corpo, seja sobre as demais decisões que afetam a sua própria vida. Isso veio junto com o corte em muitas políticas públicas sociais que também afetaram fortemente as mulheres, o que causou, além de uma pauperização maior, de um avanço grande na precarização do trabalho e também da retirada de direitos. Podemos falar da área de direitos sexuais e reprodutivos, da autonomia econômica, da área da participação política. E foi um momento também que nós enfrentamos autoridades públicas dando demonstrações expressas nítidas de racismo, de machismo, mandando os jornalistas calarem a boca, xingando, desqualificando mulheres, seja autoridades públicas, seja uma rede de fake news, de estímulo à misoginia, ao ódio contra as mulheres, a desqualificação das mulheres. Foi um caldo de cultura que afetou a mentalidade da sociedade, que já não era perfeita, já não estávamos num paraíso, já havia muito machismo, racismo, lesbofobia, homofobia, transfobia. A gente tem aí toda uma história de escravidão, de colonização do nosso país. Então, a nossa herança de autoritarismo, de preconceitos, de dominação já é muito grande. Vínhamos fazendo um trabalho de desconstrução dessa mentalidade, e, com o golpe, tudo veio à tona novamente, com muita força.

Com a eleição do presidente Lula as bandeiras históricas das mulheres foram fortalecidas?

O movimento de mulheres lutou o tempo todo durante o golpe e o governo Bolsonaro. O tempo todo houve questionamento, mobilização, as mulheres foram fortes defendendo vacina, defendendo direitos. Os movimentos se mantiveram em luta, porém com menos espaço, maior repressão, muito menos ressonância. Praticamente ressonância zero de diálogo com o governo federal. Com o terceiro governo do presidente Lula criando o Ministério das Mulheres, o Ministério da Igualdade Racial e o Ministério dos Povos Indígenas, isso traz uma expectativa muito grande desses movimentos de que diversas reivindicações latentes sejam atendidas. Isso nos dá maior responsabilidade de avanços concretos e objetivos nessas políticas. Para responder a essas demandas dos movimentos é todo um processo, mesmo de reconstrução de diversas políticas públicas e do diálogo social, que ficou também bem abalado. Agora, por exemplo, nós estamos retomando a preparação, não só da rearticulação e atualização do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, mas as conferências municipais estaduais de Políticas para as Mulheres, para realizar a Conferência Nacional em 2025, ano que vem.

O ano de 2023 foi recordista em feminicídio no Brasil. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 1463 mulheres foram mortas por serem mulheres. Por que isso aconteceu?

O feminicídio está muito alto no Brasil e informações do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que 61% das vítimas de estupro têm no máximo 13 anos, 10% possuem de 0 a 4 anos são bebês, 0 a 4 anos, 17% possuem cinco a nove anos e 33% são meninas de 10 a 13 anos. São dados estarrecedores, muito vinculados à naturalização, banalização da violência, seja por autoridades públicas, por youtubers, em sites monetizados que pregam a violência, a desvalorização, submissão, subordinação e o ódio contra as mulheres. A misoginia nas redes sociais monetizada e aplaudida é muito prejudicial para essa batalha de promover a mentalidade de que as mulheres têm autonomia, são iguais aos homens, não são subordinadas, não são seres humanos que valem menos e, portanto, dentro de relações trabalhistas, conjugais igualitárias, uma mulher tem o direito de romper com o relacionamento, tem o direito de usar a roupa que ela quiser, de escolher a profissão que ela quiser etc. A segunda questão foi aquele corte de investimentos em políticas públicas para as mulheres, inclusive de prevenção, de projetos educacionais, culturais, de mudança da mentalidade, de serviços públicos, como, por exemplo, a implementação das Casas da Mulher Brasileira, que oferecem um serviço integral e humanizado para aquelas que estão em situação de violência. E mais, aumentou o armamento da população. Segundo a pesquisa do Instituto Sou da Paz, a cada duas mulheres que morrem assassinadas no Brasil, uma foi por arma de fogo. Essa arma de fogo está dentro das residências e são as mulheres que estão pagando com suas vidas. Portanto, esse caldo de cultura machista, o corte nas políticas públicas, uma visão de não garantir a mulher como sujeito de direitos, o maior armamento da população, tudo isso está resultando num aumento de feminicídios.

E quais medidas podem ser tomadas para combater esse problema?

A ministra Cida Gonçalves vai lançar o Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios, que, nessa primeira etapa, prevê ações de nove ministérios com prazos e objetivos muito concretos para contribuir com o enfrentamento desse problema. Na educação, a inclusão nas diretrizes curriculares da igualdade entre homens e mulheres, da igualdade de gênero no ensino superior. A elaboração de protocolos de enfrentamento ao assédio sexual nas universidades e também o fortalecimento das ouvidorias nas universidades que trabalham com o tema do combate ao assédio sexual com o Ministério da Justiça. Parcerias no sentido da ampliação do fornecimento de viaturas para as patrulhas. Na Lei Maria da Penha, uma parceria no sentido da ampliação do uso da tornozeleira eletrônica nos casos graves. Pois é fundamental que quando a mulher sai com uma medida protetiva garantida, o homem agressor saia com uma tornozeleira na perna, para que haja um monitoramento. O juiz ou a juíza podem decidir isso sem a necessidade de nenhuma nova legislação no nosso país. Também a regulamentação do auxílio aluguel para mulheres em situação de violência, que tenham feito a denúncia de agressores na Lei Maria da Penha, com o Ministério do Desenvolvimento Social e Previdência. E ainda a indenização para órfãos e órfãs do feminicídio de 0 a 18 anos, com a indenização de um salário mínimo. Nós estamos trabalhando junto com o Ministério da Justiça também. O protocolo de avaliação de risco, o formulário de avaliação de risco, o formar para que ele alcance mais efetividade são alguns exemplos. A gente gosta de usar a palavra prevenção para mostrar que feminicídio é um filme que se pode prevenir. Não é algo natural, não é algo banal. E ele se previne com a mudança da mentalidade e, obviamente, com serviços adequados para que aquela mulher que já está em situação de violência possa se proteger e que a situação não se agrave e não chegue à morte. Então, nessa primeira etapa do pacto, hoje nós estamos envolvendo os ministérios.

A segunda etapa envolverá os estados, os municípios que assinaram acordos de cooperação com o Ministério das Mulheres e a sociedade civil e os movimentos sociais. Uma ação bastante objetiva é o pacto. E aí, já compondo também essa área de ampliação do atendimento às mulheres em situação de violência, inauguramos em um anos e meio do governo do presidente Lula duas Casas da Mulher Brasileira e também dois Centros de Referência da Mulher, tão importantes quanto as casas. Centros de referência, embora menores que as casas, fazem a diferença também na vida das mulheres, porque articulados com a patrulha Maria da Penha, com as delegacias da mulher, conseguem proteger e salvar vidas. Estamos em um processo grande de ampliação desses serviços. Fizemos uma parceria com o Ministério da Justiça para implementação de 40 novas Casas da Mulher Brasileira, não só nas capitais. São polos geopolíticos de atendimento às mulheres em situação de violência na região. Às vezes é uma cidade pequena, mas as mulheres do entorno das diversas regiões procuram atendimento lá. Tudo isso vai compondo uma teia de políticas públicas que constituem um desafio gigantesco para o novo olhar, a construção de uma sociedade igualitária, de respeito, de igualdade para com as mulheres, também ampliando a rede de serviços que acolhe as mulheres em situação de violência.

Há parcerias do Ministério voltadas às mulheres trans e mulheres negras?
Importante citar algumas políticas transversais hoje que não enfrentam diretamente a violência contra as mulheres, mas trazem empoderamento e valorização. Foram investidos R$ 28 milhões do governo federal para apoiar o empreendedorismo e as pesquisadoras negras, sendo que R$ 6 milhões foram aportados para bolsas de mestrado e doutorado em um edital específico para mulheres negras. São essas ações do Ministério da Igualdade Racial que aportam políticas e orçamento para que nós possamos superar a desigualdade mais forte que sofrem as mulheres negras. Por exemplo, nós estamos numa batalha muito forte com a Secretaria de Autonomia Econômica, coordenada pela secretária Rosane Silva, para que a Lei de Igualdade Salarial, promulgada pelo presidente Lula e enviada ao Congresso Nacional, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Lula, seja respeitada. Estamos em um período em que as empresas têm de apresentar os relatórios de transparências, e muitas confederações, como a Confederação Nacional da Indústria, estão entrando com ações para impugnar a lei, o que é um absurdo, porque a CLT já garante isso. A Constituição já garante isso. A lei veio para estimular e regulamentar como se cumpre a Constituição. Depois do diagnóstico, haverá uma avaliação dos dados, a notificação das empresas, um plano de mitigação dessas desigualdades. Só aí é que tem a fiscalização, a multa para as empresas que não cumprirem a legislação. Não é somente uma legislação para punir as empresas, é para adequar, para prevenir, para tornar o ambiente de trabalho mais equilibrado, com maior igualdade de gênero e mesmo assim, algo que seria natural está sendo super questionado judicialmente pelas empresas. Por último, também quero falar da nossa parceria com a secretaria Secretaria de Defesa dos Direitos da População LGBTQIA+ para capacitação das atendentes do Ligue 180, que é o número que a mulher disca para se informar, para se orientar sobre qual o serviço de atendimento à mulher em situação de violência mais próximo da residência dela é adequado. Fizemos capacitação nessa área LBT, para que essa população também tenha um atendimento bom, saiba os locais a procurar, para que os locais atendam bem essa população, no nosso caso, a população LBT, lésbicas, bissexuais e transexuais.


Lamentavelmente, as mulheres ainda são muito subrepresentadas na política e as eleitas vêm sofrendo vários tipos de violências e ameaças. Há políticas voltadas a essa questão em curso?


Uma iniciativa muito importante que nós lançaremos pelo Ministério das Mulheres neste mês é a Política Nacional de Enfrentamento à Violência Política contra Mulheres. Porque esse é um ano de eleições. Muitas vereadoras, deputadas estaduais, federais e lideranças, não só parlamentares, sindicais, quilombolas, religiosas, têm sofrido perseguição, repressão e até assassinatos, como a mãe Bernadete, de Salvador. Ela era uma liderança religiosa que sofria intolerância religiosa, que lutava pelo direito à terra quilombola. Neste mês nós completamos seis anos do assassinato da vereadora Marielle Franco. Nós precisamos enfrentar a violência política, a perseguição às mulheres que estão nos espaços públicos e que topam, têm coragem de encarar candidaturas, de ir para a vida pública, de ser parlamentares, dirigentes dos movimentos sociais e dos sindicatos. No dia 27, nós lançaremos o Plano de Ação para Enfrentamento à Violência Política de Gênero, que foi traçado por um grupo interministerial . E mais, estamos construindo um acordo de cooperação com o Tribunal Superior Eleitoral para que assuma compromissos concretos, efetivos de monitoramento dos partidos das candidaturas femininas.

Existe um projeto de uma plataforma de monitoramento das políticas para mulheres. Qual é o objetivo dessa ferramenta?

A plataforma vai funcionar por meio de uma parceria com o Ministério da Gestão e Inovação e da Casa Civil, do Governo Federal, para que nós possamos acompanhar, monitorar, potencializar, avaliar o que está avançando, o que não deu certo e precisa ser reformulado do ponto de vista de políticas públicas para as mulheres, porque essas políticas são transversais, elas têm de estar no Ministério das Mulheres. É fundamental que estejam sendo elaboradas e pactuadas com o Ministério das Mulheres, mas serão executadas por diversos outros. O Plano Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres é compostos por centenas de iniciativas que cada um dos ministérios vai desenvolvendo para que nós possamos atingir e impactar positivamente as mulheres. Por exemplo, mais de 17 milhões de famílias que recebem o Bolsa Família são chefiadas por mulheres, e 90% dos imóveis do Minha Casa, Minha Vida estão em nomes de mulheres. São políticas transversais muito importantes para fazer a diferença. O Dignidade Menstrual, por exemplo, do Ministério da Saúde, foi um construído a partir de demandas que o Ministério das Mulheres levou para o Ministério da Saúde. Foi um diálogo da ministra Cida Gonçalves com a ministra Nísia Trindade sobre a necessidade de fornecimento de absorventes para mulheres em situação de vulnerabilidade, porque isso significa uma série de prejuízos para elas na escola, no trabalho, na vida como um todo. A plataforma vai monitorar e acompanhar essas políticas