Artigo publicado originalmente no livro “Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil, organizado por Antonio Candido e publicado pela Fundação Perseu Abramo em 2018. Consulte nessa exposição a capa do livro e outros autores que escreveram para a obra.
Por que Sérgio Buarque de Holanda, aos 78 anos e já doente, fez questão de participar diretamente da fundação de um novo partido político — e de um partido com as características do PT? Que sentido ele via nessa iniciativa? Que sentido político para o país, e que sentido pessoal, existencial?
Infelizmente, Sérgio não deixou nenhum depoimento formal acerca de sua opção pelo PT. Ao que sabemos, não publicou qualquer artigo nem deu entrevistas sobre o tema. Parece que tampouco foram encontradas em seus arquivos anotações relativas ao PT.
E, no entanto, ele estava lá. Estava lá, no Colégio Sion, em 10 de fevereiro de 1980, naquela inesquecível assembleia de líderes operários e camponeses, de sindicalistas e intelectuais, de padres e artistas, de exilados que acabavam de regressar ao Brasil e de companheiros recém-saídos da clandestinidade. Sérgio Buarque estava lá, ao lado de Lula, de Olívio Dutra, de Manoel da Conceição, de Apolonio de Carvalho, de tantos de nós, vindos dos quatro cantos do país para fundar o PT.
Recordo-me de vê-lo à entrada do auditório, naquela confusão fraterna e emocionada, em palestra com Mário Pedrosa, Antonio Candido e Hélio Pellegrino. Dali a pouco, uma das primeiras assinaturas do livro de fundação seria a sua.
E como teria sido importante colher de Sérgio sua análise do PT que nascia, ouvi-lo sobre o programa imediato, o projeto estratégico, o discurso do PT. Como seria precioso conhecer melhor as suas motivações — de um monstro sagrado da cultura brasileira, “o insuperável Sérgio”, no dizer de Manuel Bandeira — para engajar-se conosco naquela polêmica e perturbadora aventura. Mas, sobretudo, que fascinante não teria sido conversar com ele sobre o PT na perspectiva da história.
Que lugar o PT, na sua opinião, vinha ocupar na trajetória política brasileira? Que postura o partido deveria assumir perante o nosso passado de lutas populares? O que de ruptura, o que de continuidade? Que tradições alternativas resgatava ou deveria resgatar? Teriam elas vigência social e política, ainda que subterrânea, no Brasil dos anos 1980, ou apenas simbólica? E, por outro lado, de que novas condições econômicas, sociais e ideológico-culturais brotava o PT? Que mudanças na sociedade brasileira tornavam possível um partido de esquerda com a fisionomia e as ambições do nosso? Afinal, que horizonte de transformações históricas Sérgio descortinava para o PT, a ponto de engajar-se diretamente em sua fundação, àquela altura da vida?
Porque ele, o maior historiador vivo do país naquela época, um analista genial da civilização brasileira, certamente não estava ali por razões menores ou contingentes. Sérgio não era homem de gestos puramente protocolares. Não. Viera do Rio, doente, para fundar um partido, com as características polêmicas e perturbadoras do PT, na companhia política e intelectual que escolhera.
Conta-nos D. Maria Amélia, sua discreta companheira, também ela petista de primeira hora, que até mesmo em seus derradeiros meses de vida — ele viria a falecer em 24 de abril de 1982 — Sérgio nunca deixou de acompanhar com entusiasmo o noticiário sobre o PT. Lembra- se de sua indignação com o enquadramento de Lula na Lei de Segurança Nacional, em outubro de 1980. Temia que o episódio fosse utilizado para impedir a legalização do PT, para proscrevê-lo. Não subestimava de modo algum os ardis do general Golbery, típicos, segundo dizia, da intolerância congênita das elites brasileiras frente às organizações populares independentes.
Naquela fase inicial de dramáticos obstáculos organizativos, em que tanto se combateu e estigmatizou, à direita e à esquerda, a proposta petista — partidos classistas seriam por definição antidemocráticos, a oposição “dividida” não seria capaz de derrotar a ditadura etc. —, intelectuais como Sérgio Buarque, Marilena Chaui, Antonio Candido, Paulo Freire, Mário Pedrosa, entre vários outros, cumpriram papel decisivo na defesa do PT e do pluralismo político-ideológico no país. Pondo corajosamente em jogo o seu prestígio, afirmaram não só o direito do PT a existir como também a importância histórica de sua existência para os rumos da democracia brasileira.
A batalha foi travada em vários campos: o jurídico, o sociopolítico, o intelectual. Nesse último, a simples presença de alguém como Sérgio Buarque entre os proponentes do PT já alterava a qualidade do debate.
Mas estou convencido de que a contribuição de Sérgio Buarque não se esgotou absolutamente naquele momento fundador. Tenho certeza de que ela pode — e deve — ir muito além. Acho que Sérgio pode ser utilíssimo ao PT hoje. O seu legado ético-intelectual, se for assimilado com a profundidade e lucidez que merece, pode repre- sentar, a meu juízo, uma esplêndida contribuição para que o PT e as esquerdas superem seus desafios intelectuais, morais e políticos do presente. Penso que é sobretudo nesse sentido que se deve falar aqui em Sérgio Buarque petista.
O legado propriamente científico de Sérgio, sua natureza e inestimável valor, já foi criteriosamente debatido nos textos anteriores. Quero, no entanto, referir-me a algo que permeia a sua obra, que nela se materializa mas que, ao mesmo tempo, a precede e transcende, constituindo-se na motivação constante — tanto mais enfática e obstinada quanto menos explícita, tanto mais visceral quanto menos propagandística — de toda a sua vida intelectual: o desejo de contribuir para a superior compreensão do Brasil em seu processo emancipatório, o propósito de servir, pela coragem e qualidade da inteligência, à integração soberana do Brasil no mundo.
Numa época como a nossa, em que o nacional padece terrível desprestígio, seja no meio político, seja no acadêmico e, sobretudo, na mídia, nunca é demais ressaltar que Sérgio Buarque dedicou-se com formidável convicção, ao longo de mais de 50 anos, a estudar e debater o Brasil, sua vida material e cultural, sua trajetória política etc. Fossem quais fossem as circunstâncias, mesmo nas quadras mais adversas, quando tantas vontades se quebrantaram e tantas vocações se estiolaram, Sérgio nunca deixou de mobilizar suas melhores energias intelectuais e espirituais para investigar e interpretar o Brasil.
Hoje, na era da “globalização”, considera-se secundário ou até mesmo irrelevante investigar as raízes do Brasil, sua trajetória ao longo dos séculos, para melhor compreender as contradições do presente e as perspectivas do futuro. Os desafios atuais da economia nada teriam a ver com a nossa formação econômica, podendo ser equacionados perfeitamente à revelia da história. A vida política contemporânea seria explicável em si mesma, sendo de todo inútil inseri-la analiticamente na dinâmica que a gerou. A literatura brasileira de hoje poderia ser (e muitas vezes de fato é) estudada sem referência alguma ao processo cultural e especificamente literário de que resulta (o exato contrário do que recomendava Eliot: toda literatura já nasce dialogando, implícita ou explicitamente, com a tradição da qual faz parte, reproduzindo-a ou rebelando-se contra ela, não raro mesclando desdobramentos e rupturas). As explicações, além do mais, seriam todas exógenas, isto é, viriam todas de fora da realidade brasileira, inteiramente supranacionais, seja em termos de determinação real, seja em termos do modelo interpretativo. Mesmo aqueles que dizem não acreditar no clichê do “fim da história”, pensam e agem como se ela de fato tivesse sido “congelada” e fosse ocioso ou contraproducente recorrer ao exame de processos históricos para equacionar os desafios hodiernos.
Para Sérgio Buarque, ao contrário, nunca se tratou de importar modelos explicativos prontos e acabados e de aplicá-los à realidade brasileira. Tampouco se tratava de forjar por princípio categorias interpretativas autóctones, cuja intencionalidade fosse a priori a de opor-se às categorias adventícias. Nem servilismo intelectual nem sectarização artificiosa. Sérgio sempre dialogou abertamente com filo- sofias e metodologias de todas as latitudes. Sem presumir, no entanto, que estivéssemos condenados à condição de epígonos. Sem presumir que aqui, a partir da própria intelligentsia brasileira, em contato com um objeto de vivência e investigação peculiar, que põe desafios interpretativos também peculiares, não pudessem surgir instrumentos de investigação e resultantes interpretativas originais. Se tal originalidade foi alcançada, por exemplo, no plano da criação literária, através de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, sem fazer tábula rasa do legado europeu ou central, ao contrário, assimilando-o em profundidade, por vezes genialmente, sem contudo medusar-se por ele — por que o mesmo nos estaria ve- dado no plano da investigação histórica ou científica? A originalidade inegável da nossa literatura de imaginação — por que estaria proibida ao nosso ensaísmo ou à nossa criação política?
O Brasil como objeto de estudo sempre teve, para Sérgio, o mesmo valor científico e moral dos maiores problemas do nosso tempo. Não o estudava por exclusão ou comodidade mas por escolha existencial e política, no pedestre mas formidável sentido grego da palavra. Nessa medida, ele encarna à perfeição uma das paixões mais altas e fecundas do modernismo, a de compreender o Brasil, de investigá-lo, de desvendá-lo em si mesmo e face ao mundo, de figurá-lo e transfigurá–lo artisticamente — paixão que inspirou, em distintas dimensões, a obra de Mário, Oswald, Bandeira, Drummond, Murilo, Jorge de Lima etc. Sérgio Buarque, aliás, pode ser considerado o maior ensaísta do modernismo brasileiro, coisa que, de resto, muitos de seus confrades já intuíam na ocasião, inclusive Gilberto Freyre, o único que talvez pudesse rivalizar com ele, mutatis mutandis, em vastidão de perspectivas e qualidade estilística.
Sérgio e seus companheiros testemunhavam mudanças vertiginosas no Brasil e no mundo e estavam convencidos de que era preciso captar o seu sentido material e espiritual, tanto pela imaginação artística quanto pela investigação científica, para que não fôssemos meros espectadores do nosso próprio destino.
Resulta daí que o Brasil — a história política, social e econômica do Brasil, nossa etnografia e mitologia, a arte brasileira, a língua portuguesa do Brasil etc. — se justificasse plenamente como objeto de estudo individual e coletivo, pessoal e geracional, ponto de partida de uma sedutora, fascinante aventura científica e civil.
Esta acentuada paixão intelectual pelo Brasil nunca derivou, entretanto, para uma perspectiva mesquinhamente “nacionalista”. Sérgio Buarque nunca achou (como não achavam igualmente nossos grandes poetas e romancistas) que o Brasil pudesse ser compreendido/explicado sem uma visão universal do processo histórico-cultural. Recusando-se a pensar o Brasil como mera cópia de segunda ou terceira categoria dos países centrais, cuja história local só existisse enquanto extensão, apêndice da história “geral” ou “central” — nem por isso Sérgio supunha que o Brasil pudesse ter uma explicação puramente autárquica. O seu mote poderia ser: compreender o mundo para compreender o Brasil e compreender o Brasil para compreender o mundo. Não apenas para compreender-nos a nós, mas para compreender o mundo de um ponto de vista de fato universal e não somente do ângulo hegemônico. O nosso lugar no mundo, o mundo em suas diferenças constitutivas (e que estupenda a intuição de Sérgio para captar as diferenças de fato constitutivas…). Dedicou-se justamente a investigar a consistência e a materialidade próprias da civilização brasileira no contexto da civilização ocidental.
Por isso mesmo, sempre pensou o nacional em uma perspectiva universalista. Pensou sempre o Brasil em relação com seus interlocutores econômicos, políticos, culturais, linguísticos etc. Sérgio sempre afirmou a possibilidade — e, mais que isso, a necessidade — de um projeto nacional soberano para o Brasil. Nunca achou que a consolidação da nacionalidade fosse uma questão arcaica ou superada, carente de sentido intelectual e político. Mas jamais cedeu à tentação do nacionalismo autárquico, puramente reativo, à ideia de um Brasil contra o mundo, que se definisse pelo avesso. A nossa identidade, vista como um processo, Sérgio sempre a perseguiu na relação criativa e não mimética do Brasil com o mundo, na capacidade que tivéssemos de autêntica invenção histórica.
Asua atitude intelectual básica sempre foi a de mobilizar todo o saber disponível no repertório humanístico e científico ocidental (aí incluído, naturalmente, o nosso saber acumulado) para melhor investigar o Brasil. Nunca aceitou a ideia de que fosse possível compreender o Brasil com instrumentos de investigação mais toscos ou rudimentares do que aqueles usados para estudar os países ditos avançados, de que o Brasil fosse menos complexo, exigindo um aparelho interpretativo menos sofisticado.
Exemplar dessa atitude é sua magnífica análise da obra de Cláudio Manoel da Costa em Capítulos da literatura colonial. Creio mesmo que poucas vezes o ensaísmo brasileiro chegou tão longe e tão alto.
Cláudio é estudado como um poeta tão complexo e de tanta espessura quanto os maiores europeus do seu tempo. Para consegui-lo, além do manejo minucioso dos textos do inconfidente, e de seu domínio do Brasil histórico-cultural, Sérgio mobiliza todo um vasto conhecimento da teoria e prática poética ocidental do período. Seria falso historicamente estudá-lo como um poeta em si, à revelia do contexto estético e filosófico ocidental, do qual se nutria como pão cotidiano. Assim como seria falso estudá-lo como simples conduto de modelos europeus. Sérgio busca justamente colher a sua tensa e contraditória dialética criativa entre local e universal, entre a sua situação brasileira (“desses penhascos fez a natureza o berço em que nasci”) e a sua inserção espiritual nas correntes estéticas e filosóficas do tempo. Se Cláudio dialogou permanentemente com Metastásio, o príncipe do arcadismo europeu, o estudo da poética do italiano é em certo sentido imprescindível para compreender a obra de Cláudio em toda a sua inteireza e… originalidade. Para compreender onde e quando Cláudio liberta-se e transcende os seus modelos — e torna-se Cláudio ele mesmo.
Do ponto de vista da vastidão de perspectivas, do aparato de cultura mobilizado, da prodigiosa capacidade de análise e da notável pertinência e relevância de suas sínteses, Sérgio nada fica a dever aos maiores historiadores ocidentais do século XX, a um Braudel, por exemplo, que o conheceu e respeitou. A diferença é que toda essa massa crítica, essa argúcia, essa genialidade, está a serviço da compreensão do Brasil, que ainda consideramos, consciente ou inconscientemente, um objeto de estudo de segunda categoria, incapaz por definição de ensejar um clássico do ensaísmo universal.
A personalidade intelectual de Sérgio é o exato oposto da ideia de que “para o Brasil até que está bom”. Sempre pretendeu alcançar o máximo, sempre foi um perfeccionista. Desde seus precoces arti- gos de juventude (aos 17 anos!) ele já coteja o nosso pensamento e a nossa criação literária, do ponto de vista do rigor e da qualidade, com aqueles da Europa e das outras Américas. Possível identidade própria, intelectual e política, nunca significou para ele inferior padrão de exigência qualitativa.
Outro aspecto muito importante — e atualíssimo — do legado ético-intelectual de Sérgio Buarque é a sua fortíssima convicção de que não há nem deve haver uma disciplina-guia na análise da sociedade, um ramo das ciências superior aos demais, condicionante dos demais. Convicção de que a via multidisciplinar é a única adequada à com- preensão integradora, não-exclusivista da realidade. A ideia parece óbvia mas, no dia a dia da vida intelectual, está longe de sê-lo. É bastante comum, apesar das ritualísticas profissões de fé em contrário, que a economia, por exemplo, ou a psicanálise — tal como a linguística, há 20 ou 30 anos, no auge da dogmática estruturalista — sejam erigidas em disciplinas-guia, cujo objeto seria o único e verdadeiro motor do real, relegando as outras disciplinas, os demais ramos do conhecimento, logo as outras dimensões constitutivas da realidade, a plano secundário ou a mero subproduto da “determinação” principal.
Achamos graça, compassivos, do velho naturalismo do século XIX — o meio físico, a raça e a família explicando todo e qualquer fenômeno espiritual, tudo sendo imputável aos malfadados três fatores — e dizemos ironicamente que, apesar de suas pretensões cientificistas, de sua retórica da objetividade etc., tudo aquilo não passava de pura metafísica — sem perceber, tantas vezes, que a mais avançada modernidade possui os mesmos cacoetes, absolutizando determinadas dimensões da realidade, erigindo-as arbitrariamente em motivador primeiro da vida humana, em depositário metafísico do seu sentido.
O caso da economia é paradigmático. Que o pensamento conservador e antidemocrático, apologista da desigualdade básica dos seres humanos, por isso mesmo refratário a qualquer igualitarismo, faça da economia a sua disciplina-guia, da “lógica” pura dos interesses materiais, e sobretudo do poder material, o fundamento de sua metafísica, é perfeitamente compreensível. O que não faz sentido, porém, é que o pensamento que se deseja democrático, libertário, logo necessariamente transformador, caia na armadilha da metafísica economicista, ignorando outras fontes de dinamismo do real, outras dimensões da vida, de modo algum redutíveis à pretensa racionalidade econômica — interesses ideais, contradições pré ou supraeconômicas, ou decididamente extraeconômicas, que são justamente aquelas que mais tensionam e subvertem o real dado, que mais apontam para a capacidade intrínseca de autotranscendência do real. Sérgio não só pleiteou mas praticou sempre a multidisciplinaridade, muito antes que esse desagradável neologismo fosse cunhado. História da vida material, história das representações mentais, análise das instituições políticas, estética, crítica literária — Sérgio foi mestre em várias disciplinas, sem confinar-se a nenhuma delas. Trabalhou na fronteira entre diferentes disciplinas, não por modismo ou veleidade erudita, mas por acreditar que assim servia melhor à compreensão do objeto, por acreditar que nem sempre as especializações acadêmicas dão conta da dinâmica cambiante do real. Mas não foi impressionista nem diletante em nenhuma. Sérgio foi mais, não menos que um espe- cialista em cada uma delas. Atingiu o máximo de rigor em cada ramo de investigação que praticou — e foi além, enriquecendo abordagens específicas com saberes complementares.
Se algumas de suas obras são enquadráveis com precisão em determinadas disciplinas acadêmicas, outras escapam a toda classificação fácil ou previsível. Visão do Paraíso, como se classificaria do ponto de vista acadêmico? E Raízes do Brasil, que tem muito, com certeza, de sociologia da cultura, outro tanto de história das mentalidades e costumes — mas possui igualmente uma vocação de filosofia social e política, sobretudo em seus capítulos finais? Em qualquer de suas obras, mesmo naquelas mais facilmente catalogáveis, Sérgio demonstra essa visão plural, prismática da realidade, que o faz avesso aos “princípios únicos” — logo, ao economicismo, ao psicologismo, ao culturalismo etc. —, sem contudo desqualificá-los, antes integrando-os criticamente, buscando a sua contraditória interpenetração, agregando pontos de vista e ângulos de abordagem diversos, sem demasiada pressa de atingir uma síntese interpretativa totalizante, sem demasiada volúpia de uma explicação final, inapelável, antes demorando-se o mais possível na exploração do particular, do pormenor específico, que pode descortinar, quem sabe, um surpreendente significado geral.
Tudo isso, no entanto, sem compactuar de modo algum com o ecletismo ou relativismo doutrinário. Sérgio integrava elementos compatíveis, metodologicamente coerentes. Buscava uma compreensão ampliada, enriquecida da realidade, jamais a sua diluição, como parece pretender o autoproclamado pensiero debole contemporâneo, em saberes axiologicamente esvaziados, nivelados por baixo, quando “todas as ideias se equivalem” e são todas, a rigor, permutáveis, já que o pensamento abdicou de buscar a verdade, mesmo que esta esteja, como sabemos, na linha do horizonte.
Daí decorre um novo aspecto fecundíssimo, aos meus olhos, da postura ético-intelectual de Sérgio: a sua concepção da teoria não como um fim em si mesmo mas sempre a serviço da compreensão do mundo e de suas possíveis dinâmicas transformadoras. Há pouquíssima teorização explícita, desvinculada desse ou daquele objeto, na obra de Sérgio, o que não significa absolutamente que Sérgio fosse avesso à reflexão teórico-metodológica ou que a sua obra não se assente em sólidos fundamentos conceituais. Ao contrário, poucas obras na história da inteligência brasileira possuem tamanha coerên- cia interna e racionalidade científica, poucas movem-se com tanta desenvoltura no cipoal filosófico da modernidade, aproveitando aquilo que interessa e afastando o que (mesmo notório ou charmoso) não é pertinente. A teoria, na obra de Sérgio, está a serviço de seu trabalho de investigação, ele a valoriza na medida em que ela permite captar os dinamismos estruturantes do real e desentranhar o seu potencial de “surpresa histórica”.
Nada menos próprio de Sérgio do que o acúmulo empirista de materiais brutos, por notáveis que sejam. Mas nele não há teoricismo. Não há, como hoje tanto se vê, superestimação da teoria em abstrato, à revelia de sua capacidade de compreender e explicar o mundo. Não há — e Sérgio com certeza o consideraria deserção do espírito, covardia da inteligência — qualquer absolutização da teoria, a teoria vista como um fim em si mesmo.
Provavelmente Sérgio foi um dos intelectuais do seu tempo mais informados sobre o pensamento mundial de vanguarda, inclusive aquele eminentemente teórico, relativo aos fundamentos do saber. Sérgio lia no original (quando pouquíssimos intelectuais brasileiros o faziam) também o alemão, o inglês, o italiano, além do canônico francês e do espanhol. No entanto, ao contrário de tantas inteligências de segunda ordem, sua recepção das ideias era sempre ativa, nunca passiva, sempre autônoma e crítica, nunca eivada de modismo ou subserviência intelectual. Sérgio jamais teve qualquer veleidade de introduzir fulano ou beltrano no Brasil, de ser o porta-voz tupiniquim desse ou daquele pensamento. Sérgio não tinha por que arvorar-se em embaixador ou propagandista do pensamento alheio pois pensava por conta própria, era possuidor de um pensamento verdadeiramente original, mesmo que nunca tenha querido sistematizá-lo em obras puramente teóricas nem se julgasse na obrigação de antepor a cada obra sua uma burocrática premissa gnoseológica.
Pode-se dizer que entre Sérgio e os grandes historiadores e pensadores socioculturais do século, o que havia era discreta mas inequívoca paridade intelectual (a mesma com que ele se defrontava com os nossos grandes narradores e poetas modernistas). Sérgio admira-os, às vezes de modo entusiástico, mas recusa a posição de inferioridade que adotam com frequência muitos críticos e professores; ele compartilha com os maiores criadores do pensamento e da imaginação a sua capacidade inaugural. Nas mãos de Sérgio, um texto de Lucien Fevbre ou de Lima Barreto é examinado com a mesma argúcia e originalidade, com a mesma potencial inexauribilidade com que seus próprios autores o criaram.
Coerente com toda essa postura ético-intelectual é a escolha estilística de Sérgio, muito mais próxima do ensaio que do tratado, do comentário iluminador que do inventário erudito, não obstante a sua cultura enciclopédica. Ele não escreve apenas para seus pares mas para todo e qualquer leitor interessado, buscando engajá-lo — radicalmente — no processo que investiga e narra. Sua prosa — e que esforço expressivo ela não lhe terá custado! — é ágil, variada, intensa, resgatando a dimensão “dramática” do próprio objeto, seja ele um fato político, um fenômeno social ou uma obra literária. Ela é a um só tempo profunda e acessível, expondo argumentos complexos, tantas vezes sutis, de modo claro e atraente, sem prejuízo da exatidão científica. Com certeza, essa legibilidade fundamental muito deve à sua dupla condição de cientista e literato, ao seu permanente comércio, inclusive em períodos de estrito trabalho historiográfico, com a literatura e seus valores comunicativos.
Visão do Paraíso, sem ceder um milímetro em seu minucioso e quase obsessivo rigor, possui ao mesmo tempo uma fluidez narrativa impressionante, pode ser lido como um belíssimo romance. O passado, em Sérgio, não tem bolor, a não ser aquele inerente a certas instituições, personagens ou grupos sociais. A prosa de Sérgio, vocacionalmente democrática, vivifica, presentifica, sem nada esconder do leitor, nem os materiais de base nem a sua construção interpretativa. Ela não exige conhecimento especializado do tema, nada de essencial que esteja antes ou fora do texto que o leitor tem em mãos.