Dirigido por Amanda Pomar, “O nome da vida” é adaptado a autobiografia homônima do militante filho de Pedro Pomar, executado em 1976 no Massacre da Lapa

Um dos últimos atos de crueldade da ditadura, a operação militar conhecida como “Massacre da Lapa” aconteceu no dia 16 de dezembro de 1976, durante o Governo Geisel, que se dizia um governo de transição democrática, mas perseguiu opositores até o fim. O militante do Partido Comunista do Brasil, o PCdoB, Wladimir Pomar sobreviveu ao atentado, que tinha por objetivo atingir e destruir a direção do partido, mas viu seu pai Pedro Pomar morrer durante o ataque. 

Seis décadas depois do golpe que depôs o presidente João Goulart e deu o poder aos militares em 1964, a história de Wladimir Pomar, e da própria trágica operação que vitimou seu pai, é recontada num curta de animação baseado em sua autobiografia homônima, O nome da vida. O filme foi produzido com editais da Murilo Mendes e do ProAC (São Paulo) e lançado na Fundação Perseu Abramo no dia em que o Golpe de 1964, que deu início à ditadura militar, completou 60 anos, 31 de março.

Além do atentado, que vitimou o pai de Wladimir, o documentário narra, em primeira pessoa, passagens da infância e do período em que o personagem viveu na clandestinidade para sobreviver às perseguições, prisões e torturas da ditadura militar. São gerações de histórias de sobrevivência, resistência e memória. 

Com peso de memória, costurado entre relatos e emoções, a diretora Amanda Pomar, que é neta do militante, consegue dar dimensão e reconstituir fatos na versão de quem lá estava como vítima em um trabalho construído ao longo de quatro anos. Com duração de 13 minutos, a animação, com tons soturnos, impressiona pelo formato arrojado, as sensações que desperta e toca em feridas ainda abertas. 

O roteiro é cuidadoso e, com as perspectivas ampliadas que uma animação permite ao se narrar uma história, consegue não somente dar voz a Wladimir Pomar, mas a uma voz coletiva, da história recente do país, não só da família, ou de quem foi vítima direta. “Como um remédio para acordar, esse trabalho foi rapinar uma história torturada do país e dos meus”, reflete Amanda. “No entanto, por mais que se expresse o caráter pessoal que foi o percurso para narrar este trauma, ele não me pertence, a história não me pertence”.  

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A diretora cita, ainda, o próprio Wladimir, que, no dia 11 de abril de 1980, fez uma fala que se dirigia a memória do pai, Pedro Pomar, um dos fundadores do Partido Comunista do Brasil, o PCB. “A herança de Pomar, uma herança digna de dos melhores revolucionários, não é patrimônio da família ou de qualquer grupo. Ela pertence a todo seu partido, a todos os revolucionários, à classe operária e ao povo explorado e oprimido”.  Naquela data, os restos mortais de Pedro Pomar foram trasladados de São Paulo ao Pará. 

A diretora conversou com a Focus para falar sobre o filme e o processo do trabalho. Leia abaixo:

Você deve ter crescido às voltas com o tema e as histórias de Wladimir Pomar. Como foi que nasceu a ideia do curta de animação?
A ideia não foi exatamente um clique espontâneo, com um ponto de virada, um nascimento. A ideia encaixou em um curso mais orgânico. Ocorre que vinha trabalhando com animação e ilustração no Estúdio Inhamis, estudando cinema na faculdade e houve a demanda de escrever uma espécie de pré-projeto para uma disciplina sobre economia do audiovisual. O que, abro um parênteses, é extremamente importante olhar para o tema: a prioridade que o Estado oferece para fomentar sua cultura e não deixar a cargo da iniciativa privada o financiamento das nossas produções, é determinante para quais narrativas serão contadas, quais leituras de mundo serão valorizadas e a quais fins nós trabalhadores do audiovisual estarão munidos para exercer sua produção. Logo, precisei definir qual história escreveria neste pré-projeto e o evento sempre foi uma sombra enorme, cedo ou tarde, teria de encarar essa tarefa, ler o passado e apesar de tudo, de todo o horror, fazer o meu trabalho, narrar essas imagens. No entanto, só foi possível tocar o projeto para frente, pois o estúdio abraçou essa tarefa. Refinamos tudo de cabo a rabo e inscrevemos em editais de financiamento audiovisual, quais foram fundamentais para que desenhássemos esse roteiro e seguíssemos nessa construção. Logo, a ideia não nasceu, ela foi pilada, trabalhada, costurada e reconstruída a várias mãos, sem o menor brilhantismo.

Conviver com memórias de um período tão devastador deve ser, em algum lugar, incômodo, porque já passou, não tem como mudar o que aconteceu. O filme é uma forma de dar uma resposta ao passado, seguir a missão?
O filme não sepulta os crimes que ocorreram. Aliás, é necessário dizer, o desfecho da ditadura não ocorreu com uma sepultura justa para o horror do período, afinal os criminosos foram anistiados. Agora, necessário, porque chegou a data de sessenta anos do golpe militar, neste estado de amnésia generalizada, me pergunto, minimizamos o nosso passado recente e nos predispomos a esquecer e, logo, a repetir? A postura de passar a data de aniversário do golpe em branco não é permitir enterrar o passado, afinal 8 de janeiro de 2023 foi há pouco. Portanto, o filme está depositado sobre um esforço de responder ao passado e mais grave ainda, uma mensagem urgente ao presente.

O massacre aconteceu quando se acreditava (em tese) haver conciliação e transição da ditadura militar à democracia. Que lição podemos tirar desse trauma, neste contexto, e qual relação histórica, na sua opinião, o evento tem com o tempo presente?
Nem na transição, nem agora. Os golpistas não merecem anistia nunca.

Como foi a reação de sua família ao ter contato com o trabalho?
Ao longo da pesquisa, a família contribuiu imensamente. Para começo de conversa, o roteiro começa como uma adaptação dos cinco primeiros capítulos da autobiografia ‘O Nome da Vida’ publicada em 2017, do Wladimir. A partir da adaptação desta escrita, tive a chance de entrevistar meus avós algumas vezes, antes de meu avô falecer e incluir a participação de minha avó no roteiro. Também, pela primeira vez, para o projeto, li um livro do jornalista Pedro Estevam Pomar. Seu relatório jornalístico sobre o massacre é simplesmente perturbador. No que diz respeito a matéria literária, aliás, é primorosa sua escrita, no entanto, a perturbação é correr os olhos por dados e dígitos que não são nada ficcionais. Lê-lo e saber o autor, saber o esforço em manter um texto com postura distante e investigativa, em plena impessoalidade para a matéria reportada. Correr entre as páginas dessa edição de 1986 e reconhecer o traço familiar do meu pai, rabiscando notas em bic azul ao longo do impresso, indicando aquilo que lhe sobressaiu, que chamou a atenção do irmão mais novo.
Uma porção de memória e um pouco de sonho: Com minha prima, dias antes do Vô partir, contei de uma memória que me marcou e que pra nossa surpresa, ela havia sonhado algo maravilhosamente semelhante dias antes. Me pareceu uma boa forma de encantar o começo do filme celebrando a alma sábia em forma de pipa vermelha. Saudade grande do Vô.

A operação militar na Lapa

Em dezembro de 1976, parte do Comitê Central do PCdoB se reuniu para analisar a derrota da Guerrilha do Araguaia e debater novas estratégias de resistência. Na madrugada do dia 16, enquanto se dispersavam, foram perseguidos e cercados numa operação minuciosamente planejada que terminou com três mortes, além de militantes presos e torturados. A chacina é considerada um dos últimos grandes crimes do governo militar, que terminou anos depois. 

Wladimir Pomar 

Wladimir Pomar (1936-2023) nasceu em Belém do Pará, filho de Catarina Torres e de Pedro Pomar, dirigente comunista e uma das vítimas do Massacre da Lapa. Em 1989, Wladimir foi coordenador da primeira campanha de Lula à presidência.

Em 1949, aos 13 anos, Wladimir também se tornou militante do Partido Comunista. Nos anos 1950, atuou no movimento estudantil e no movimento sindical metalúrgico. Nos anos 1960 e 1970, foi dirigente do PCdoB. Preso em 1964, por resistir ao golpe militar, viveu na clandestinidade até ser novamente preso em 1976.

Nos anos 1980, ingressou no PT e fez parte da executiva nacional do partido, coordenando o Instituto Cajamar e a campanha Lula Presidente de 1989. Ao longo de sua vida, Wladimir escreveu diversos livros sobre a realidade brasileira e mundial. A autobiografia “O Nome da Vida” foi lançada em 2017 pela editora Página 13 e reeditada no ano seguinte pela Editora da Fundação Perseu Abramo.

Pedro Pomar

Em 23 de setembro de 1913 nasceu Pedro Ventura Felippe de Araújo Pomar — ou simplesmente Pedro Pomar, como ficaria conhecido. Foi figura central na reconstituição do Partido Comunista do Brasil na Conferência da Mantiqueira, em 1943, e na memorável campanha pela constitucionalização do país, em 1945 e 1946. Assumiu, no final de 1945, o comando do jornal Tribuna Popular, que se tornou uma trincheira de resistência democrática no governo autoritário do general Eurico Gaspar Dutra. Nesse período, foi deputado federal. Foi também um dos que sustentaram a reorganização do Partido, em 1962. Em 16 de dezembro de 1976, morreu fuzilado no cerco da ditadura militar à casa em que a direção do PCdoB se reunia, um episódio conhecido como Chacina da Lapa.`

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