‘Now and then’ é uma bela canção de Lennon, capaz de promover uma descarga emotiva às vésperas do aniversário de 43 anos de sua morte. E apesar dos muxoxos de alguns, ainda é melhor do que muito do pop produzido neste melancólico ano de guerras

O derradeiro single dos Beatles, o canto do cisne que sela o baú de John Lennon, causou frisson nas redes sociais, levou a um recorde de compartilhamento e acesso à canção nas plataformas de streaming nos últimos dias — no YouTube, o clipe foi visto por 10 milhões nas primeiras 20 horas desde que foi ao ar, na sexta-feira, 3; enquanto o áudio foi ouvido por 6,4 milhões de pessoas nas primeiras 44 horas. 

“Now and then” é sucesso. E é uma bela canção. Talvez mais bonita que “Free as a bird” e “Real love”, as duas faixas lançadas nos anos 1990 pelos três beatles sobreviventes no projeto “Anthology”. É difícil não se emocionar com a audição da balada de Lennon, o arranjo cativante e charmoso feito por Paul McCartney e Giles Martin. 

E o videoclipe, dirigido e montado por Peter Jackson, é também emocionante, porque resgata imagens dos quatro ao longo da carreira, os bastidores da tentativa de gravação da faixa em 1994 e até cenas raras, combinando imagens de Paul e Ringo Starr feitas no ano passado ao lado de versões de Lennon e George Harrison em 1967, durante as gravações de “Magical Mistery Tour”. 

A letra de Lennon também impacta, porque nos leva à triste constatação da ausência dos dois geniais amigos. “De vez em quando eu sinto sua falta / De vez em quando eu quero que você esteja lá para mim”. Também é comovente o solo de slide tocado por Paul que evoca imediatamente George, na lembrança da linda “My Sweet Lord”. Ele toca somente os violões na faixa, junto com Paul. Impossível não se deixar envolver também pelo arranjo de cordas de Giles Martin, que deixaria seu pai, o velho George Martin, falecido em 2016, certamente orgulhoso.

A tecnologia resolveu muito bem os problemas com os vocais de Lennon, que não são nada parecidos com aquela relíquia fantasmagórica que flutuava em “Free As a Bird”. A voz de Lennon realmente soa clara, como se tivesse sido gravada hoje. E Paul deixa o velho parceiro brilhar, apenas emprestando a sua voz, muito baixa na mixagem, junto com Ringo, para o coro e os vocais de apoio. Quase dá para imaginar que são os Beatles realmente tocando juntos.

Devemos a Paul, o homem que oficialmente explodiu os Beatles ao anunciar sua saída da banda em 1970, o resgate da canção. Se dependesse de George Harrison, ela não seria lançada. Não é que o beatle quieto não a achasse boa — nunca saberemos — mas ele via a voz abafada de Lennon misturada ao piano um problema intransponível em 1994. O problema foi superado três décadas depois com IA. E Paul decidiu recuperá-la.

Fez o mesmo ao entregar todas as filmagens de “Let It Be”, o filme fracassado que assustou os fãs nos anos 1970, para que Peter Jackson pudesse recuperar a história do grupo que revolucionou a música pop e fez o século 20 nos encher de esperança. Paul McCartney conseguiu um feito e tanto. Encerrou de maneira emocionante e digna a história da mais criativa banda de rock de todos os tempos. 

Na canção, Lennon entoa os versos com Paul: “Now and then”/ I miss you/ Oh, now and then/ I want you to be there for me”. Traduzindo: “Sinto sua falta e quero que você esteja lá para mim”. Mas foi Paul quem acrescentou: “sempre para voltar para mim”. •

`