“Todos Juntos”, coletânea de toda produção ficcional de Vilma Arêas, é oportunidade para redescobrir a versatilidade dessa escritora singular

Bia Abramo

Vilma Arêas é um desses segredos bem guardados da literatura brasileira. A escritora e tradutora escreve e publica desde o final dos anos 1980 (“Na Tapera de Santa Cruz”, 1987), ganhou três prêmios Jabuti e teve uma carreira sólida como docente de teoria literária na Unicamp. O perfil discreto e algo avesso aos rituais contemporâneos de divulgação de obra literária – a maratona de lançamentos, entrevistas e participação em palestras e rodas de conversa -, no entanto, faz de Vilma uma autora sempre a ser redescoberta.

A coletânea “Todos Juntos” oferece um mergulho em profundidade em seus textos desde a segunda metade da década de 1970 até este ano. A sensação de  profundidade reside em o livro estar organizado em ordem cronológica decrescente, ou seja, do mais recente ao mais antigo. Isso permite não apenas uma espécie de retrospectiva desses quase 50 anos de atividade literária como dá ao leitor uma espécie de mapa em 3 dimensões, de maneira que ele possa puxar os fios de memória e história que ligam sua produção.

É evidente que, sendo uma escritora da narrativa curta, a coletânea se presta a ser iniciada de qualquer ponto. No entanto, o tal mergulho será talvez mais proveitoso se a leitura começar pelo inédito “Tigrão” (2023), uma série de contos escritos durante a pandemia nos quais Vilma conta a história de uma estranha amizade ocorrida durante o período mais repressivo da Ditadura Militar. A rigor, os 15 fragmentos que compõem “Tigrão” formam uma mesma história cujas peças vão se encaixando aos poucos, mas a mestria de Vilma no manejo dos formatos permite que cada um deles seja lido e apreciado como um conto separado.

A cidade de São Paulo, com sua feroz desigualdade e sua eterna decadência, aparece como um dos temas recorrentes e objeto de observação aguda da escritora. Uma São Paulo, no entanto, habitada por personagens convulsos e confusos, tratados de forma menos ligeira que a da crônica, mas onde a delicadeza descritiva de cenas tomadas quase como instantâneos fotográficos típicas do que se chamou da crônica literária também emergem e confundem. Nos textos mais recentes de “Um Beijo Por Mês” (2018), “Trouxa Frouxa” (2000), a aspereza do tecido urbano de São Paulo é quase que a protagonista constante – quando não se confunde com a narradora.

Numa espécie de exercício, também aparecem textos em que a ficção vai no limite do ensaio, como nos 26 textos de “Partidas” (1976), ordenados pelas letras do alfabeto e nos quais as reminiscências e as reflexões desenham pessoas, objetos, animais e até conceitos matemáticos. E mesmo nesse  hibridismo, se ouve com clareza a voz inconfundível da escritora, uma voz de frases claras, de definições argutas e não sem um toque sutilíssimo de humor cerebral.

Na também curta, mas muito precisa, apresentação do organizador Samuel Titan Jr., o professor de literatura comparada da USP arrisca uma descrição quase definitiva: “Vilma embaralha em seus contos todas as cartas, as velhas e as novas, que a tradição desse gênero lhe pôs nas mãos, e vai da anedota cômica ao episódio rememorado, do retrato de perfil ao esquete dialogado com ecos de Martins Pena, do fragmento à história mais amarrada, da quase-crônica à quase-novela – quando não lhes apaga todas as fronteiras e nos deixa entregues, sem etiqueta nem muleta, à graça insólita ou à pungência idem de suas histórias.” 

Num país de grandes contistas, a prosa de Vilma Arêas fulgura como a de uma mestra “quase secreta”, tão afeita à experimentação e à invenção quanto à disciplina da tradição. Ter toda sua ficção disponível em “Todos Juntos” convida a descobrir – ou redescobrir, se  for esse o caso – essa escritora tão singular e autônoma do conto à brasileira.•

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