Áudio de entrevista publicado por Benjamin Moser na revista estadunidense The New Yorker causa polêmica no Brasil e abre uma discussão sobre exclusividade e ineditismo

Uma das escritoras brasileiras mais lidas e celebradas de nossa literatura, Clarice Lispector transformou-se num grande mistério para quem estuda sua obra. Em grande parte, pelo que se diz da aura de misticismo que sobrevoa a personagem, que a muitos soa como inspiração divina, sopro, algo de não humano, para além da compreensão. Mas também pelo muito de oculto que há em sua vida que, apesar de biografada e especulada por pesquisadores, permanece num limbo, escondida de nossos olhos e ouvidos em suas letras, sem muitos registros da voz falada.

Por isso, causou tanta euforia no Brasil a reportagem da revista americana The New Yorker, assinada pelo biógrafo Benjamin Moser, que “revela” uma entrevista “perdida” de Clarice Lispector, concedida aos amigos Afonso Romano de Sant’Anna, Marina Colasanti e João Salgueiro, gravada em 1976. A polêmica do ineditismo se instaurou no Brasil após a publicação de Moser na New Yorker, sobretudo com o termo utilizado: “lost”, perdido.

Justificando as aspas, a entrevista, de perdida, não tinha nada – mas que era cercada de “exclusividade”, sim, isso era. O que trouxe Moser aos leitores da New Yorker foi, na verdade, a inédita tradução para o inglês de pequenos trechos de uma entrevista já conhecida de pesquisadores (e leitores) da vida e da obra de Clarice.

Segundo a pesquisadora e biógrafa Teresa Monteiro, no Brasil a primeira publicação da entrevista ocorreu em 1978, em trecho transcrito e editado por Maria Amelia Mello na Revista Escritas. Em 1991, o Museu da Imagem e do Som, do Rio de Janeiro, a quem pertence o arquivo, publicou uma primeira transcrição do conteúdo, mas não ipsis litteris, omitindo detalhes importantes, aparentemente irrelevantes. A transcrição do MIS foi publicada na obra “Outros Escritos” (Rocco, 2005), coleção de textos sobre Clarice organizada por Monteiro e pela escritora Licia Manzo. Continuávamos, então, sem acesso à voz de Clarice, às nuances e sem acesso a sua verdade.

Não pára por aí: em 2013, Marina Colasanti e Afonso Romano de Sant’Anna publicaram a entrevista em “Com Clarice” (Unesp). Até então, nada de ouvirmos a voz da escritora. Outro detalhe que chama atenção é que a canadense Claire Varin, jornalista, escritora e tradutora que se encantou por Clarice ao ler uma tradução francesa de “A maçã no escuro”, já havia citado a tal entrevista perdida em 1987, quando publicou trechos dela no exterior em “Clarice Lispector: Reencontre Bresilienne” (Trois), em que cita a duração da gravação que ouvira no MIS, de uma hora e trinta e cinco minutos.

Seria, portanto, um absurdo Moser dar caráter de ineditismo à entrevista e legítima a reclamação de brasileiros que não vão muito com a cara do americano. Não fosse por um detalhe: foi ele quem primeiro apresentou um bloco inédito da entrevista a que teve acesso, uma edição de 45 minutos da íntegra. E foi Moser que deu à entrevista, de forma isolada, a importância devida, sem fragmentá-la.

Ora, que mistério tem essa entrevista que nunca nos foi revelada, antes, na íntegra? Aparentemente, a exclusividade e a manutenção de uma Clarice oculta. Se até Claire Varin, no final dos anos 80, os meios não fossem realmente tão multimídia como se tornaram ao desenrolar do tempo, e a transcrição fosse a melhor forma de preservar e disseminar algum conteúdo, já faz um bom tempo que há canais que proporcionam ambas as situações: a preservação e a divulgação, de forma intacta, de um material que estava no escuro.

A princípio, podemos analisar que, ainda que publicada em obras específicas sobre Clarice, como mostramos aqui, e escondido no MIS, os 45 minutos de áudio divulgados por Moser eram inéditos para brasileiros tanto quanto sua tradução editada para o inglês para os anglófonos. E foi justamente a partir destes 45 minutos inéditos que, magicamente, a íntegra apareceu no YouTube no canal “Letrasinverso”. Nunca celebrados — ou até mesmo ignorados — alguns trechos estão perdidos no site desde 2020 sob a alcunha de “entrevista raríssima”, com poucas visualizações até que Moser chamasse holofote diretamente a ela.

Uma das mais ferrenhas críticas da publicação de Moser na New Yorker, a diretora Taciana Oliveira construiu seu documentário sobre vida e obra de Clarice Lispector com base em sólidas pesquisas acadêmicas de pesquisadoras brasileiras e costurou a condução do filme com trechos desta perdida e “raríssima” entrevista de Clarice.

O filme de Taciana, “A descoberta do mundo” não foi exatamente um sucesso, mas é certamente um marco na produção audiovisual. Antes de Taciana, outra pessoa a nos iluminar com um trecho do, aparentemente, Santo Graal de Clarice, foi a sobrinha-neta da escritora Nicole Algranti, que fez um curta-metragem sobre a tia-avó em 2007, em que constava também alguns trechos editados da gravação de 1976.

É compreensível que críticos de Moser (a aqui vamos nos ater a Moser somente em relação a essa entrevista) tenham se enfurecido com o termo escolhido pela New Yorker para publicar a entrevista e a falta de menção em seu texto aos créditos do histórico que o material tem em publicações e pesquisas ao longo de décadas, mas será mesmo que a entrevista não estava um tanto quanto perdida?

Qual razão de tanto furor? Por que nunca havia sido publicada no Brasil? Quando a entrevista foi publicada como fim em si mesma, como entrevista? Parece haver uma insistência em manter Clarice Lispector como um oráculo, cheio de surpresas e camadas intocadas (ou intocáveis) para que, de tempos em tempos, ela possa ressurgir em suas próprias palavras, caladas, escondidas até então.

FUROR A publicação da entrevista na New Yorker causou polêmica no Brasil

A questão é que não faz sentido a briga pelo ineditismo, se já conhecíamos, por escrito, as palavras de Clarice. Ouvi-la é que faz toda a diferença. O único registro sólido em audiovisual que tínhamos até então, a famosa “última entrevista de Clarice”, gravada meses antes sua morte, era sua fala condutora para nossos ouvidos.

Nesta entrevista, concedida a Júlio Lerner para a TV Cultura, vemos um Clarice que, inclusive, avisa: “Não estou triste, só estou cansada”. Virou até meme, em razão de termos ali uma Clarice profundamente melancólica, deprimida, sem muita vontade de viver. E assim ficou eternizada no imaginário de muitos brasileiros, inclusive pela descrição de amigos, como Caio Fernando Abreu, que a dizia “tristíssima”, a tal ponto de sua tristeza doer nele, uma autora bêbada de sua própria melancolia traduzida em literatura.

Agora jogada à luz, a gravação na íntegra da entrevista concedida por Clarice a Afonso Romano de Sant’Anna, Marina Colasanti e João Salgueiro revela-se não somente um depoimento, mas uma saborosa conversa entre amigos. Uma Clarice que saboreava a vida, fazia pausas para beber água e Coca-Cola, que pretendia não morrer, senão viver mais um século, que ria, que gargalhava.

Por que nos privavam da gargalhada de Clarice? Por que, desde o primeiro relato de contato com o material, de Claire Varin, até hoje, mais de 40 anos depois, nunca tivemos acesso a esse material? Se tanta gente já o conhecia e se já havia sido, inclusive, trechos em áudio publicados, fica impossível não celebrar o efeito “New Yorker” após a publicação do material. 

Aquela que sempre buscou, assim lemos, uma tradução da vida por meio da literatura, diz ali sobre seu processo de escrita, desmistifica o sobrenatural de sua criação e se revela, para surpresa de muitos, uma mulher comum, uma escritora de ofício, por mais que negasse o caráter profissional ao dizer que só escrevia quando queria. A entrevista que de tão exclusiva acabou excluída por tantos anos, nos confirma o que ela vem martelando há anos na gravação da TV Cultura: Clarice não estava triste, só estava cansada. •

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