Dramaturgo lutou durante 40 anos, pelo direito à revitalização do Bixiga, em São Paulo. Briga de um ousado sonhador contra o poder econômico e a indústria imobiliária

Nabil Bonduki

Em 65 anos ininterruptos de atividades, a genial, fecunda e onírica obra do diretor do Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, José Celso Martinez Correia, o nosso querido Zé Celso, pode ser analisada sob múltiplos ângulos.

Optei por abordar aqui apenas de um dos aspectos dessa trajetória, que me envolveu diretamente e que ainda poderá ter forte impacto em São Paulo, se seu sonho virar realidade: proteger o entorno do Oficina da especulação imobiliária e devolvê-lo para a cidade como espaço público voltado para a cultura, o meio ambiente e a cidadania.

Na longa disputa entre Zé Celso e o Grupo Silvio Santos por esse território, vimos um Davi enfrentando um Golias. Uma luta que, como a de Canudos contra o exército da República que o diretor levou para o Oficina, poderá se tornar um novo um espetáculo epopeico no Teat(r)o. Um Davi que apenas com sua voz, seu corpo, seus gestos e, sobretudo, sua liderança sobre outras vozes, corpos e gestos, resistiu a um poderoso império econômico, político e midiático.

A voz vigorosa e contestadora desse Zé Celso daviníaco conseguiu o inusitado: impedir por 43 anos que aquele pedaço de chão urbano virasse mais um amontoado de edifícios privados despersonalizados e de pobre arquitetura como qualquer outro lugar da cidade.  A perseverança de Zé Celso foi tornando aquele lugar sagrado.     

Quando, no início dos anos 1980, ainda no ocaso da ditadura militar, o Grupo Silvio Santos, decidiu adquirir todo o quarteirão onde fica o Oficina, entre as Rua Santo Amaro, Jaceguai e Abolição, poucos acreditavam que um diretor de teatro considerado meio maluco pudesse conter o poder econômico. O Oficina ficava em um prédio alugado, que estava em péssimas condições, depois de Zé Celso ter sido perseguido pela ditadura e ter deixado o país em 1974.

Com o apoio do regime, o Grupo SS crescia vertiginosamente. Em 1981, o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) obteve irregularmente a concessão de dois canais de televisão em São Paulo e no Rio de Janeiro. Logo o SBT se tornaria a segunda rede de TV em audiência.  O grupo virou uma potência, com tentáculos em inúmeras atividades econômicas: além das TVs, rádios e do famoso Baú da Felicidade, agregou banco, imobiliária, exportadora de alimentos, hotéis, cosméticos, capitalização, seguros, entre outras 38 empresas.

Comprando lote após lote, derrubando casa após casa, o SS foi cercando, sitiando o Oficina. O plano inicial do grupo era construir um prédio com mais de cem metros de altura para sua sede. Depois, um shopping center. Finalmente, torres residenciais, cujo projeto continua a tramitar na prefeitura. 

A primeira conquista de Zé Celso, em 1982, foi o tombamento do teatro pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico e Turístico do Estado (Condephat), em uma época em que, apesar da ditadura, os conselhos de patrimônio ainda não estavam tomados, como estão hoje, pelo poder econômico.

Desesperado com a provável demolição do teatro, Zé Celso foi em cortejo até a Secretaria de Cultura, sem marcar audiência. O depoimento do ex-secretário de Cultura João Carlos Martins é ilustrativo da maneira como Zé Celso passou a lutar para alcançar um objetivo utópico, mesclando manifestação cénica com militância política:  “Me falaram que havia 50 pessoas com roupas coloridas querendo invadir a secretaria, e que chamariam a polícia para impedir. Quando soube que era Zé Celso, liberei a entrada. Os atores galgaram os degraus, cantando ‘salvem o Teatro, temos que tombar o Oficina’’’. 

Martins perguntou: “Zé, para quando você precisa desse tombamento?”. E ele: “Para ontem”. A mesma ousadia que tinha na criação teatral, Zé Celso tinha na disputa política. A palavra ‘ousadia’, assim como ‘irreverência’, fazia parte do seu dicionário.

Com o apoio do secretário e do então presidente do Condephaat, o geógrafo Aziz Ab’Saber, em poucos dias o conselho se reuniu e aprovou o tombamento. Segundo o ex-secretário havia pressa também porque, naquele período da ditadura militar, “poderia aparecer uma ordem superior”, e o tombamento poderia ser barrado.

Após o tombamento estadual, vieram decisões semelhantes do município e da União. Uma trincheira foi cavada em torno do Oficina, mas a batalha se deslocou para o entorno. Qualquer construção nos arredores passou a necessitar de aprovações dos conselhos de patrimônio, mas não estava impedida. Iniciou-se uma longa batalha que ainda não se encerrou.

Entre 1982 e 1984, a arquiteta Lina Bo Bardi e os arquitetos Marcelo Suzuki e Edson Elito elaboraram um projeto de reconstrução do Oficina que extravasou os limites do seu terreno e o inseriu no contexto urbano. Foi proposta uma ligação e continuidade entre as ruas Jaceguai e Japurá – pelo interior do Teatro Oficina – com um outro acesso pela rua Santo Amaro, culminando, em seus encontros, em uma grande área livre, um teatro ao ar livre, com rampas, passarelas e, ainda, uma arquibancada coberta voltada para este espaço, compondo assim um espaço cênico unificado.

O projeto dialogava com as propostas cênicas do Zé Celso, do conceito de multidão, como um espaço sem fronteiras entre palco e plateia, criando uma espécie de rua que atravessa todo o teatro. O projeto de Bardi em parceria com Edson Elito para o espaço interno do teatro foi construído, com a rua interna, as arquibancadas, as grandes janelas e portas que relacionam o teatro com o entorno e a frondosa árvore, meio dentro, meio fora do edifício. O Oficina foi se tornando indissociável do seu entorno. 

Assim nasceu a proposta de criação de uma área pública no lugar dos prédios do Grupo SS, chamado por Lina Bo Bardi de Anhangabaú da Feliz Cidade, em alusão ao Baú da Felicidade que foi a marca registrada de Silvio Santos.  Obsessivamente, Zé Celso levou a ideia por 40 anos, em uma batalha insana e desigual. Uma verdadeira guerra cultural, com avanços e recuos.

Nos últimos tempos, com o retrocesso político do país, estado e município, o empreendimento do Grupo SS foi autorizado pelos conselhos de patrimônio, mas ainda assim ainda não obteve alvará de construção. 

Em contrapartida, com o tempo, a proposta ganhou novos contornos e atores. De uma arena cultural ligada ao Teat(r)o Oficina, evoluiu para um parque público, cultural e ambiental, o Parque do Rio Bixiga, que se articula com a proteção não só do teatro mas da Área de Proteção Permanente (APP) de um rio que, como muitos em São Paulo, está submerso no subsolo do terreno.

O sonho de Zé Celso se tornou uma luta pelo direito à cidade e ao ambiente do bairro do Bixiga, que agora envolve coletivos, movimentos e associações que visam uma cidade melhor. Mas a inclusão da área com parque proposto na revisão do Plano Diretor Estratégico, que propusemos, foi rejeitada pelo relator sob o argumento de que “não poderia expor o prefeito a uma pressão dessas”.

Como os ventos políticos estão mudando de lado e com a comoção gerada pela passagem de Zé Celso, esperamos que a última grande área pública do centro de São Paulo passa ser aberta para a cidade e para a cidadania. Seria a melhor homenagem a um dos mais importantes diretores de teatro do Brasil. •

`