Em plena ditadura, no pior momento dos anos de chumbo, a MPB sofreu um choque. Foi o ano das estreias dos Secos e Molhados, Fagner, Luiz Melodia, Raul Seixas e Sérgio Sampaio. Essas novas estrelas surgiam para dar uma sacudida na produção musical do país

Corria o ano de 1973 e as televisões de muitas casas brasileiras estavam ligadas no “Fantástico”, programa dominical noturno de variedades, espécie de revista televisiva que combinava reportagem, sensacionalismo, futebol e pequenos vídeos de música. Numa noite dessa daquele ano ainda sob o tacão da censura prévia da ditadura, anunciaram um novo grupo musical, chamado Secos e Molhados.

Três homens jovens, todos muito bonitos com cabelos longos e maquiagem teatral, apareceram num palco cenográfico. De repente, uma voz agudíssima começa a cantar algo que parecia rock, com uma segunda parte que lembrava um “vira” português.

A letra era fantasiosa, com imagens que se encaixariam bem numa peça infantil (“Bailam corujas e pirilampos/Entre os sacis e as fadas/ E lá no fundo azul da noite na floresta/ A lua iluminou/A dança, a roda, a festa”), mas o refrão e a coreografia do vocalista não deixavam dúvida sobre de que tipo de transformação se tratava: “Vira, vira, vira homem, vira, vira lobisomem”.

Ney Matogrosso, João Ricardo e Gérson Conrad fizeram história com um clipe improvisado, como aqueles que o “Fantástico” produzia. “O Vira”, a canção que estreou naquela noite da qual ainda me lembro com nitidez, cairia no gosto das crianças — inclusive aquela que eu era — e no desgosto das “senhoras de Santana” metafóricas: a ambiguidade sexual que emanava da performance em palco, as imagens perturbadoras da capa do LP homônimo que chegaria às lojas de discos em agosto de 1973 e a estranheza da música que não se encaixava em nenhum dos rótulos mais conhecidos.

Era uma aposta arriscadíssima, mas que foi vencida pela qualidade do inesperado — e pelo acerto de tentar trazer algo de novo. O ambiente da música popular brasileira em 1973 não era dos mais favoráveis. Depois do final dos grandes festivais de música na televisão, que funcionaram como uma vitrine de lançamentos das novidades, do exílio de alguns dos principais nomes surgidos nesse ambiente e da ação pesada da censura oficial, a chamada MPB amargou uma longa encruzilhada.

Se 1972, apesar da repressão política pesada do pós-1968, foi um ano de ouro, com o lançamento de discos considerados até hoje fundamentais na MPB por críticos e pesquisadores musicais, 1973 foi um ano de uma longa ressaca de grandes nomes.

Ao mesmo tempo, a MPB vendia — e muito. Claro que menos na comparação com um astro como Roberto Carlos ou os ritmos mais populares/regionais como samba, forró e até o que se convencionou chamar de “brega”, mas, ainda assim,  os herdeiros da era dos festivais e da bossa nova — Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Elis Regina, Milton Nascimento, entre outros —eram quase que garantia de boas vendagens e espaço na imprensa. Não à toa, a Polygram, gravadora que lançava e produzia a maior parte desses grandes nomes, promoveu em maio um festival que se tornou notável em São Paulo, no Palácio de Convenções no Anhembi. Chamou-se Phono 73.

Por horas, apresentaram-se num formato que hoje em dia chamaria-se de pocket shows “todo mundo” que importava: da dupla comportada formada pelo diplomata-poeta Vinicius de Moraes e o excepcional violonista Toquinho aos estreantes roqueiros hippies Raul Seixas e Sérgio Sampaio, do intricado Hermeto Paschoal ao Odair José, passaram por aqueles quatro dias em maio a fina flor da MPB.

Mesmo à época, com os jornais sob censura prévia, uma cena ficaria gravada na história: a letra de “Cálice”, a colaboração de Gil e Chico, havia sido censurada e já sofrido alterações. Gil e Chico não poderiam cantar a letra toda, mas resolvem apresentá-la mesmo assim, cantando os trechos liberados e vocalizando os proibidos. Mesmo assim, Chico teve seu microfone cortado e abandonou o palco, não sem antes fazer um minidiscurso contra a censura e soltar uns tantos palavrões.

Além das notícias sobre o gesto de Chico, o Phono 73 levantou outras polêmicas acirradas na imprensa da época, por conta do gigantismo do projeto, atrasos injustificáveis, qualidade de som etc. Ainda assim, rendeu três LPs que entraram nas paradas de discos mais vendidos e lá ficaram até o final do ano, que não teve lançamentos importantes das grandes estrelas.

Do grupo tropicalista, Caetano Veloso tinha iniciado o ano com o pretensioso “Araçá Azul”, disco em que ele tenta tomar passo com alguma ideia de vanguarda. Gilberto Gil não lançaria nenhum LP de estúdio naquele ano. A exceção seria Milton Nascimento, que depois do álbum duplo e coletivo “Clube da Esquina” em 1972, entrou em estúdio para gravar “Milagres dos Peixes”, o disco que aponta uma virada de rumos musicais — e que foi uma espécie de trauma para o cantor pois a censura vetou várias letras. As faixas desta pequena obra-prima foram gravadas mesmo assim, contando com o exuberante instrumental e a voz enorme de Milton.

Da mesma, forma Chico Buarque lançaria um disco igualmente mutilado naquele triste 1973, aquele que continha a trilha sonora da peça “Calabar, O Elogio da Traição” e que entrou nas lojas com o enigmático nome de “Chico Canta”.

Essa espécie de vácuo dos grandes nomes, no entanto, permitiu que além dos Secos e Molhados, outros artistas daquele ano tivessem estreias impactantes: Raul Seixas, com “Krig Ha Bandolo”, Sérgio Sampaio com “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”, Fagner com “Manera Fru Fru Manera – A Volta do Pau de Arara” e Luiz Melodia com “Pérola Negra”.

O “Krig Ha Bandolo”, de Raul Seixas faria uma trajetória semelhante à dos Secos e Molhados. De certa forma, pelas frestas vinha uma música brasileira já mais informada da contracultura, que ia além dos Beatles e Rolling Stones, mas que mantinha um lastro forte tanto o período anterior como com outras tradições da música brasileira para além da dupla tropicalismo-bossa nova.

A canção “Ouro de Tolo”, com sua letra que descrevia a crônica da classe média urbana, já desencantada das promessas da ditadura e do milagre brasileiro, também caiu nas graças do público. A sólida formação roqueira de Raul, que tocava guitarra e versões de rockabilly desde a adolescência, e sua experiência mais recente como produtor em gravadoras no Rio, produziram um álbum anguloso, com rocks experimentais como “A Mosca na Sopa”, e “Metamorfose Ambulante”.

Todos esses clássicos cantados no sotaque incontornável de soteropolitano de Raul, em cima de uma sólida cama instrumental, com batidas de baixo e bateria que, em alguns momentos, ecoavam baião e samba de roda baiano. A partir de “Krig Ha Bandolo” e de “Gitá”, o nome de Raul estaria plasmado como sinônimo de roqueiro e assim seguiria até a morte.

Outra estrela daquele 1973 foi Sérgio Sampaio, que conhecia Raul Seixas dos estúdios da Phillips, onde haviam gravado um LP completamente experimental: “A Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta a Sessão das Dez”. O álbum contava com as participações do cantor/transformista Edy Star e da cantora/humorista Miriam Batucada.

Além dessa experiência e de shows no circuito alternativos, Sérgio Sampaio tinha emplacado uma canção de sucesso no Festival Internacional da Canção de 1972. “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua” era um samba lento, nostálgico, cheio de gírias novas (“Há quem diga que eu dormi de touca/ Que eu perdi a boca, que eu fugi da briga/ Que eu caí do galho e que não vi saída/ Que eu morri de medo quando o pau quebrou”).

Sampaio caiu no gosto da juventude universitária e, em seguida, do grande público. Em 1973, já enfronhado no mundo musical carioca desde 1964, ele lançaria o primeiro LP solo, que levou o nome de seu hit. O amálgama de influências, que ia do samba à Jovem Guarda, com pitadas de lisergia, resultou num disco mal compreendido à época, mas que permaneceu como uma dessas pérolas perdidas da MPB, que a cada vintena de anos é redescoberto por novas gerações.

Num campo menos roqueiro e/ou psicodélico, viriam dois artistas que também surpreendiam pela rebeldia estilística. Da capa algo enigmática, que mostrava um Luiz Melodia de pouco mais de 20 anos segurando um globo terrestre dentro de uma banheira sobre um leito de feijões pretos (isso mesmo que você está lendo), às inflexões da voz de veludo que iam do samba de morro às profundezas do blues, “Pérola Negra” era um conjunto de novidades.

Claro que o fato das musas da Tropicália, Maria Bethânia e Gal Costa, terem gravado “Estácio Holly Estácio” e “Pérola Negra” antes eram uma espécie de selo de garantia. Mas o compositor revelaria em seu álbum lados inauditos. Uma certa retomada de um Rio de Janeiro imagético, na perspectiva do sujeito que descia o morro de São Carlos para chegar à Zona Sul, o samba na veia, associada a uma antena para outras músicas negras do Brasil e da gringa. Melodia selaria a partir dessa estreia um lugar privilegiado na MPB.

E, por fim, mas não menos importante, com “Manera Fru Fru Manera”, Fagner abriria as portas no Sudeste para a então nova canção nordestina. Ainda que, a exemplo de Melodia ele tivesse uma intérprete poderosíssima na figura de Elis Regina, que havia gravado “Mucuripe”, espécie de “canção do exílio” moderna em seu álbum de 1972, seu LP solo era todo estranho, com mix de canções folclóricas, metáforas ultra imagéticas para o galope que dá nome ao disco, uma versão de poema de Cecília Meireles e um agudo senso de choque a amarrar tudo isso — a começar pelo nome alternativo do LP, “O Último Pau De Arara”.

O sucesso cult desse disco de Fagner, um álbum não exatamente fácil ainda que muito diverso — há parcerias com o conterrâneo Belchior, o mineiro Ronaldo Bastos, participação de Nara Leão e do percussionista Naná Vasconcelos —, ajudou na formação daquilo que ficou conhecido como o “Pessoal do Ceará”, que ainda abrigaria Belchior, Elba Ramalho e Amelinha — e, por vezes, artistas de outros estados do Nordeste, como paraibano Zé Ramalho e o pernambucano Alceu Valença.

As marcas que essas estréias tão variadas teriam nesse estado meio de torpor daquele ano na MPB redefiniram, inclusive, até como se moveria dali em diante a geração anterior. E as novas contribuições, seja pelos ouvidos mais atentos ao que rolava nos Estados Unidos e na Inglaterra — o rock “pesado”, guitarreiro, o soul, o glam, o jazz rock —, seja pelo desejo de criar dentro de uma recém descoberta vastidão dentro mesmo da música brasileira continuam, meio século depois, ainda encantadores. •

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