“Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho” traça um perfil biográfico da cantora e compositora, uma grande pesquisadora de samba e música popular brasileira

Beth com Cartola, Beth com Nelson Cavaquinho. Beth com Elizeth e com Jovelina Pérola Negra. Beth com Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Arlindo Cruz. Beth cantando & gargalhando. Beth discutindo no estúdio. Na praia, no boteco, no show, no fundo de quintal. Ao longo de quase duas horas, a personagem que tenta se delinear nas telas a partir do documentário “Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho” é uma de uma cantora, compositora e instrumentista sem a qual o samba carioca entre os anos 1970 e 2010 não existiria.

Há, é claro, um pouco de exagero na afirmativa, mas pouco. Por que para além de sua carreira individual, notável com seus 39 discos de estúdio e incontáveis apresentações ao vivo, Elizabeth Santos Leal Carvalho era uma tremenda de uma arquivista. Documentava o que podia em vídeo, colecionava fotografias, papéis relativos ao seu trabalho como artista e sua vida pessoal. Uma das cenas que abre o filme, dirigido por Pedro Bronz, mostra Beth circulando nos arquivos da gravadora, com fitas master das gravações de discos, feliz como pinto no lixo.

O documentário nasceu, justamente, de uma conversa de Pedro Bronz com Beth. O diretor, também autor de um documentário sobre Herbert Vianna, convenceu a cantora a abrir seu acervo para começar a elaborar o documentário junto com o roteirista Leonardo Bruno. Isso a partir de cerca de 2 mil horas de memórias em formato de vídeo que passaram então por uma difícil curadoria até caberem em um longa-metragem de duas horas. Além disso,  a artista recebeu diretor e roteirista para entrevistas, algumas delas realizadas no hospital, pouco antes de sua morte em 2019.

Beth Carvalho nasceu no Rio de Janeiro em 1946. Cresceu num ambiente confortável de classe média (o pai era advogado) e teve aulas de piano, balé e violão na infância. Adolescente, acompanhava o pai em rodas de samba e ensaios de escola de samba. Boa violonista — chegou a ajudar no orçamento familiar dando aulas de violão —, Beth começou a carreira atraída pela bossa nova, como muitos jovens de sua geração.

No entanto, o samba de morro, de comunidade, de partido alto ou das famosíssimas rodas em bares e botecos espalhados pelo Rio de Janeiro falaram mais alto. Curiosamente, seu primeiro sucesso e canção que dá nome ao ao filme, “Andança”, composição de Danilo Caymmi, Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, não é exatamente um samba. É, antes, uma típica “música de festival” – tanto é que foi defendida por Beth num dos derradeiros festivais, o Internacional da Canção de 1968 e ficou num honroso terceiro posto, atrás apenas de “Sabiá”, de Chico Buarque, e de “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré.

A canção projetou a então jovem Beth Carvalho, com 22 anos, como cantora e rendeu um contrato com a gravadora EMI-Odeon. Seria nos anos 1970, numa gravadora menor, a Tapecar, que Beth encontra seu norte como pesquisadora de música popular brasileira e como sambista.  A partir daí, ela deslancha como uma incansável garimpadora de músicas, de músicos, de parceiros e atua quase como uma curadora de parcerias & encontros musicais.

Assim, ela foi atrás, por exemplo, do resgate de dois sambistas já então da velha guarda: Nelson Cavaquinho e Cartola. E, mais adiante, ajudou a colocar em relevo o pagode, o fundo de quintal nas relações profissionais e de amizade com Arlindo Cruz, Jorge Aragão e Almir Guineto.

A delicadeza e a alegria das cenas dos encontros artísticos, das jornadas musicais noite adentro, das cenas de gravação em estúdio conseguem dar essa dimensão inquieta de Beth Carvalho. Contar com um material de arquivo tão rico, variado e denso — em muitas das cenas, familiares, amigos ou parceiros comentam a “mania” de Beth de registrar tudo e todos praticamente sem filtro — contribui para uma narrativa fluida de uma biografia tão ligada ao fazer musical.

O perfil militante daquela que era chamada de “rainha do samba” vai se construindo de forma menos evidente. Beth, além de sua atuação como produtora e incentivadora da cultura popular, era politicamente engajada e teve papel relevante na redemocratização do país. Foi filiada ao PDT e participou da gravação da primeira versão de “Lula Lá”, em 1989. “Vou Festejar”, por exemplo, tornou-se quase um hino de comícios pelas Diretas Já  e em festas de comemoração de eleições.

Exuberante, guerreira, de voz forte e riso franco, Beth fez uma marca muito própria na história do samba e da música popular brasileira. Não apenas pela série de canções que compôs ou cantou, como “Coisinha do Pai”, “Saco de Feijão”, “1.800 Colinas”, “As Rosas Não Falam”, “Folhas Secas”. Ela quase  personifica uma espécie de espírito de um certo samba carioca que se constrói a cada esquina, a cada botequim, a  cada bairro; onde que quer que se encontrem um violão, uma superfície para batucar e uma poética que dê sentido a tudo isso.

Ainda que o samba e a música sejam tão personagens quanto a biografada, “Andança” vale também como um registro curioso de como algo aí se perdeu  na transição das filmadoras de VHS para as câmeras de vídeo de celular. Ainda que sejam gravações com algo de espontaneidade, feitas por Beth ou por seu motorista Carlos, em sua maioria, há nesses registros uma certa intenção narrativa mais alongada.

E é como se, ao flagrar uma cena, registrar um encontro, aquele que conduz a câmera já estivesse pensando em fazer parte de uma história maior. Em comparação com o que se faz hoje em dia com os celulares, em que pese a qualidade muito superior da imagem, a cena tem quase que se bastar sozinha para contar alguma coisa. •

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