Série coloca em xeque questões morais a partir do tensionamento e elasticidade de conflitos, refletindo um Brasil que assiste aos índices de violência e intolerância crescerem de forma vertiginosa. Segunda temporada já está garantida

Guto Alves

Na esteira de novas produções que têm abocanhado parte da audiência de uma nova dinâmica da dramaturgia brasileira — as séries televisivas —, a Globoplay tem buscado um modelo híbrido que, a princípio, funciona: lançar antes em seu serviço pago e, depois de testado o produto, alçar voo no sinal aberto da emissora, a TV Globo.

“Os outros”, série criada e escrita pelo roteirista Lucas Paraizo (“Sob Pressão”), com direção de Luisa Lima, é um exemplo de como o Brasil tem histórias próprias para contar sem precisar recorrer a chavões enlatados do audiovisual norte-americano. A produção é sucesso absoluto, obtendo até agora a maior audiência da plataforma.

Aliás, não é só nos números de audiência que a produção se garante – público e crítica se uniram numa rara unanimidade. Às quartas e sextas (o último episódio foi ao ar na sexta-feira, 7, depois do fechamento desta edição), redes sociais como Twitter, TikTok e Instagram são inundadas por exaltações ao episódio mais recente.

O ingrediente principal da dramaturgia de Paraizo é a tensão. É de onde parte toda a história. Quando se diz de uma história brasileira narrada, dentre as tantas possíveis, é por que o argumento que guia os conflitos e os arcos dramáticos que se desenvolvem ao longo da série conseguiu capturar, com múltiplas lentes, o ambiente de violência latente e tensionamento social e político, ainda que não explícito, vividos no Brasil desde 2018, acirrados com o que aconteceu no país durante a pandemia iniciada em 2020 e o que restou de nós depois disso. Muito rancor, um ódio desorganizado e uma enorme vontade de partir para a briga. O diálogo se faz quase impossível e a reação deu lugar à conciliação.

Na produção, tudo começa na quadra de um destes condomínios que formam ilhas de isolamento e criam microcosmos na Barra da Tijuca e em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Uma briga entre dois adolescentes, um mais calmo, outro mais agressivo, arquétipos fáceis de se encontrar em qualquer sala de aula e, claro, em qualquer quadra de condomínio. Um deles bate, o outro apanha. Os pais se envolvem e vira caso de polícia. A partir daí, desencadeia-se uma série de acontecimentos que se desdobram em outras tramas.

O espectador, que antes se interessava exclusivamente pela briga inicial que, a princípio, revelava uma família “do bem” e outra “do mal”, é guiado da área comum para dentro dos apartamentos das várias torres distribuídas no enorme terreno. O bom e o mau são conceitos que se dilatam à medida que conhecemos melhor as personagens e seus conflitos.

Enquanto as portas de apartamentos se abrem e reuniões de condomínio acontecem, o enredo elástico chega até à milícia do Rio, que tem tomado conta da segurança de diversos territórios da capital fluminense. E, bem como a série mostra, com conchavos com a síndica, incentivando e criando violência para depois proteger os moradores mediante pagamento.

Logo de cara, destaca-se a atuação de Drica Moraes como a síndica corrupta Dona Lúcia; de Milhem Cortaz, como o macho alfa de masculinidade frágil e comportamento agressivo; Maeve Jinkings, como a dona de casa infeliz que tenta se desamarrar da vida frustrada e de Eduardo Sterblitch, como o miliciano canastrão.

Destoa um pouco o tom da representação do personagem Amâncio, vivido por Thomas Aquino, que encarna também um personagem difícil de engolir de tão inverossímil: em que Brasil um vendedor de lojas de varejo consegue sustentar uma família com filho em escola particular, esposa sem trabalhar e bancar dois apartamentos num condomínio de classe média na Barra da Tijuca? Aqui houve um descolamento de realidade. 

A série tem ares de superprodução, com elenco estrelado e direção artística irretocável de Luisa Lima, que em alguns momentos lembra Almodóvar, não no estilo, mas na assinatura de cores, luz e sombra. A série foi toda gravada em locações, em um condomínio na Barra, que hoje encontra-se com diversas unidades desocupadas.

O elenco estrelado ajuda a engatar tramas que às vezes engatinham: Drica Moraes toma para si parte da série, a vida de sua personagem, a história da síndica Dona Lucia, por ser mais interessante que os conflitos vividos no condomínio.

Bom, essa é uma primeira impressão ao ver os seis primeiros episódios, mas a partir deste ponto compreende-se melhor a intenção da criação, que não é apresentar um enredo que gire em torno de uma trama principal, mas sim um enlace de histórias que escalam, crescem e chegam ao ápice da violência, do horror e do cotidiano mais cru possível dos dramas humanos. Isso enquanto o espectador vive o amor, o rancor, o ódio, a corrupção, a ética e a moral. Está tudo em xeque. •

OS OUTROS

Onde assistir: Globoplay

Direção: Luisa Lima

Criação: Lucas Paraizo

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