Sai a lista dos clássicos da MPB e que encabeçam a lista  das mais gravadas de todos os tempos. Depois da obra-prima de Tom e Vinícius, “Carinhoso” e  “Aquarela do Brasil” estão em segundo. Mas tem uma surpresa: uma canção de cantor gospel-sofrência

O que que a “Garota de Ipanema” tem para estar no topo da lista de canções mais gravadas de todos os tempos? Em primeiro lugar, muita sorte. A canção de  Vinicius de Morais e Tom Jobim, gravada pela primeira vez em 1962, é marco da bossa nova. Os golpes de sorte foram pelo menos dois: no ano seguinte, quando João Gilberto juntou a Jobim e Stan Getz em Nova York, recebeu uma versão da letra em inglês do canadense Norman Gimbell.

O plano era tomar os Estados Unidos com a bossa nova, o que não aconteceu exatamente, apesar da lenda. Na verdade, os shows organizados naquele período, foram bem sucedidos pela crítica e tornaram os músicos brasileiros conhecidos no circuito de jazz. A canção, no entanto, teve mais alcance, pois com a letra quase turística agora em inglês pode correr o mundo. Foi gravada por Ella Fitzgerald, Frank Sinatra, à época, e atravessou gerações, nas vozes de Cher, Plácido Domingo e Amy Winehouse.

É ela quem encabeça a lista elaborada pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) com as canções brasileiras mais gravadas de todos os tempos. O hino da bossa nova segue sendo o carro-chefe, 60 anos depois. Destino semelhante tiveram “Aquarela do Brasil” e “Carinhoso”, empatadas em segundo lugar.

Ary Barroso compôs a primeira, um samba lento e pedagógico, em 1939. Carmen Miranda e o Bando da Lua popularizam a canção, cuja letra é, de fato, uma apresentação do Brasil para o mundo, a partir dos Estados Unidos, onde Carmen fazia enorme sucesso tanto nos palcos quanto na tela grande.

Já o choro de Pixinguinha é anterior: foi composto em 1917, mas gravado pela primeira vez apenas em 1928 na versão instrumental. Ganhou letra de João de Barro no final em 1937 e, na voz de Orlando Silva, fez sucesso na era do rádio. Ao receber uma letra, à complexidade das camadas instrumentais do choro (com flauta, saxofone, violão) somou-se uma letra suave, que transformou a canção de Pizindim uma dos maiores clássicos do cancioneiro romântico nacional. Aqui, foi gravada por quase todos os grandes nomes da MPB, mas também entrou em terras estrangeiras quando surgiu na trilha do filme “Romance Carioca” (1950).

Na terceira posição, “Asa Branca” representa a força da dupla Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Com letra de uma pungência dolorosa, toda construída por metáforas sobre as terríveis secas do Nordeste que provocaram migrações em massa desde os anos 1940 para o Sudeste, “Asa Branca” contrasta fortemente com o estilo exaltação de “Garota de Ipanema” e “Aquarela do Brasil”. O carisma enorme de Luiz Gonzaga, com voz que não escondia sotaque, o vestuário de vaqueiro e habilidade na sanfona, ajudou a popularizar o forró, o baião, o xote; em suma, os gêneros híbridos comuns aos estados que compõem hoje a região Nordeste.

De certa forma, o mesmo contraste pode ser visto em “As Rosas Não Falam”, de Cartola, sambista de morro e de asfalto que enfrentou o anos de ostracismo e pobreza. Redescoberto em justo quando a bossa nova fazia sua aparição na Zona Sul, ao final dos anos 1950, e de volta ao Morro da Mangueira, Cartola brilhou no bar Zicartola, dele e da esposa Dona Zica, no centro do Rio. As rodas de samba do bar tornaram-se ponto de encontro de várias gerações de sambistas, incluindo os “bossas novas” mais atilados — a jovem Beth Carvalho entre eles.

Em 1974, o produtor e pesquisador musical Marcus Pereira gravou o primeiro LP solo de Cartola. Foi no segundo, conhecido como “Cartola 2” e que tem a foto clássica de Cartola e Dona Zica, que está registrada “As Rosas Não Falam”. Letra de delicadeza poética rara — Cartola, além de compositor extraordinário, era leitor atento de poesia brasileira — e melancolia profunda, “As Rosas Não Falam” devolvia ao samba clássico sua real grandeza. Quase escorregando da lista, na nona posição e precedida por mais clássicos da Bossa Nova (“Manhã de Carnaval”, “Eu Sei que Vou te Amar”, “Corcovado”, “Wave”, “Chega de Saudade” e “Desafinado”), Cartola vem sendo continuamente redescoberto e saudado desde então.

A curiosidade da lista, no entanto, é o sucesso instantâneo e acachapante de Jessé Aguiar, compositor nascido em Goiás que, apesar da juventude (nasceu em 2002), tornou-se astro no circuito da música gospel ainda adolescente.

O gospel é a versão cristã de muitos gêneros musicais distintos, que abrange do metal ao sertanejo, do hip hop ao axé. O ponto de encontro são as letras, com referências religiosas, que podem tanto ser cantadas em cultos evangélicos, como nas rádios e programas de televisão. Em geral, forma um circuito completamente à parte de gravadoras e selos maiores, cria um sistema próprio de estrelas e de fãs, alimentados por sites como Super Gospel e Fuxico Gospel e, claro, pelas redes sociais.

Aguiar deu sorte de capturar a atenção da dupla do feminejo Maiara & Maraísa, que cantaram um de seus hits no velório de Marília Mendonça, em novembro de 2021. Essa notoriedade, ainda que ambígua, valeu entradas nas paradas do Spotify e prêmios da imprensa especializada, além de dezenas de regravações pelo Brasil. Considerado grande promessa para a música cristã contemporânea até o início deste ano, Jessé abandonou o gospel, depois que assumiu o namoro com outro homem.

A entrada da música gospel no time fechado da “grande canção brasileira”, aquela capaz de atravessar fronteiras ou de representar a “alma do Brasil” para brasileiros e estrangeiros, feito que nenhuma das formas mais populares dos últimos anos, incluindo o sertanejo, não alcançou, significa, no mínimo, que essas vozes vieram para ficar. E durma-se com um barulho desses. • 

AS MAIS GRAVADAS DE TODOS OS TEMPOS

1. ’Garota de Ipanema’, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes: 442 gravações

2. ‘Aquarela do Brasil’, de Ary Barroso, e ‘Carinhoso’, de Braguinha e Pixinguinha: 430 gravações, cada

3. ‘Asa Branca’, de Humberto Teixeira e Gonzagão: 382

4. ‘Manhã de Carnaval’, de Luiz Bonfá e Antonio Maria: 337

5. ‘Eu Sei que Vou te Amar’, de Tom e Vinicius: 279

6. ‘Corcovado’ e ‘Wave’, de Tom Jobim: 261, cada

7. ‘Chega de Saudade’, de Tom e Vinicius: 257

8. ‘Desafinado’, de Tom Jobim e Newton Mendonça: 245

9. ‘As Rosas Não Falam’, de Cartola: 235

10. ‘Está Tudo Bem’, de Jessé Aguiar: 220

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