Há dez anos, nos idos de junho, quando eclodiram as manifestações populares, já era claro que se avizinhava um enfrentamento político de largas proporções, embora ainda parecesse limitado às normas constitucionais e democráticas. Eu estava à frente do governo, mas as elites já não queriam a manutenção do projeto popular de poder

A disputa em 2013


Dilma Rousseff

São extremamente relevantes o estudo e o debate sobre os acontecimentos que tiveram curso em junho de 2013. Trata-se de um dos mais destacados episódios de nossa história recente, refletindo e concentrando algumas das principais armadilhas de uma transição democrática ainda inconclusa, cujo avanço esbarra em formidáveis interesses econômicos e políticos.

Na condição de presidenta da República, coube-me a missão de compreender aqueles fatos e agir com rapidez. Estava claro que se tratava de uma duríssima disputa, entre os dois grandes blocos que se confrontam pelo destino de nosso país. Estarrecidos pela eclosão das manifestações, de origem fortemente espontânea e localizada, esses dois campos passaram a atuar para influir sobre a voz das ruas e atraí-la para o fortalecimento de seus projetos.

Um desses campos, representando as frações hegemônicas das elites internas e seus sócios internacionais, vinculava interesses e ideias às chamadas reformas liberais. Com o objetivo principal de atrair fluxos de capital, defendia medidas que pudessem assegurar negócios de alta lucratividade e baixo risco: privatizações, desregulamentações, achatamento de salários e direitos, persistentes taxas reais de juros, controles dos fundos públicos, cartelização do sistema de crédito, proteção do monopólio da terra e associação subordinada aos Estados capitalistas centrais.

O outro campo estava no governo desde 2003 e dera início a um difícil processo de mudança do modelo econômico, no interior de um sistema político construído para impedir que as classes trabalhadoras e seus partidos formassem maioria no parlamento e demais instituições.

Para este setor, o desenvolvimento passaria principalmente pela ampliação do mercado interno de massas, o que dependia de políticas capazes de desconcentrar renda e riqueza, ao mesmo tempo em que colocava o Estado como a locomotiva de um novo ciclo de desenvolvimento, afirmando a soberania do país com uma política externa multilateral e multipolar.

Nos idos de 2013 já era claro que se avizinhava um enfrentamento de largas proporções, embora ainda parecesse limitado às normas constitucionais e democráticas. O campo conservador ensaiava uma ofensiva para desgastar a coalizão democrático-popular e impor-lhe uma derrota frontal, retomando o governo nacional nas eleições seguintes, em 2014, ou se preparando para adotar o caminho golpista.

Os protestos ocorridos em junho de 2013, surpreendentes e multitudinários, representaram um momento antecipado de confronto. Nasceram com reivindicações municipais ou estaduais, em geral de caráter progressivo, orientadas para serviços públicos melhores e mais baratos. Mas logo o jogo mudou.

As forças mais conservadoras, contando com meios muito superiores de comunicação, além de recursos financeiros e conexões internacionais, puderam assumir uma relativa dianteira e explorar as mobilizações para arremetê-las contra o governo, trocando as aspirações originais por um difuso e fabricado discurso contra a corrupção.

Os partidos e movimentos de esquerda tiveram mais dificuldades para o embate, o que revelava um problema crônico, até hoje não resolvido: o baixo grau de educação política, organização e mobilização das forças populares.

Por enxergar aqueles acontecimentos como uma disputa, meu esforço foi apresentar um programa de cinco pontos que atendesse e fortalecesse as demandas progressistas. Ao lado do compromisso em manter os gastos do governo sob controle, propus investimentos pesados em saúde, educação e mobilidade urbana, incluindo o direcionamento de parte da renda obtida pela exploração do pré-sal através do modelo de partilha.

O quinto ponto era a convocação de uma Constituinte exclusiva para reformar o sistema político-eleitoral. Claramente esbarramos, então, em uma correlação desfavorável de forças, que levou à retirada desse quinto ingrediente do pacto apresentado. Este ponto teve seu encaminhamento parlamentar e institucional bloqueado.

As propostas feitas, excluída a Constituinte, foram rapidamente aprovadas por um parlamento bastante assustado. Possivelmente tenham sido relevantes para recompor a base social do campo progressista, preparando a corrida presidencial de 2014. Não conseguimos, no entanto, marchar para uma reforma estrutural da política brasileira.

Continuo convencida de que esse é um tema central, diante de um sistema falido e pouco democrático, que serve de contenção à soberania popular e de bloqueio a mudanças.

As ruas se levantaram, em 2013, também contra esse sistema, ainda que somando narrativas fragmentadas e contraditórias. Essa insatisfação com seu funcionamento, cinco anos depois, permitiria a ascensão de uma extrema-direita falsamente anti-sistema, cujo discurso conseguiu ganhar amplo lastro eleitoral. Um dos grandes desafios estratégicos da esquerda brasileira é reconstruir uma perspectiva anti-sistema, de radicalização da democracia como ferramenta para a soberania e a justiça social.

Ao meu ver, são duas as razões essenciais para essa tarefa ser tomada a sério. A primeira é que será extremamente difícil ir muito longe e, por consequência, com a rapidez necessária, na modernização e transformação do país, com as atuais instituições do Estado, particularmente o sistema eleitoral e de representação que vem sendo forjado desde a ditadura militar.

A segunda é que o espírito antissistema está disseminado em nossa sociedade: seria erro imperdoável deixar que o neofascismo continue apoderado desse sentimento, para manipulá-lo de forma reacionária.

Para que possamos estar preparados para essas discussões, não é possível simplesmente virar a página dos acontecimentos relacionados a junho de 2013. Precisamos a extrair lições sobre o passado que iluminem o presente e o futuro. •

  • Economista, é presidenta do
    Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) — também chamado de Banco dos Brics