A recente reunião dos cinco países emergentes que integram o bloco, concluída na Cidade do Cabo, pode ficar para a história como o momento em que o movimento anti-dólar atingiu a maioridade

À margem da recente reunião dos Brics na Cidade do Cabo, África do Sul, as autoridades contemplaram como raramente antes as cinco palavras mais perigosas da economia: as coisas são diferentes desta vez.

Há anos, Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul e outras economias emergentes esperavam quebrar a hegemonia do dólar que complica os cálculos geopolíticos. Na Cidade do Cabo, os ministros das Relações Exteriores do cinco países que integram o bloco presidiram o que pode ser lembrado como o momento em que o movimento anti-dólar ganhou força.

Na preparação para a confabulação, os membros dos Brics pediram ao banco que o grupo se estabelecesse para estudar como uma moeda conjunta poderia funcionar – logística, infraestrutura de mercado e como as sanções contra a Rússia afetam as coisas.

Igualmente importante é a enxurrada de acordos cambiais que excluem o dólar: China e Brasil concordando em liquidar o comércio em yuan e reais; França começando a realizar algumas transações em yuan; Índia e Malásia aumentam o uso da rupia no comércio bilateral; Pequim e Moscou negociando em yuans e rublos.

A Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean), de 10 membros, está unindo forças para fazer mais comércio regional e investimentos em moedas locais, não em dólares. A Indonésia, a maior economia da Asean, está trabalhando com a Coreia do Sul para intensificar as transações em rupias e won.

O Paquistão pretende começar a pagar à Rússia pelas importações de petróleo via yuan. Os Emirados Árabes Unidos estão conversando com a Índia sobre fazer mais comércio não petrolífero em rúpias.

No fim de semana passado, a Argentina anunciou que planeja dobrar sua linha de swap cambial com a China para cerca de US$ 10 bilhões. Em parte, é o desespero, pois as reservas de moeda estrangeira da Argentina evaporam em meio a uma inflação de 109% que mantém seu banco central em modo de controle de danos. Mas também é um sinal do crescente movimento antidólar na América do Sul.

“Apesar da provável oposição dos Estados Unidos, a desdolarização persistirá, já que a maior parte do mundo não ocidental quer um sistema comercial que não os torne vulneráveis ​​ao armamento ou hegemonia do dólar”, diz Frank Giustra, co-presidente do International Crisis Group. “Não é mais uma questão de se, mas de quando”.

O economista Rory Green, da TS Lombard, acrescenta que “a geopolítica e o peso econômico da China estão impulsionando – e continuarão a impulsionar – a adoção do Renminbi (RMB) para comércio e reservas. O maior uso internacional do RMB fornecerá canais para a quebra de sanções, mas o dólar não está ameaçado”.

Para ter certeza, Green acrescenta, “a China não tem vontade política e é economicamente incapaz – salvo uma reforma estrutural significativa – de manter um déficit em conta corrente sustentado e fornecer suprimentos suficientes de ativos em RMB globalmente”, o que complica os planos de Pequim de competir com o dólar.

Aqui, os membros do BRICS intensificando-se com uma jogada de força em números pode ser um divisor de águas. Já representam 23% do Produto Interno Bruto (PIB) global e mais de 42% da população mundial. Atualmente, pelo menos 19 outros países – incluindo a Arábia Saudita – querem se juntar aos Brics, o que aumentaria muito sua influência.

Por enquanto, os cinco países dos Brics estão reunindo US$ 100 bilhões em moeda estrangeira para atuar como um amortecedor financeiro. Os fundos podem ser utilizados em emergências, permitindo que os membros evitem recorrer ao Fundo Monetário Internacional. Desde 2015, o banco dos Brics aprovou mais de US$ 30 bilhões em empréstimos para infraestrutura, transporte e água.

A questão cambial dos BRICS vem ganhando mais força desde meados de 2022, quando foi realizada em Pequim a 14ª Cúpula do bloco. Lá, o presidente russo, Vladimir Putin, disse que os BRICS estavam preparando uma “nova moeda de reserva global” e estavam abertos a expandir seu uso mais amplamente.

Em abril, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva deu seu apoio a uma unidade monetária do bloco. “Por que uma instituição como o banco dos Brics não pode ter uma moeda para financiar as relações comerciais entre o Brasil e a China, entre o Brasil e todos os outros países dos Brics?”, perguntou. “Quem decidiu que o dólar seria a moeda de troca após o fim da paridade do ouro?”

O retorno de Lula à presidência quatro meses antes foi um impulso às ambições do “Sul Global” que o líder chinês Xi Jinping vem defendendo. Em seu terceiro mandato, Xi está colocando maior ênfase em transformar o Sul Global, ou países em desenvolvimento nas regiões da América Latina à África, à Ásia e à Oceania, em uma força econômica e diplomática maior.

O ministro da Fazenda do Brasil, Fernando Haddad, vem destacando o aumento do uso de moedas locais em instrumentos de comércio bilateral, como recebimentos de crédito. O foco, diz, deve ser a eliminação gradual do uso de uma terceira moeda. “A vantagem é evitar a camisa de força imposta por necessariamente ter as operações comerciais liquidadas na moeda de um país não envolvido na transação”, disse.

Lula pode obter suas respostas em agosto, quando a cúpula de chefes de estado dos Brics for realizada em Joanesburgo, na África do Sul. O desejo de uma versão Brics do euro pode ganhar impulso com a adesão de países como Egito, Indonésia, Turquia e Arábia Saudita.

O embaixador dos Brics, Anil Sooklal, diz que outros interessados ​​em ingressar incluem Afeganistão, Argélia, Argentina, Bahrein, Bangladesh, Bielorrússia, Irã, Cazaquistão, México, Nicarágua, Nigéria, Paquistão, Senegal, Sudão, Síria, Emirados Árabes Unidos, Tailândia, Tunísia, Uruguai, Venezuela e Zimbábue. Sooklal sugere que alguns países europeus também podem se inscrever.

Isso, é claro, também pode aumentar os problemas do Brics. Quanto mais esse agrupamento adiciona membros com economias e desafios díspares e ambições conflitantes, mais vulnerável a empreitada se torna. O envolvimento da Rússia sozinha, após a invasão da Ucrânia, complica a legitimidade mais ampla do projeto dos Brics.

O principal problema, diz Paul McNamara, diretor da GAM Investments, é que os Brics ainda são uma sigla em busca de um argumento econômico coeso. Foi cunhada em 2001 pelo então economista do Goldman Sachs, Jim O’Neill. Mais provavelmente, diz McNamara, será apenas um país que desafiará o dólar: a China. Afinal, raciocina, sem a China no centro, a maioria das elites globais atuais se importaria com os Brics?

Alguns acham que pode levar mais tempo para desalojar o dólar. Embora o domínio do dólar leve tempo para se desfazer, a trajetória de afastamento é clara, diz Vikram Rai, economista sênior do TD Bank. “Na próxima década ou duas, há um grande potencial para o surgimento de moedas regionalmente dominantes e um regime internacional multipolar, com os papéis preenchidos agora pelo dólar compartilhado com o euro, um yuan mais aberto, futuras moedas digitais do banco central e possivelmente outras opções que ainda não vimos”, argumenta.

Em um relatório há duas semanas, os analistas do serviço de investidores da Moody’s escreveram: “Esperamos que um sistema monetário mais multipolar surja nas próximas décadas, mas será liderado pelo dólar porque seus adversários lutarão para replicar sua escala, segurança e conversibilidade em completo”.

No entanto, um maior giro dos EUA para o protecionismo, mais riscos de inadimplência e enfraquecimento das instituições estão ameaçando a influência global do dólar, adverte a Moody’s. “O maior perigo de curto prazo para a posição do dólar decorre do risco de erros de política que minam a confiança por parte das próprias autoridades dos EUA, como um calote em sua dívida, por exemplo”, dizem os analistas da Moody’s. “Instituições enfraquecidas e um pivô político para o protecionismo ameaçam o papel global do dólar”.

Embora os legisladores dos EUA tenham aumentado o teto da dívida desta vez, a Fitch Ratings está mantendo Washington atenta a um possível rebaixamento. A Fitch teme que a ameaça de inadimplência esteja se tornando uma manobra política de rotina. E adverte “que repetidos impasses políticos em torno do limite da dívida e suspensões de última hora antes da data X – quando a posição de caixa do Tesouro e as medidas extraordinárias se esgotam – reduzem a confiança na governança em questões fiscais e de dívida”.

O que preocupa o analista da Fitch James McCormack é que os legisladores americanos estão perdendo o plano de proteger a classificação AAA dos Estados Unidos. Os políticos devem entender que “você está brincando com munição real aqui”, disse McCormack à CNN. “Esta é uma situação extremamente perigosa. Há muita coisa em jogo”.

Entre os maiores riscos que os EUA estão correndo está a perda do “privilégio exorbitante” que vem com a impressão da moeda de reserva internacional. Essa frase foi cunhada pelo ministro das Finanças francês da década de 1960, Valéry Giscard d’Estaing, que observou que o papel fundamental do dólar permitia aos EUA viver além de seus meios financeiros, ano após ano.

Em abril, o presidente francês Emmanuel Macron disse que a Europa deveria reduzir sua dependência da “extraterritorialidade do dólar americano”. Isso é particularmente verdade à medida que as tensões sino-americanas se intensificam. Se as tensões entre as duas superpotências esquentarem, disse Macron, “não teremos tempo nem recursos para financiar nossa autonomia estratégica e nos tornaremos vassalos”.

No mesmo mês, o fundador da Tesla, Elon Musk, alertou via tweet que “a desdolarização é real e está acontecendo rapidamente. Se você armar a moeda várias vezes, outros países vão parar de usá-la”. O economista Stephen Jen, da Eurizon SLJ Asset Management, observa que “ações excepcionais” – incluindo sanções impostas pelos EUA e seus aliados contra Moscou – tornaram muitas nações menos dispostas a manter dólares.

Jen é citado dizendo que o dólar sofreu um “colapso impressionante” em sua participação de mercado como moeda de reserva em 2022, “presumivelmente devido ao uso vigoroso de sanções”. Ele calcula que a participação do dólar nas reservas globais oficiais caiu para 47% no ano passado, abaixo dos 55% em 2021 e um colapso acentuado dos 73% em 2001. Sua perda de participação de mercado somente em 2022 foi 10 vezes mais rápida do que a erosão constante nas últimas duas décadas.

O bilionário Ray Dalio, fundador do fundo de hedge Bridgewater Associates, concorda que “há menos vontade de comprar” títulos do Tesouro dos EUA. Ele aponta para as medidas ocidentais para congelar cerca de US$ 300 bilhões em ativos do banco central russo, medidas punitivas diz Dalio, “aumentaram o risco percebido de que esses ativos de dívida possam ser congelados da maneira que foram congelados para a Rússia”.

No entanto, mesmo com base apenas na economia, diz O’Neill, fundador do conceito dos Brics, o sistema global parece pronto para um pivô. “O dólar americano desempenha um papel muito dominante nas finanças globais”, observa O’Neill. “Sempre que o conselho do Federal Reserve embarcou em períodos de aperto monetário, ou o oposto, afrouxamento, as consequências sobre o valor do dólar e os efeitos indiretos foram dramáticos”.

Essa dinâmica ajudou a abrir caminho para os eventos na Cidade do Cabo, um evento que pode ter pernas nos círculos monetários nas próximas gerações. •

* Tradução de Olímpio Cruz Neto

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