Presidente reúne no Itamaraty os mandatários dos países da América do Sul e defende aprofundamento dos laços entre nações do continente. “O que nos reúne hoje em Brasília é o sentimento de urgência de voltar a olhar coletivamente para a nossa região”, diz

Criada em 2008 e abandonada pelo Brasil e outros membros fundadores, a União das Nações Sul-Americanas (Unasul), pode ganhar nova fundação e aprofundar as relações entre os países do continente sul-americano. Esta é a vontade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que abriu, na terça-feira, 30, uma reunião de chefes de Estado da região, realizada no Palácio Itamaraty, em Brasília.

“O que nos reúne em Brasília é o sentimento de urgência de voltar a olhar coletivamente para a nossa região”, disse o presidente durante a reunião. “É a determinação de redefinir uma visão comum e relançar ações concretas para o desenvolvimento sustentável, a paz e o bem-estar de nossas populações”. O encontro dos chefes de Estado da América na capital brasileira foi a manifestação do espírito de cooperação que guia a nova política externa brasileira, sob a liderança de Lula. Foi a primeira reunião de cúpula da América do Sul em nove anos.

Os 11 presidentes sul-americanos reunidos em Brasília divulgaram uma carta na qual reafirmam valores comuns e concordam em aprofundar as discussões sobre a criação ou o restabelecimento de um mecanismo de cooperação que envolva todos os países da região. O compromisso figura no documento intitulado Consenso de Brasília, publicado ao final da reunião.

O Consenso de Brasília registra “a visão comum de que a América do Sul constitui uma região de paz e cooperação, baseada no diálogo e no respeito pela diversidade de nossos povos, comprometida com a democracia e os direitos humanos, o desenvolvimento sustentável e a justiça social, o Estado de direito e a estabilidade institucional, a defesa da soberania e a não interferência nos assuntos internos”.

A retomada da Unasul ainda não é consensual entre os líderes da região. “Esta tendência deve ser interrompida: a de criar organizações. Vamos nos basear em ações”, disse o presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou. “Quando tivemos que assumir o governo, nos retiramos da Unasur. Depois fomos convidados para Prosur [bloco criado em 2019 como contraponto a Unasur], e dissemos que não. Porque se não, acabamos sendo clubes ideológicos que têm vida e continuidade apenas enquanto marchamos com nossas ideologias”.

Para outros presidentes, no entanto, a Unasur tem o potencial de articular ações em várias áreas. “Este mecanismo de diálogo e concertação política teve o grande valor de nos unir e abrir a possibilidade de uma construção regional multidimensional em várias áreas, como defesa, segurança, democracia, direitos humanos, infra-estrutura, energia, entre outras”, disse o presidente da Bolívia, Luis Arce. Gustavo Pedro, da Colômbia, e Alberto Fernández, da Argentina, também são defensores da recriação da organização fundada há 15 anos.

O encontro entre os 11 presidentes teve como pauta questões comuns nas áreas de saúde, infraestrutura, energia, meio ambiente e combate ao crime organizado. Lula lembrou que os interesses que unem os países “estão acima de divergências ideológicas” de seus atuais dirigentes.

Participaram do encontro os presidentes Alberto Fernández (Argentina), Luís Arce (Bolívia), Gabriel Boric (Chile), Gustavo Petro (Colômbia), Guillermo Lasso (Equador), Irfaan Ali (Guiana), Mário Abdo Benítez (Paraguai), Chan Santokhi (Suriname), Luís Lacalle Pou (Uruguai) e Nicolás Maduro (Venezuela). A presidenta do Peru, Dina Boluarte, impossibilitada de comparecer, foi representada pelo presidente do Conselho de Ministros, Alberto Otárola.

Em seu discurso, na abertura do encontro, Lula lembrou que a integração regional está relacionada à redemocratização do Brasil e é cláusula da Constituição de 1988, que define que o país deve buscar “a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.

“A integração sul-americana é essencial para o fortalecimento da unidade da América Latina e do Caribe”, disse. “Uma América do Sul forte, confiante e politicamente organizada amplia as possibilidades de afirmar, no plano internacional, uma verdadeira identidade latino-americana e caribenha”.

Lula fez um retrospecto de uma série de iniciativas adotadas a partir do final do século 20 que favoreceram a articulação de ações em âmbito sub-regional, como, por exemplo, a Comunidade Andina de Nações, o Tratado de Cooperação Amazônica, o Mercosul, a Unasul e a Comunidade Sul-Americana de Nações. Ele lembrou do papel dos ex-presidentes José Sarney, do Brasil, e Raúl Alfonsín, da Argentina. “Ambos entenderam a importância da integração para a consolidação das nossas democracias”, disse.

Ao defender o legado da Unasul, o líder brasileiro afirmou que, por mais de dez anos, o bloco permitiu que os países e seus líderes se conhecessem melhor. “Consolidamos nossos laços por meio de amplo diálogo político que acomodava diferenças e permitia identificar denominadores comuns”, destacou. “Implementamos iniciativas de cooperação em áreas como saúde, infraestrutura e defesa. Essa integração também contribuiu para ganhos comerciais importantes. Formamos uma robusta área de livre-comércio, cujas cifras alcançaram valor recorde de US$ 124 bilhões em 2011”.

“O perfil do nosso intercâmbio é mais diversificado se comparado ao nosso comércio extrarregional”, disse Lula, referindo-se ao fato de que as relações comerciais incluem produtos e serviços de maior valor agregado e intensivos em tecnologia. Além disso, segundo o presidente do Brasil, os países do continente souberam conjugar crescimento econômico com distribuição de renda. “Reduzimos nossas históricas desigualdades e logramos avanços palpáveis no combate à pobreza. Segundo a FAO, a América do Sul reduziu, em duas décadas, de 15% para 5% de sua população vitimada pela fome”, detalhou.

Lula foi enfático na defesa da retomada da organização sul-americana dos países. “A Unasul foi efetiva como foro de solução de controvérsias entre países da região, notadamente na crise entre Colômbia e Equador e no conflito separatista boliviano”, citou o presidente. “Obtivemos resultados expressivos na redução do desmatamento e dos ilícitos transnacionais. Estimulamos o diálogo e a cooperação para fazer chegar a milhões de sul-americanos, de forma efetiva, os benefícios da cidadania”.

Lula lembrou que as reuniões de cúpula com os países árabes e com os países africanos ajudaram a definir um perfil de relacionamento externo da América do Sul. Tais realizações foram  feitos “formidáveis para uma região herdeira do colonialismo e marcada por graves formas de violência, discriminação de gênero e racismo”. E observou: “não resolvemos todos os nossos problemas, mas nos dispusemos a enfrentá-los, em vez de ignorá-los”.

Ao destacar que a América do Sul deixou de ser apenas uma referência geográfica e se tornou uma realidade política, o presidente lamentou que, infelizmente, esses avanços foram interrompidos nos últimos anos. Ele se referiu aos retrocessos da política externa brasileira e ao isolamento diplomático do país durante o governo Bolsonaro.

“No Brasil, um governo negacionista atentou contra os direitos da sua própria população, rompeu com os princípios que regem a nossa política externa e fechou nossas portas a parceiros históricos”, criticou o mandatário brasileiro. “Nosso país optou pelo isolamento do mundo e do seu entorno. Essa postura foi decisiva para o descolamento do país dos grandes temas que marcaram o cotidiano dos nossos vizinhos”.

Segundo Lula, os países da região deixaram que as ideologias dividissem suas lideranças e interesses comuns, interrompendo o esforço da integração de todos os países do continente. “Abandonamos canais de diálogo e mecanismos de cooperação e, com isso, todos perdemos”, apontou. Ele defendeu que os países reavivem o compromisso com a integração. E disse que o Brasil voltou a olhar para as nações-irmãs do continente. “A América do Sul voltou ao centro da atuação diplomática brasileira”, disse.

“Os elementos que nos unem estão acima de divergências de ordem ideológica. Da Patagônia e do Atacama à Amazônia, do Cerrado e dos Andes ao Caribe, somos um vasto continente banhado por dois oceanos. Somos uma entidade humana, histórica, cultural, econômica e comercial, com necessidades e esperanças comuns”, lembrou o chefe do governo brasileiro.

Lula destacou ainda que as recentes eleições na Colômbia, Chile, Bolívia, Brasil e Paraguai demonstraram o vigor da democracia na região, com expressiva participação popular e ampla liberdade de expressão. “A integração da América do Sul depende desse sentimento de pertencer a uma mesma comunidade”, disse. “Temos uma história de resistência, forjada nas lutas de independência e no combate às ditaduras. Compartilhamos uma cultura vibrante e expressões artísticas que vão da música à literatura”.

A candidatura conjunta de Uruguai, Paraguai, Chile e Argentina para sediar a Copa do Mundo de 2030 também foi lembrada por Lula. “Talvez seja a expressão mais acabada dessa identidade sul-americana em construção, e de nossa capacidade de cooperar para além do campo de futebol e de nossas próprias fronteiras”, disse.

O presidente aproveitou o encontro para reiterar as críticas que tem feito à atuação dos foros de governança global. Segundo Lula, organismos enfrentam dificuldades em oferecer respostas justas e eficazes aos problemas da atualidade. “Se hoje damos os primeiros passos para retomar o diálogo enquanto região, o contexto que enfrentamos é ainda mais desafiador do que foi no passado”, disse.

Ele citou como exemplos a pandemia da Covid-19. “As mortes, o sofrimento humano e o custo econômico deixaram marcas profundas”, advertiu, apontando que a pandemia escancarou “antigas desigualdades” e “novas injustiças”. O presidente também citou evidências científicas segundo as quais o ritmo atual de emissões nos levará a uma crise climática sem precedentes e o planeta todo já sente seus impactos. “A falta de ação coletiva afeta nossa capacidade de conter o aumento da temperatura global”, destacou.

“Sabemos que o que ocorre na Amazônia tem efeito sobre a Bacia do Prata. Com o esvaziamento da Organização Mundial do Comércio, o multilateralismo retrocede e crescem as posturas protecionistas nos países ricos, limitando nossas opções”, afirmou. “Todos sofremos as consequências da guerra. O conflito na Ucrânia desestabilizou o mercado de energia e de fertilizantes e provocou a volatilidade dos preços dos alimentos, deteriorando nossas condições de vida”.

“Quando as cadeias de suprimento globais foram afetadas por esse conjunto de fatores, nossas carências em infraestrutura e nossas vulnerabilidades externas foram expostas”, declarou Lula. “A região parou de crescer, o desemprego aumentou e a inflação subiu. Alguns dos principais avanços sociais logrados na década passada foram perdidos em pouco tempo”.

O governante também citou recentes ataques a instituições democráticas, no Brasil e em outros países — “inclusive às sedes dos poderes constitucionais”. “Os ataques nos ofereceram uma trágica síntese da violência de grupos extremistas, que se valem de plataformas digitais para promover campanhas de desinformação e discursos de ódio”, ressaltou. “Nenhum país poderá enfrentar isoladamente as ameaças sistêmicas da atualidade. É apenas atuando unidos que conseguiremos superá-las”.

Lula destacou que a América do Sul possui trunfos sólidos para fazer face a esse mundo em transição, detalhando que o PIB somado de nossos países neste ano deverá chegar a US$ 4 trilhões. “Juntos somos a quinta economia global. Com uma população de quase 450 milhões de habitantes, constituímos importante mercado de consumo. Possuímos o maior e mais variado potencial energético do mundo, se levarmos em conta as reservas de petróleo e gás, hidroeletricidade, biocombustíveis, energia nuclear, eólica e solar e o hidrogênio verde. Somos grandes e diversificados provedores de alimentos”, frisou.

O presidente também lembrou que os países da região contam com mais de um 1/3 das reservas de água doce do mundo e uma biodiversidade riquíssima, pouco conhecida. “Em nosso solo se encontra rico e variado conjunto de minérios, incluídos aqueles que, como o nióbio, lítio e cobalto, são essenciais para projetos industriais de última geração”, disse. Além disso, ressaltou: “somos uma região de paz, sem armas de destruição em massa, e na qual os litígios são resolvidos pela via diplomática”.

O presidente brasileiro afirmou que, nos próximos anos, o continente vai sediar eventos dos principais foros de governança global, como a reunião do Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, no Peru, a Cúpula do G20, a reunião dos BRICS e a COP 30, do clima, no Brasil. “Precisamos chegar a esses espaços unidos, como interlocutores confiáveis e buscados por todos”, disse.

Lula declarou que a América do Sul tem diante de si, mais uma vez, a oportunidade de trilhar o caminho da união e que não é preciso começar do zero. “A Unasul é um patrimônio coletivo. Lembremos que ela está em vigor. Sete países ainda são membros plenos. É importante retomar seu processo de construção”, disse.

“Mas ao fazê-lo, é essencial avaliar criticamente o que não funcionou e levar em conta essas lições. Precisamos de mecanismos de coordenação flexíveis, que confiram agilidade e eficácia na execução de iniciativas. Nossas decisões só terão legitimidade se implementadas democraticamente”, disse. •

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