Ex-ministra da Secretaria de Política de Promoção da Igualdade Racial e pedagoga, a ativista diz que o caso de racismo contra o Vinícius Júnior, craque do time espanhol Real Madri, revela sentimentos e preconceitos arraigados nas sociedades que não são compatíveis com o século 21. Ela defende combate total à xenofobia, ao autoritarismo e fascismo que ainda assombram o mundo.  

A pedagoga Nilma Lino Gomes foi a primeira mulher negra do Brasil a comandar uma instituição pública federal ao ser nomeada reitora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, em 2013. Entre 2015 e 2016, ela foi ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos. Nilma tem uma longa trajetória de militância na luta contra o racismo no Brasil. Nesta entrevista à Focus Brasil, comenta os últimos escandalosos casos de racismo no futebol brasileiro.

Segundo a professora, o Brasil vive um mal inoculado na sociedade ainda dos tempos da escravidão. A percepção equivocada de que temos cidadãos de primeira e de segunda classe. Que a maioria da população, negra, está em posição subalterna em relação à elite brasileira. “Uma das questões que faz com que o racismo se expresse e pegue cada vez mais é o fato de que nós, sociedade brasileira, não nos sentimos irmanados, digamos assim, das pessoas negras, quando elas sofrem. É como se tivesse uma divisão”, lamenta.

“Precisamos de leis, de educação, de políticas de ações afirmativas, precisamos superar o racismo no mercado de trabalho, superar o racismo na arena política, na representação política”, aponta a professora Nilma. “E precisamos também humanizar a sociedade brasileira no entendimento de que as pessoas negras, as pessoas brancas, as pessoas de outros grupos étnico raciais, estão irmanadas na mesma humanidade”. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Focus Brasil — Como a senhora avalia o caso de racismo explícito na Europa, envolvendo o jogador Vinícius Júnior?

Nilma Lino Gomes — Acho que a situação do Vinícius Júnior tem chamado a atenção do absurdo que é a falta de respeito e a expressão mais forte de racismo da torcida espanhola. Mostra o quanto o racismo ainda está ativo nas sociedades de um modo geral, não somente aqui no Brasil onde a gente tem uma luta antirracista histórica do movimento negro, onde nós, hoje, com a retomada da democracia a partir da vitória do presidente Lula vimos a recriação do Ministério da Igualdade Racial e de tantas outras instâncias através das quais o governo federal se coloca na contramão do racismo.

O caso do Vinícius Júnior, que ganhou grande repercussão agora, tem muito a força, a autoestima e a determinação do atleta como um jovem negro. Faz um tempo que a gente vê que ele está denunciando o racismo do qual é vítima dentro de campo na Europa. Até então, as coisas passavam como se não fossem tão importantes assim e como se autoridades do futebol não tivessem que tomar providências em relação a isso. Nós sabemos que o Vinícius Júnior não é a única vítima. Outros jogadores brasileiros negros também sofreram racismo por parte de torcidas e nenhuma providência mais efetiva vinha sendo tomada. Embora alguns denunciassem, a forma como reagiram não foi também tão efetiva quanto, na minha opinião, a do Vinícius Júnior, de se colocar como alguém que deve ser respeitado sendo um homem negro.

Ele não tratou apenas como algo relacionado ao comportamento de uma torcida rival. Aquilo ali é um xingamento racista, o que significa que aquelas pessoas estavam entoando ali, em alto e bom som, que aquele jovem negro e, por conseguinte, todas as pessoas que pertencem a mesma raça que o Vinícius Júnior são inferiores, devem ser animalizadas, não têm o direito de estar onde estão, não têm o direito de se comportar como se comportam e, inclusive, não têm o direito de estar na Europa. É isso o que estavam falando ali para ele, era sim uma mistura de xenofobia com racismo, com desrespeito, com autoritarismo e com fascismo.

Esse episódio tornou-se muito emblemático em função da forma como Vinícius Júnior enfrentou a torcida. Ele conseguiu em determinado momento parar o jogo e foi agredido por colegas do time rival e depois recebeu o apoio do treinador. E ele não parou. Acho que vocês devem ter assistido um vídeo que ele gravou se posicionando, falando “os racistas não vão me parar” e, inclusive, falando que sabe muito bem o lugar de onde veio, quem é e que não se esqueceu desse lugar. Vinícius Júnior é um dos atletas que têm projetos sociais aqui no Brasil. E isso é muito importante para nós, brasileiros e brasileiras, independentemente de sermos negros ou não. Mas isso é muito importante para as crianças, adolescentes e jovens pobres, negros e não negros também, que se espelham nele, que têm nele como uma referência como os grandes jogadores de futebol são referências para essa juventude.

— A história de referência de um atleta como ele é algo importante no combate à cultura racista?

— Você ter uma referência negra que se posiciona firmemente como uma pessoa negra, exige respeito na sua ancestralidade, no seu jeito de ser, na sua cultura… O fato de ele dançar funk, comemorar da forma como comemora, ele mesmo fala isso, que nesse momento está reverenciando, digamos assim, a cultura de onde veio. E isso nós, do Brasil, deveríamos aprender. Eu me lembro de outras situações no Brasil, como a do goleiro Aranha, num jogo entre Santos e Grêmio, a torcida do Grêmio também chamou o Aranha de macaco, também fez gestos. Quando eu era a ministra da Igualdade Racial, em um dos eventos que foram realizados, fizemos uma homenagem ao goleiro Aranha e ele esteve presente com a esposa. Ele falou do que aquilo significava. Mas veja bem, naquele momento o Brasil não teve uma postura. Lamentavelmente, a postura tem que ser de punição, porque é um crime. O racismo é um crime, quem o comete tem que ser punido. Hoje a gente já tem leis, o presidente Lula, no início do seu novo governo, assinou uma lei equiparando a injúria racial como crime de racismo.

— A senhora acredita que de alguma forma exista algum tipo de incentivo para que as pessoas cometam esse tipo de crime?

— Acho que as pessoas agem dessa forma em função da impunidade. As medidas que são tomadas no futebol, no campo dos esportes, muitas vezes são paliativas. Não são medidas estruturais que façam com que os próprios clubes e os empresários do esporte tomem medidas necessárias em relação não só à torcida como também aos jogadores no que diz respeito a não ter posturas racistas, a combater o racismo. Acho que esse momento é emblemático também, porque no caso do Brasil, tivemos uma série de manifestações, inclusive do próprio presidente da República, repudiando o ato racista que o Vinícius Júnior sofreu.

Tanto o Vinícius quanto a sociedade brasileira têm mostrado o quanto que o movimento negro no Brasil é um educador, um ator político, um movimento social de diversas expressões, complexo, mas que tem cumprido um papel na sociedade que é reeducar a sociedade brasileira em relação ao que é o racismo. Esse processo de reeducação passa tanto por vermos hoje jovens como o Vinícius Júnior com orgulho da sua negritude e se impondo contra um coletivo e contra um sistema do futebol europeu que não dava a devida importância para a situação. Mas também no próprio Brasil em que ocorreram as manifestações de repúdio ao racismo por ele sofrido tanto de pessoas do meio do esporte, jornalistas, autoridades das associações quanto o próprio movimento negro. Isso tem mostrado que, aos poucos, temos conseguido reeducar um grupo da sociedade brasileira para entender que o racismo, além de ser crime, é um fenômeno perverso e que, se não for combatido, é um mal que atinge toda a sociedade, não só a suas vítimas.

Então, eu me colocar no lugar do outro é algo muito importante para a gente combater o racismo. Eu me sentiria tão agredida quanto o Vinícius, independentemente de ser uma mulher negra ou não, um homem negro ou não. Isso é muito importante para a gente mudar a sociedade. Uma das questões que faz com que o racismo se expresse e pegue cada vez mais é o fato de que nós, sociedade brasileira, não nos sentimos irmanados, digamos assim, das pessoas negras, quando elas sofrem. É como se tivesse uma divisão. É o que é o racismo. Divide a todos como humanos e não humanos. Então, a minha humanidade se compadece daquele e daquela que eu acho que é tão “humano” quanto eu, mas aqueles que eu coloco num outro patamar de uma não humanidade, o que ele sofre, o que ela sofre, pode até me deixar constrangida, pode até me entristecer, mas aquilo não me atinge na minha humanidade, porque é como se nós fôssemos apartados desde a origem.

Esse é um processo de luta contra o racismo muito importante. Precisamos de leis, de educação, de políticas de ações afirmativas, precisamos superar o racismo no mercado de trabalho, superar o racismo na arena política, na representação política. E precisamos também humanizar a sociedade brasileira no entendimento de que as pessoas negras, as pessoas brancas, as pessoas de outros grupos étnico raciais, estão irmanadas na mesma humanidade. Se um desses grupos étnicos é atingido, todos nós somos atingidos. Se o racismo transforma pessoas em coisas, em vítimas, todos nos sentimos atingidos por isso. E, assim, temos que, conjuntamente, reagir a essa situação. Acho que não chegamos ainda no ponto desejado dessa transformação, mas vejo que está em curso e em função de muita luta antirracista, de pessoas do passado, de pessoas do presente que têm dado as suas vidas nessa luta incessante que é a luta pela democracia, pela construção da igualdade racial.

E espero que as providências que estão sendo tomadas agora, depois da repercussão internacional da situação terrível vivida pelo Vinícius Júnior, não sejam só para este caso isolado. Que se estabeleçam, a partir de agora, regras firmes e fortes dentro do futebol e outros esportes para coibir atitudes racistas, quer seja por parte da torcida, quer seja por parte de dirigentes, por parte dos jogadores, das jogadoras. E de jornalistas, inclusive.

— Diariamente, crianças negras são vítimas de racismo nas escolas e isso tem uma série de consequências para a vida. Não é realmente algo isolado.

— A gente está focando aqui o caso do Vinícius Júnior pela forma emblemática, rica como este caso se colocou nos últimos dias. Mas é preciso entender que a repercussão tem que nos levar a olhar a presença do racismo nas suas mais diversas dimensões, nas suas mais diversas metamorfoses, porque as pessoas só chegaram ali, naquele campo de futebol, gritando daquele jeito, porque se sentem no direito de desumanizar uma pessoa. Esse comportamento racista existe já há muitos anos nas sociedades de um modo geral. Sabemos que existem muitos Vinícius Júniores no dia a dia da sociedade brasileira, que vivem, sofrem com o racismo e temos uma série de denúncias de racismo que acontecem cotidianamente com as pessoas negras, com crianças nas escolas. E também com os adolescentes. Existe no país o genocídio da juventude negra, que é algo apontado por todas as pesquisas e que exige políticas públicas eficazes.

Existe, inclusive, uma mudança no que diz respeito à segurança pública, porque sabemos que essa juventude negra tem também sido alvo de uma tentativa de extermínio, inclusive pelas forças policiais. Sabemos também da situação das mulheres negras do nosso país, que todas as pesquisas que analisam a situação das mulheres, mostram que nós, negras, somos as mais assassinadas e mais agredidas do que as mulheres brancas. E sabemos também hoje que o racismo ultrapassa o recorte econômico, o recorte de classe social, atinge as pessoas negras em qualquer nível em que estiverem. E as redes sociais têm mostrado muito isso para nós. Elas têm sido um espaço não só de democratização e socialização de ideias, mas também de expansão dos discursos de ódio e discursos racistas. E basta vermos, por exemplo, como atores e atrizes, negros e negras, quando aparecem nas redes sociais, são atacados. Situações que assistimos na TV de apresentadora de televisão destratar publicamente seu colega apresentador negro e as pessoas denunciarem isso na internet. Temos também uma situação que é a juventude no ensino superior. Se não fosse a existência do racismo que provoca as desigualdades dos raciais, o Brasil não precisaria, por exemplo, ter implantado políticas de ações afirmativas, lei de cotas para estudantes negros e negras no ensino superior.

Então, o racismo é multifacetado, está presente não só no esporte, mas na vida cotidiana das pessoas. E costumo dizer que uma sociedade que luta contra o racismo é uma sociedade que consegue, de alguma forma, dar passos para sair de um reino da ignorância. O racismo nos aprisiona no reino da ignorância, nos aprisiona no reino da violência, nos aprisiona no reino da desumanização. E uma sociedade que luta contra o racismo é uma sociedade que pode se reencontrar consigo mesma nos princípios mais democráticos da convivência humana, da convivência ética entre os sujeitos. E é isso que eu acho que as pessoas precisam entender quando falamos da importância da luta antirracista ser uma luta de todos, todas e todes. Não ser uma luta somente da população negra.

— É uma luta de todos.

— É entender que esse fenômeno perverso atinge a todos nós. Então, ali, naquele momento, as pessoas quando viram o Vinícius Júnior sofrer aquele ato violento de racismo se colocam no lugar dele e sentem a dor dele. Eu senti. Mas é muito importante que outras pessoas que não sejam negras também se coloquem no lugar dele e sintam a dor daquele rapaz e entendam que uma sociedade que se constrói ainda no século 21 com esse tipo de cena violenta está doente. E as nossas sociedades no século 21 estão adoecidas e precisam ser curadas da doença do racismo, do fascismo. Esses anos que vivemos aqui no Brasil, desde o golpe e da ascensão da extrema-direita ao governo federal, foram anos em que dois polos se destacaram. Um é de que pessoas racistas, fascistas, machistas, LGBTQIA+fóbicas se sentiram representados institucionalmente. Essas pessoas tinham no governo federal, no Congresso Nacional, nessas instâncias, pessoas que pensam e agem como elas.

E do outro lado, aqueles e aquelas que estão na luta democrática, seja o movimento negro, seja outros movimentos sociais, sejam pessoas negras com consciência política e pessoas não negras que estão sendo reeducadas para serem antirracistas. Todos compreenderam também que a luta pela retomada da democracia, no momento em que vivemos, não podia ser realizada por um lado só, mas que a gente tinha que somar esforços e, principalmente, compreender melhor as lutas das outras companheiras e dos outros companheiros. E o movimento negro, durante todo esse período, atuou muito na sociedade brasileira, nas redes sociais, com formação de novas lideranças, atos, inclusive, públicos, inclusive na pandemia. O movimento negro foi o primeiro movimento social que saiu às ruas. Lembrando do caso George Floyd, o movimento negro saiu às ruas naquele momento difícil. Era preciso ir para as ruas e dizer que não poderíamos nos esconder ou nos aconchegar dentro das nossas casas e falar que repudiamos o racismo. O racismo e o fascismo exigem atitudes públicas e incisivas.

Não se derruba racismo e fascismo só escrevendo nas redes sociais. É preciso que a gente tenha atos simbólicos, políticas públicas e legislações fortes, cumpridas, para que a sociedade brasileira não se perca nesse tipo de comportamento deplorável. Infelizmente, muitas autoridades e muitas pessoas concordam ainda com o racismo. Agora vemos nos outros países movimentos diferenciados desse processo de conscientização política da população e de reeducação pelo combate ao racismo. Eu tenho certeza que essa história vivida pelo Vinícius Júnior vai fazer a Espanha a se repensar em vários aspectos. E vai fazer também, para muitos de nós, aqui no Brasil, a acordar. Somos iludidos com essa Europa idílica criada na cabeça das pessoas. É bom que elas também entendam que essa Europa é uma Europa que não somente de lá saiu muito da colonização desse mundo que nós vivemos, como também mantém até hoje dentro de si grupos que ainda se acham superiores aos outros.

— Há uma ilusão?

— A gente precisa desconstruir essa ilusão sobre a Europa como berço da civilização, como o espaço da civilidade. E a gente precisa acreditar mais nas nossas lutas sociais no Brasil para superar uma série de perversidades. E fico, como professora, como negra, ativista, muito orgulhosa do Vinícius Júnior, da atitude que ele está tomando, sendo uma referência internacional e nacional, como ele é. O Brasil precisa, do ponto de vista institucional, dar todo o apoio a ele e o melhor apoio que poderia ser dado ao Vinícius nesse momento é fortalecer aqui o combate ao racismo. Claro que as cobranças feitas pelo Ministério das Relações Exteriores, da Igualdade Racial, o próprio presidente no seu discurso, os atos que o movimento negro tem feito desde então são importantes. Mas combater o racismo aqui no Brasil é a melhor resposta que o país pode dar ao Vinícius Júnior, para o mundo, à própria Europa e à sociedade brasileira. E olhar para todas as áreas, além do esporte, onde o racismo está operando com essa contundência e investir em políticas e ações legais de combate ao racismo. •

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