A hostilidade de torcedores espanhóis contra o craque brasileiro Vinícius Júnior, do Real Madrid, expõe a chaga que machuca o século 21 e torna o futebol o palco crescente de agressões raciais. A reação do governo e das autoridades brasileiras levam a Espanha a abrir uma investigação e a dar um basta nas hostilidades por causa da cor da pele. “Isso não é justo”, diz Lula, durante visita a Hiroshima, no Japão

Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito. Nove. A contagem numerosa incomoda. É o número de vezes que o jogador Vinícius Júnior, de 22 anos, sofreu com ataques racistas em campo na Espanha. O último caso ocorreu no domingo, 21, quando o jogador do Real Madrid foi chamado de “macaco” por torcida rival, do Valencia.

Os vídeos que mostram as agressões foram gravados da arquibancada do estádio Mestalla, casa dos agressores racistas. O caso extremo gerou a imediata reação do jogador, que chamou o árbitro, reclamou e apontou para arquibancada, registrando a situação, pedindo que fosse interrompida a partida. Durante confusão em campo do mesmo jogo, Vinicius Jr. foi o único a ganhar um cartão vermelho.

Logo após a partida, o jogador declarou em suas redes sociais: “Não foi a primeira vez, nem a segunda e nem a terceira. O racismo é o normal na La Liga. A competição acha normal, a federação também e os adversários incentivam. Lamento muito. O campeonato que já foi de Ronaldinho, Ronaldo, Cristiano e Messi hoje é dos racistas”.

E lamenta que isso ocorra na Espanha: “Uma nação linda, que me acolheu e que amo, mas que aceitou exportar a imagem para o mundo de um país racista. Lamento pelos espanhóis que não concordam, mas hoje, no Brasil, a Espanha é conhecida como um país de racistas. E, infelizmente, por tudo o que acontece a cada semana, não tenho como defender. Eu concordo. Mas eu sou forte e vou até o fim contra os racistas. Mesmo que longe daqui”. 

Imediatamente, o caso ganhou repercussão internacional e iniciou-se um movimento em defesa do craque brasileiro. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que abriu coletiva durante a Cúpula do G7, no Japão, cobrando providências, mostrou-se sensibilizado. “É um gesto de solidariedade a um jogador brasileiro, jovem, negro, que joga no Real Madrid”, comentou.

“Não é justo que o menino pobre que venceu na vida, que está se transformando possivelmente num dos melhores jogadores do mundo — certamente do Real Madrid ele é o melhor — seja ofendido em cada estádio que ele comparece”, disse Lula. E finalizou: “É importante que a Fifa, a liga espanhola e de outros países tomem sérias providências. Não é possível que, quase no meio do século 21, a gente tenha o preconceito racial ganhando força em vários estádios aqui na Europa”.

Não é de hoje que o jogador brasileiro Vini Jr. sofre com ataques racistas em estádios espanhóis. Desde a chegada do técnico italiano Carlo Ancelotti ao comando do Real Madrid, o jogador brasileiro ocupa uma posição de destaque. Desde então, há dois anos e sete meses, o protagonismo no time espanhol fez com que o racismo passasse a fazer parte da vida do jogador também em campo.

Não há coincidência entre o surgimento e a constância de ataques racistas por parte de torcedores da sociedade espanhola e a ascensão do jogador negro brasileiro em solo europeu. Desta vez, o jogador se cansou e resolver dar um basta, e resolveu incendiar o debate, chamando atenção a uma situação que parecia invisível à Fifa e à Liga Espanhola de Futebol (La Liga).

No último jogo, o estopim para a comoção de agora, Vini denunciou a Liga Espanhola, disse que para ela o “racismo era normal”, enumerando os casos que sofreu ataques racistas (veja quadro). Disse também que a Espanha, um país que o acolheu e que ama, aceitou exportar ao mundo a imagem de racista.

Os reiterados ataques racistas no campo ao craque brasileiro
 
24 de outubro de 2021
Vinícius Júnior é insultado por torcedores do Barcelona após sair de campo. O caso é arquivado.
14 de março de 2022
Torcedores do Mallorca insultam o brasileiro, com imagens de câmeras de TV mostrando pessoas dizendo para Vinícius Júnior “pegar bananas”. O caso é arquivado.
30 de dezembro de 2022
Torcedores do Valladolid, time que pertence a Ronaldo, ofendem Vinícius Júnior. Os infratores identificados são multados em 4 mil euros (R$ 21,4 mil na cotação atual) e impedidos de frequentar estádios por um ano, punição aplicada pela Comissão Estatal contra a Violência, o Racismo, a Xenofobia e a Intolerância no Esporte da Espanha.
26 de janeiro de 2023
Torcedores do Atlético de Madrid penduram um boneco de Vinícius Júnior em uma ponte na capital espanhola, no dia do duelo contra o Real Madrid pela Copa do Rei.  Nenhuma punição foi aplicada.
5 de fevereiro de 2023
Um torcedor do Mallorca chama Vini “macaco”. O criminoso é identificado, multado em 4 mil euros (R$ 21,4 mil) e impedido de frequentar estádios por um ano.
18 de fevereiro de 2023
Torcedores do Osasuna xingam Vini. O episódio não é denunciado, mas o goleiro Courtois denuncia ouvido ofensas direcionadas ao brasileiro, incluindo cantos de “morra Vinícius”.
5 de março de 2023
Torcedores do Betis chamam o craque brasileiro de “macaco”. Uma denúncia é apresentada no tribunal investigativo de Sevilha após imagens de câmeras de TV auxiliarem na identificação dos autores dos insultos. A denúncia apresentada por La Liga ao Ministério Público é arquivada.
19 de março de 2023
Vini é alvo de gritos de “macaco” e “morra”  vindos de torcedores do Barcelona. A denúncia apresentada por La Liga ao Ministério Público é arquivada.
21 de maio de 2023
Torcedores do Valencia gritam “macaco” quando Vini estava perto da lateral. O árbitro paralisa a partida, Vini discute com os torcedores e acaba expulso.

O presidente da La Liga, Javier Tebas, rebateu o jogador e disse que ele não deveria se deixar ser manipulado. O dirigente insinuou que o atacante do Real Madrid exagera nas acusações de negligência da liga em casos semelhantes. Mais tarde, o mesmo Tebas pediu desculpas a Vini e reconheceu o racismo sistêmico contra ele nos jogos. “Hashtag não me comove”, respondeu o jogador, que afirmou que a omissão do cartola o iguala aos racistas. Tebas está no comando da La Liga desde 2013 e tem relações políticas com a extrema-direita espanhola. Nos anos 1980, ele foi militante do partido Fuerza Nueva, legenda identificada com aquela fundada em 1976 e que compartilhava ideias autoritárias de Francisco Franco e do franquismo.

Já o técnico do Real Madrid, Marco Ancelotti, que aposta no talento de Vini em campo, saiu em defesa do brasileiro. Com palavras duras, disse que há algo de errado com o Campeonato Espanhol e afirmou que chegou a pensar em retirar o craque de campo para que não sofresse os ataques, o que beiraria o absurdo. “Não há perdão para insultos racistas. A situação é grave, mas acredito que nada vai acontecer”, declarou.

Muito se especula sobre a saída de Vini depois de mais um caso de racismo e a falta de ações concretas para combater esse crime pela liga. Ancelotti, porém, garantiu que o brasileiro quer ficar. “Eu acho que não (quer sair). Vinicius ama o futebol e ama o Real Madrid acima de tudo. Acho que não é o pensamento dele neste momento. O amor pelo Real Madrid é muito grande, então quer fazer sua carreira e ter seu protagonismo aqui”, disse o técnico. Ele se recusou a responder perguntas sobre a partida diante de tamanho escândalo.

O caso acabou virando imbróglio diplomático, relatou o jornalista Jamil Chade, do UOL. O governo Lula tomou uma atitude de repúdio diplomático ao entrar em contato com a Embaixada da Espanha no Brasil para transmitir o posicionamento do governo brasileiro. Chefe da divisão de Europa e América do Norte do Ministério das Relações Exteriores, a embaixadora Maria Luisa Escorel ligou para a embaixadora espanhola Mar Fernández-Palacios, que não está no Brasil, para declarar a posição brasileira de repúdio ao que está acontecendo na Espanha e pedir que os casos não fiquem impunes.

O gesto representa um ato de desagravo ao governo espanhol, cobrando respostas a um problema que é institucional e não apenas um caso isolado. Seguindo a fala de Lula, o governo brasileiro também anunciou que irá conclamar a Fifa a entrar no combate contra o racismo.

“O governo brasileiro lamenta profundamente que, até o momento, não tenham sido tomadas providências efetivas para prevenir e evitar a repetição desses atos de racismo. Insta as autoridades governamentais e esportivas da Espanha a tomarem as providências necessárias, a fim de punir os perpetradores e evitar a recorrência desses atos. Apela, igualmente, à Fifa, à Federação Espanhola e à Liga a aplicar as medidas cabíveis”, diz nota do Palácio do Planalto divulgada à imprensa.

A ONU também condenou o ocorrido. “Fazemos um apelo a todos estes eventos esportivos do mundo para enfrentar, combater e prevenir o racismo”, declarou o alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Volker Turk. Em entrevista coletiva em Genebra, ele destacou que o novo incidente é um “lembrete brutal da prevalência do racismo no esporte”.

O presidente da Espanha, Pedro Sánchez, também se manifestou em repúdio por meio de suas redes sociais, compartilhando um documento do Conselho Superior de Esportes da Espanha, mas que não cita nominalmente Vinícius Jr. “Tolerância zero com o racismo no futebol. O esporte se fundamenta nos valores da tolerância e respeito. O ódio e a xenofobia não cabem no nosso futebol e nem na nossa sociedade”, disse.

Apesar de não reconhecer a ineficiência até aqui, a entidade do governo da Espanha notificará a Real Federação Espanhola de Futebol, os capitães dos times e responsáveis pela liga. O documento alega que os insultos procedem de uma minoria de exaltados que ‘confundem a paixão com o ódio’ e que não devem voltar a pisar num campo de futebol.

Os ministérios da Igualdade Racial, no Brasil, e da Igualdade, na Espanha, publicaram nota conjunta sobre o caso, na terça-feira, 23. Com parágrafos em português e espanhol, o comunicado é assinado pelas ministras Anielle Franco, do Brasil, e Irene Montero, da Espanha. Ambas declaram “solidariedade incondicional a Vini Jr., o jogador agredido, bem como a todos os atletas, profissionais ou não, que vivenciam diariamente a violência racista no esporte”.

E aponta: “O esporte deve ser um reflexo dos valores de igualdade, respeito e diversidade que norteiam nossas sociedades e nele não há lugar para quem propaga mensagens de ódio, racismo, perseguição e intolerância”. O texto cita medidas anunciadas pelos governos dos dois países para enfrentar o tema. Na Espanha, a “futura Lei do Racismo”, proposta pelo Ministério da Igualdade ainda não foi implementada. No Brasil, a elaboração de um “programa nacional de combate ao racismo no esporte” pelos ministérios de Igualdade Racial, Esporte e Justiça.

Além de Anielle, o ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciou ações. Em coletiva, disse estudar “remédio extremo” e que pretende usar o principio da “extraterritorialidade” previsto no Código Penal para aplicar lei brasileira mesmo no exterior em caso como o de Vinícius Jr. “O Código Penal prevê que, em algumas situações excepcionais, é possível que, no caso de crimes contra brasileiros, mesmo no exterior, haja aplicação da lei brasileira”, explicou.

Dino disse que medida será necessária em caso de omissão das autoridades da Espanha, embora ele não acredite que isso ocorra. “É uma espécie de última alternativa que poderá ser usada, mas nós, neste momento, acreditamos que os canais diplomáticos vão cumprir seus papéis e que as autoridades espanholas, sejam judiciais ou do futebol, tomarão as providências cabíveis”, comentou.

Após declaração de Lula, houve uma manifestação de patrocinadores do jogador. A Puma e o banco Santander cobraram posicionamento. E o Real Madrid se pronunciou após 24 horas de silêncio. O presidente do clube, Florentino Pérez, soltou nota, agradecendo a Lula “que pediu que sejam tomadas medidas sérias para combater este problema e cuja vítima é, como disse, ‘um jovem que venceu na vida e que está se tornando um dos melhores jogadores de futebol do mundo’”.

No documento, o clube também condena posturas do presidente da Federação Espanhola, Luis Rubiales. O foco principal do clube foi a equipe de arbitragem, que expulsou Vinícius em lance posterior ao momento em que a partida foi paralisada pelos gritos racistas, já nos acréscimos.

Na ocasião, jogadores das duas equipes se envolveram em confusão e o brasileiro atingiu Hugo Duro com o braço. O VAR orientou a revisão do cartão amarelo inicialmente aplicado ao jogador e o juiz da partida aplicou o vermelho. Não custa lembrar que, até hoje, diversas denúncias apresentadas em episódios semelhantes ao Ministério Público espanhol foram arquivadas. Na última década, a liga espanhola foi palco de outros casos de racismo, inclusive envolvendo atletas brasileiros, como Daniel Alves, que em 2014, atuando pelo Barcelona, foi atingido por uma banana no confronto contra o Villarreal.

O Valencia, time que o Real Madrid enfrentava no domingo, chamou o episódio de “caso isolado”, embora esta seja a nona onda de ataques em campo que Vinicius Jr. sofreu em solo espanhol. “Não há lugar para insultos deste tipo no futebol”, disse o time. A nota também reitera que os fatos estão sendo investigados pelo clube.

Em mais este caso isolado, não apenas um grupo, como afirmam entidades oficiais e os clubes, mas um estádio inteiro, como enfatizou o técnico Ancelotti, fez ofensas racistas em coro ao jogador brasileiro. “Isto não pode ocorrer, um estádio inteiro gritando algo assim. Ele não queria continuar e eu acharia justo, porque é a vítima. Isto não pode acontecer”, opinou o técnico.

O caso é tão grave que, enquanto se desenrolava mais um escândalo racista envolvendo o craque brasileiro, veio à tona desdobramentos de outro caso envolvendo o jogador e ataques racistas. Na quinta-feira, 25, quatro torcedores detidos dois dias antes, por terem pendurado em uma ponte um boneco enforcado com a camisa do atacante, foram soltos após detenção de duas noites.

A punição foi a proibição de se aproximar a menos de um quilômetro de qualquer estádio de futebol, segundo a justiça espanhola. Mas não houve nenhuma imputação criminal. O boneco com o uniforme de Vinícius Jr, foi pendurado em uma ponte em 26 de janeiro, dia de uma partida entre Real Madrid e Atlético de Madrid pelas quartas de final da Copa do Rei. Ao lado do boneco estava uma faixa com a frase “Madri odeia o Real”.

O caso de agora ganhou repercussão da imprensa internacional, com críticas e apoios ao jogador vítima de racismo. Para o jornal SuperDeporte, de Valencia, a melhor escolha editorial foi uma foto de Vinícius Jr. na capa com manchete que ignora o racismo sofrido em campo e ainda aproveitou para repudiar “atitudes do brasileiro”.

O jornal também criticou as falas do técnico Ancelotti, que se posicionou em favor de Vinicius. O mesmo aconteceu no argentino Olé, que preferiu criticar o jogador. “Vinicius foi muito mal: expulso a mando do VAR por atacar um rival e provocou a torcida”, destacou o veículo. O ZDFheute, portal alemão, destacou que o jogo foi “ofuscado por novos insultos racistas contra Vinícius Junior”. O britânico The Guardian reproduziu a denúncia do jogador: “Racismo é normal em La Liga”. No Brasil, a imprensa manifestou apoio massivo ao brasileiro.

Após toda a comoção, Vinícius Junior foi homenageado em jogo. Ele não jogou, mas esteve em campo para ser saudado pela torcida do Real Madrid antes do jogo contra o Rayo Vallecano, na quarta-feira, 24. Antes da partida, todos os jogadores entraram em campo com a camisa 20, que Vini Jr. usa. Também aos exatos 20 minutos de jogo, os jogadores e a torcida do Real o aplaudiram.

Antes do jogo, a torcida expôs uma faixa com a mensagem “Somos todos Vinícius. Já basta”. Junto aos jogadores, a arbitragem se uniu aos donos da casa e seguraram cartaz com os dizeres “racistas fora do futebol”. A faixa é da La Liga, criticada por omissão em quase três anos de ataques. Vini foi ao estádio, assistiu as homenagens, mas não jogou. Apesar do apoio, uma imagem do craque foi vandalizada no Santiago Bernabéu, estádio do Real Madrid. No entanto, a foto de Benzema, ao lado do jogador brasileiro, não foi rasgada. Marcação cerrada. •

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