Entrevista | Karla Monteiro – “A grande reportagem é que dá relevância à imprensa”
Biógrafa de Samuel Wainer e Leonel Brizola, a repórter e escritora descreve suas estratégias para entender esses personagens e sua época. Ela reafirma a importância do jornalismo como ferramenta para entender a realidade. E diz que, como em outros períodos da história, a mídia tomou o lado errado e pagou caro por isso
Autora de “Samuel Wainer — O Homem que Estava Lá”, a jornalista Karla Monteiro embarcou na aventura de escrever biografias quase que por acaso. De acordo com a autora, a ideia nasceu num almoço com João Wainer, à época em que ambos trabalhavam na “Folha”.
“Fui pra Indonésia cobrir aquela história do cara do brasileiro que foi fuzilado [Rodrigo Gularte, que foi detido em Jacarta em 2004 por tráfico de drogas e fuzilado em 2015]. Eu falei pra ele que a pessoa para a gente compreender a história da imprensa e como a imprensa te coloca nos momentos de grandes crises políticas seria o avô dele. Aí ele brincou: ‘Por que você não faz uma biografia dele?’ Fiquei com aquilo na cabeça. Voltei para o Brasil e propus para a editora. E eles toparam”, relata.
As 583 páginas do volume sobre o criador do jornal Última Hora foram publicadas finalmente em 2020 e, agora, Karla corre para entregar os originais do primeiro volume de uma biografia do ex-governador Leonel Brizola, fundador do PDT. O livro está previsto para março de 2024.
Karla, que teve passagens por jornais como O Globo e revista com Veja, Trip e TPM, interrompeu sua rotina de estudos e escrita para conversar com a revista Focus Brasil sobre imprensa, jornalismo e, claro, seus dois biografados, personagens disruptivos, de militância progressista e que, cada um a seu modo, mudaram a história do Brasil. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Focus Brasil — Imagino que deva ter sido difícil, por que apesar de ser um nome muito conhecido e ter as memórias organizadas no “Minha Razão de Viver”, é uma pessoa sobre a qual se sabe pouco da história por detrás da história que ele conta… O que te levou a fazer a biografia do Samuel Wainer?
Karla Monteiro — O que me levou a fazer essa biografia? Eu estava trabalhando na Folha de S. Paulo — trabalhei na Folha em dois momentos da minha vida, no início dos anos 2000, no caderno “Cotidiano”, e no final de 2013, 2014, fui para a Folha para trabalhar na “Ilustrada”. Foi justo naquele momento que o Brasil começou a descer a ladeira. Estavam começando as manifestações contra a Dilma, começando todo o processo da Lava Jato e eu estava ali na Folha. Tudo estava me incomodando muito: saber o posicionamento dos jornais, como a imprensa estava olhando aquilo tudo, como estava avaliando aquele momento político e fazendo uma cobertura muito ufanista da Lava-Jato… Fui naquela primeira manifestação, na Paulista, aquela que se dizia que tinha milhões de pessoas e aquilo foi caindo bem mal. Estar ali no jornal e, ao mesmo tempo, discordando muito da cobertura — não só da Folha, mas da imprensa como um todo.
No meio disso, fui pra Indonésia com o João Wainer, o neto do Samuel Wainer, cobrir a história daquele brasileiro que foi fuzilado (cara pego com drogas) naquele momento. Um dia estamos lá, eu e o João, trocando uma ideia no almoço, eu falei pra ele que a pessoa para a gente compreender a história da imprensa e como a imprensa se coloca nos momentos de grandes crises, enfim, um personagem que pode clarificar isso seria o Samuel Wainer. Aí ele brincou: “Por que você não faz uma biografia?” Eu assim, imagina, não tenho estofo nem conhecimento para fazer uma biografia do Wainer. Mas fiquei com aquilo na cabeça. Voltei para o Brasil e aí, num dia, eu propus a biografia para a Companhia das Letras. E eles toparam! Eu levei aquele susto, fiquei: “E agora?”, mas comecei a fazer. Escolhi o Samuel muito por uma questão de compreender a imprensa através de um personagem, a pessoa que criou a única cadeia de jornais de esquerda do Brasil, a grande imprensa. Confesso que no início, eu era muito crua. Tive que estudar a história do Brasil primeiro, estudar Getúlio Vargas, me aprofundar na história política mesmo do país para só depois disso, entrar na história da Última Hora e do Samuel. E assim foi por isso muitos momentos.
— Você diria que hoje em dia, temos uma escola brasileira de biografias? Com pesquisa extensa, tempo para estudar o personagem e seu contexto etc.?
— O Ruy Castro disse uma vez que sempre teve certeza de que queria escrever biografias nesse livro que ele acabou de lançar, “A Arte de Escrever Biografias”. Eu nunca tive essa certeza. Quando eu trabalhava num jornal ou revista de fazer perfil, eu gostava de fazer entrevistas grandes e perfis. Sempre gostei, sempre foi essa a minha praia. Fiz muita capa de revista, na Trip e na TPM… Das biografias, eu gostava de lê-las: o Ruy Castro é um cara que eu li muito assim e também o Fernando Morais, esses biógrafos que que ampliam o personagem, que quem o personagem tem um pouco na história comportamental, política, social do país. Quando eu comecei a fazer o Samuel, sim, eu olhei muito para essa linhagem, que é uma linhagem que começa lá com o Fernando Morais e Ruy Castro, e depois segue com Lira Neto e Mário Magalhães. Todo mundo pega essa trilha em biografias, que é o que eu costumo brincar, que são “romances da vida real”. Não é só por que se parte da vida real, mas essas biografias tem uma pegada de romance.
— Imagino que seja pelo fato de que, além de se ancorar na pesquisa, você tem de escrever de uma maneira que faça o leitor mergulhar no catatau…
— E como. Não é nada fácil isso de “encontrar a voz”. Biografia não é um amontoado de informações de arquivo. Você tem que transformar esse arquivo numa pessoa viva, ou seja, você tem que encontrar a voz do narrador, a voz do autor. Isso foi uma coisa que eu persegui muito nesse primeiro livro — e eu tive uma ajuda muito grande do meu editor, que é uma pessoa muito experiente da editora. Eu ligava para ele e perguntava: “tá chato?”. Era essa minha preocupação, porque eu queria que o Samuel fosse uma pessoa viva no livro. Samuel é um personagem muito vibrante, um personagem muito de sangue quente; eu queria trazer isso no livro. Eu queria encontrar a minha voz para contar essa história desse cara e foi isso que eu persegui durante todo o tempo.
— Uma coisa que te diferencia do estilo do Ruy Castro, para citar alguém que realmente imprimiu uma marca na escrita das biografias, é que você tem um fascínio evidente pelo personagem, mas é menos enviesada. O Ruy se apaixona perdidamente pelo biografado, qualquer que seja ele. Fiquei aqui pensando se isso é uma característica sua ou se os personagens que tem uma vida política impõem esse trato mais distanciado.
— Isso também foi uma outra obsessão minha durante a biografia: não me envolver com o Samuel a ponto de não enxergá-lo. Ele é um personagem complexo, que não tem uma ética retilínea. É um personagem que se tiver que dar chute abaixo da cintura, ele vai dar. Se tiver que passar a perna aqui ou ali, ele vai fazer para chegar num lugar que ele acreditava ser o lugar que lhe pertencia. Isso também me fascinava no Samuel. Coloquei um critério muito forte dentro de mim: não posso ser moralista, eu não posso julgá-lo e condená-lo por isso tudo. Tive de fazer esse exercício de me distanciar do personagem, não julgar, de não absolvê-lo tampouco, de pensar isso faz parte dele.
Agora, assim que você encontrar uma voz para o narrador, mesmo que seja uma voz que pareça ausente, você percebe que não tem jeito de do autor desaparecer. Eu não acredito em imparcialidade, eu não acredito em objetividade. Eu acredito em honestidade intelectual, em escolher, como diz o Saramago, o olhar palatável, mas deixar aberto para carregar num ponto aqui, aliviar meu ânimo ali e, assim, saber dosar a minha presença? Eu acho que esse é um exercício que vem do jornal, é isso que a gente faz quando escreve para um jornal. Tentei levar um pouco dessa técnica, dessa tentativa incessante de me distanciar sem perder a empatia, sem perder, sem perder a conexão com o personagem, mas sem adorá-lo ou demonizá-lo.
— Quais são os pontos em comum entre seus dois biografados até agora? Além de serem personagens de relevo — o Samuel na imprensa, o Brizola, na nossa história política recente…
— Quando eu terminei de fazer o Samuel Wainer, fiquei pensando quem que eu gostaria de estudar assim daqui pra frente? Como eu te falei lá no início, comecei pensando no papel da imprensa, em como a imprensa nos coloca na história nos momentos de crise do Brasil… Ou seja, decidi por que sua história tem uma ligação direta com o jornalismo. E logo eu também estava pensando isso também sobre o Brizola: o quanto ele foi um personagem que incomodou muito, como foi tão julgado e mesmo apedrejado. Ele sempre teve uma relação muito conturbada com a imprensa, mesmo no Sul, com o Breno Caldas, do Correio do Povo. Depois ele vai pro Rio de Janeiro e arruma uma briga gigantesca com o Roberto Marinho.
Então, pensei: “cara, eu gosto desses personagens malucos, cujas atitudes acabam por revelar muito da sociedade em que estão inseridos”. “Malucos” no sentido que eles incomodam, não passam despercebidos pela vida. Além disso, eu tinha um bom pedaço já estudado sobre a história do tempo em que o Brizola viveu e atuou. Ele e o Samuel correm em paralelo, jogando o jogo na pré-ditadura, os dois ligados a Getúlio Vargas, os dois ligados ao PTB, embora fossem de correntes diferentes dentro do PTB. O Samuel era um defensor da conciliação, tentar puxar o Jango para a terra; o Brizola era mais radical.
— Eram disruptivos?
— Exatamente! Disruptivos em termos dos seus objetivos: o Brizola era muito assim. Ele tem uma história fascinante, que eu conhecia pouco também no início. Conheci o Brizola na pós-ditadura, quase com aquela aura folclórica. Agora, estou muito fascinada por sua história, por tudo que o Brizola representou para o país. Então, acho que vem aí um livro que vai trazer o Brizola de volta. Serão dois volumes: o primeiro vai é só até o fim do exílio em 1979, quando ele volta para o Brasil; o segundo, pega o período do Rio de Janeiro, campanha presidencial etc. Tenho até pensado muito nisso de 1989, que o Brizola merecia ter sido presidente…
— Em algum momento, você teve medo de ferir suscetibilidades ou de entrar demais na intimidade?
— Claro, você está lidando com a vida de uma outra pessoa e não com a sua. Eu tive, mas não recuei por conta disso. Por exemplo, eles acreditavam muito naquela história de ele ter batido por acaso na porta do Getúlio: por acaso, ele estava sobrevoando o Rio Grande do Sul, fazendo uma matéria sobre uma tribo indígena e de repente deu na telha de entrevistar o Getúlio. Eles acreditavam muito nessa versão, que é o que ele conta na CPI contra a Última Hora. Mas aí eu achei a correspondência do Getúlio com ele — e o Lira Neto já tinha mencionado isso no livro dele sobre o Getúlio –, mas eu mergulhei ainda mais, encontrei mais cartas… E eles me questionaram sobre isso, não brigaram, mas questionaram. Aí eu expliquei: “gente, olha só, tem um monte de cartas entre Alzira Vargas e Getúlio Vargas que comprovam que estava tudo combinado”. Acho que essa foi uma parte delicada. Era assim a arte da política, uma jogada ali que o Assis Chateaubriand combinou de mandar um repórter e o Samuel foi esse repórter. Agora, ele teve o mérito de chegar lá e arrancar uma entrevista realmente bombástica do Getúlio Vargas, que provocou a volta do Getúlio ao palco da política.
— E a do Brizola, pode perguntar quando é que sai o primeiro volume ou é um drama?
— Está previsto para março do ano que vem o primeiro volume. Vamos ver se eu consigo contar a história toda. Estou lutando.
— Que horas que uma biografia está acabada? Você deve ter um planejamento, mas que hora você diz chega, acabou?
— Esse é o momento definitivo, o momento do desapego. Eu sou muito, acho que até é mesmo um traço de TOC. Eu pego o primeiro capítulo e trabalho nele até esgotar o que eu tenho de assunto e o que tenho de dúvidas. Mas assim, na verdade, de boa, tem uma hora que você toma aquela decisão: “tá bom, agora tá pronto, mas acabar mesmo, não acaba”. Eu poderia ficar outros anos pesquisando o Samuel, mas uma hora você tem de tomar a decisão de que acabou. Com o Brizola, tenho me deparado muito com essa questão de o que é importante contar, que não é tão importante contar… Ontem mesmo, fiquei conversando com o meu editor que só a história da infância do Brizola já era muito rica. É uma história do Rio Grande do Sul, é “O Tempo e o Vento”, sabe?
O pai dele morreu fuzilado na revolução de 23. Aí eu não vou contar a Revolução de 23? Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros; essas pessoas fazem parte da formação do Brizola. Como é que é dosa? O Brizola é de uma família de origem campesina, é de uma cidade muito pequena, eu estive lá, quase na fronteira com o Uruguai. Para você compreender o Brizola, você tem de compreender que ele vem de um lugar de revoluções, de polarização política, de agitação. Ele é de uma cidade de colonização alemã e italiana, ou seja, de uma cidade em que o integralismo teve muita força no começo dos anos 30. A formação do Brizola é muito importante para entender porque é que o Brizola fez tudo o que fez por que tinha aquela personalidade, aquele jeito de falar, naquelas metáforas, por exemplo.
— Ou seja, vai ser uma história política de um pedaço do Brasil, do Rio Grande do Sul, coisa que imagino que tenha tido cuidado de apresentar ao leitor não-gaúcho…
— Eu, por exemplo, não conhecia nada. Eu passei três meses em Porto Alegre e dois meses no Uruguai. O Brizola ficou muitos anos no Uruguai, a vida inteira praticamente teve relação com o Uruguai. A cultura do Brizola era muito gaúcha de fronteira, muito latina. Talvez por isso tenha sido tão incompreendido no Rio de Janeiro. Aliás, tem uma coisa engraçada: o Brizola sempre foi chamado de caudilho e a gente entende de forma pejorativa o caudilho. Daí quando eu fui para o Uruguai, acabei perguntando para a historiadora na casa de quem fiquei hospedada: caudilho aqui é bom ou é ruim? Para a cultura cisplatina, caudilho é um grande líder, um líder de revoluções, um cara que vai para a frente, que vai abrindo caminho.
— A imprensa dos anos 50 nos ajuda a entender o que está acontecendo com a mídia agora?
— Os historiadores odeiam comparação, mas acho que olhar para os anos 50 e o que aconteceu com Lula, nos ajuda muito a entender o que aconteceu com Getúlio, apesar de serem personagens com origens e trajetórias muito diferentes. Getúlio era um personagem extremamente popular, tinha um legado que o povo reconhecia, que eram as leis trabalhistas. Então o Getúlio foi eleito nos anos 1950, popularmente muito forte, mas sem nenhum apoio da imprensa. E quem era a imprensa? A imprensa era Roberto Marinho, Assis Chateaubriand, os Mesquita, o Bittencourt, do Correio da Manhã. Eram esses caras que eram ou herdeiros, ou o Chateaubriand, que era um cara de primeira geração, um intruso. Esses caras tinham uma agenda política. O Júlio Mesquita era praticamente um cara da UDN. O Roberto Marinho era muito ligado ao Carlos Lacerda. Todos tinham uma agenda liberal, conservadora. E isso era a imprensa, né? Então você olhava para aquilo, aquela opinião daquelas pessoas ali era a opinião que prevalecia, a forma como eu descobria o governo Getúlio, era o que prevalecia. Os jornais eram muito poderosos, muito fortes. O editorial do Correio da Manhã era capaz de fazer tremer. E tinha O Globo, no Rio, e o Estadão, em São Paulo. Eles eram o poder quase absolutista. Aí a Última Hora chega para contar uma outra história. Então, o que acontece? O Samuel, ele é que vira o intruso. Ele era um outsider. Ele é o judeu pobre e o que que ele fez? Exatamente o que todo mundo fazia: empréstimo em banco público sem garantia, troca de favores das relações com empresários etc. Essa troca de favores era o que sempre acontece, mas quando é ele quem faz e ainda por cima cria um jornal que incomoda e que vende muito, ele vira a Geni. Vira uma coisa — todos contra Samuel. O jornal, quando começa a fazer sucesso, começa a incomodar. E aí cria se uma guerra midiática que é o começo da crise que vai levar o Getúlio ao suicídio. O Carlos Lacerda que é o cara que assume ali o trombone via a Tribuna da Imprensa, disse em vários momentos que miraram o Samuel para acertar no Getúlio. E isso se repete porque a imprensa… A imprensa são pessoas. E quem são essas pessoas? De onde elas vêm? Qual é o olhar delas? Qual é? O Samuel, ele falava uma coisa que eu acho muito interessante. Ele falava que na Europa e dos anos 50, nos Estados Unidos dos anos 50, o jornalismo estava muito ligado a partidos: o New York Times representava a posição do Partido Democrata, outro representava o Partido Republicano… E no Brasil, não. O jornal era o que os seus donos queriam que eles fossem. E esses donos são quem, a quem estão ligados? A partidos conservadores e partidos liberais, mas sem dizê-lo. Essa confusão prevalece na imprensa até hoje. Se você olhar o sobrenome, são os mesmos dos anos 50. Alguns ficaram pelo caminho com a ditadura, mas prevalece esse espírito de corpo.
— Que disfarça uma defesa de classe…
— Sim, e o Samuel chega olhando isso de fora. Nos anos 50, ele escancarava que ia contar uma outra história e isso faz o jornal vender muito. Teve épocas que a Última Hora no Rio vendia mais que O Globo. Quando o jornal chegou a São Paulo, dominou rapidamente o mercado porque era um jornal trabalhista numa cidade de trabalhadores, fez muito sucesso em São Paulo. A gente pode, por exemplo, comparar com o que aconteceu com o impeachment da Dilma ou à época da prisão do Lula. A imprensa contava uma história, mas tinha livros, blogs na internet contando outra história. A diferença é que o Samuel estava dentro da grande imprensa. Na época ele não era um blog, ele não era um jornal alternativo, ele tinha um veículo da grande imprensa fazendo frente. E isso incomodou muito.
— Fora que a Última Hora era um jornal muito moderno em termos de linguagem, não?
— Sim. A imprensa tinha passado 15 anos no Estado Novo, com censura e o DIP… Quando chegaram os anos 1950, os jornais eram muito velhos. As matérias começavam na capa e continuavam dentro, era uma confusão danada. Não existia diagramação, não existia fotografia… Para você ter uma ideia, o Correio da Manhã, que era o principal jornal, trazia o noticiário internacional traduzidos das agências na capa. O noticiário nacional vinha na página 12… Como o Samuel tinha morado na Europa e tinha trabalhado em jornais super modernos, quando ele volta para o Brasil, faz uma revolução formal. A Última Hora inaugura o fotojornalismo no Brasil. Foi o primeiro jornal, por exemplo, a publicar uma foto de time de futebol na capa, a trazer noticiário de polícia para a capa… Investiu muito em equipe, tinha o Nássara como chargista, textos curtos, crônicas. Tinha uma turma de cronistas muito, muito fortes: Nelson Rodrigues, Rubem Braga, Otto Lara… A imprensa mudou muito a partir da Última Hora. O Globo, por exemplo, copiou muito a Última Hora. Neste momento sabe tudo, tudo, tudo muda, todo mundo tem que se mexer. Por exemplo, tiveram que pagar jornalista… Ele tirava as pessoas das outras redações pagando o dobro, o triplo… O Otto Lara Resende conta essa história, que ele saiu de O Globo por que o Samuel ofereceu cinco vezes o salário dele. Ele contrata toda a família do Nelson Rodrigues… Ele montou um timaço para enfrentar o antigetulismo da imprensa. Só que acabou, como a gente sabe né? O Getúlio perde a parada, ele perde ou ganha a parada dependendo de como se olha ele. O Getúlio, ao se matar, adia o golpe de 1964 por dez anos. Samuel e a Última Hora atravessam bem o governo JK e o governo Jango. Aí quando vem a ditadura, ele vai preso e perde tudo. Literalmente, tudo. E aí o Cláudio Abramo um dia bate na porta dele em 1977 e ele vira um colunista da página 2 da Folha de S.Paulo. Só assim, ele recupera o prestígio intelectual. E aí ele se torna um jornalista, vive o dia a dia da Folha.
— A internet realmente, de certa forma, libertou a publicação do papel e da distribuição física. Mas aí também abriu uma ‘Caixa de Pandora’ de outras monstruosidades: mentira, boataria, fake news… Como resguardar o papel essencial da imprensa para a democracia nesse cenário de deterioração?
— Eu acho duas coisas: tem que voltar a investir em reportagem e em reportagem de verdade, investigativa, que custa dinheiro. Os jornais estão muito sucateados, não tem mais braço… Só restou um jornalismo de opinião, o colunismo, o jornalismo declaratório. Acho que para a imprensa se firmar como algo que que é relevante, que tem o seu papel, tem de voltar a investir em reportar, recuperar a grande reportagem.
Outra coisa questionar essa ilusão de imparcialidade e assumir um lado. Eu achei que é voltando aquela história que eu falei da Última Hora, ser um jornal muito claro, que assumia sua postura. Hoje, os jornais se dizem independentes. Vamos desmontar essa notícia: de que lado estão essas pessoas que financiam os jornais? Porque se não se conta para o leitor exatamente que agenda política e econômica os jornais ou seus financiadores defendem, que aqui aquela cobertura é feita com o olhar X ou Y, o leitor desconfia.
Para recuperar a credibilidade e confiança, eu acho que a imprensa tinha que ser mais clara. Assumir sua linha editorial e deixar isso claro pro leitor. Paralelamente a isso, acho muito importante investir em reportagem e dosar opinião. Ninguém mais acredita em nada que lê. E é uma pena, porque, bem ou mal, a gente cresceu lendo jornal. Eu acordo de manhã e quero ler jornal. Só que ultimamente eu não consigo ler. Uma coisa que meu pai falava também é que eu acho muito boa, muito boa, porque conta que ele falava com os filhos dele e os filhos dele, com aquilo que eles falaram. “Assim vocês dão um jeito de fazer a coisa de vocês”. Aquele jornal não era o certo que a gente sempre falava isso porque se você pensar pode ser tudo contra o Roberto Marinho, mas não era Marinho. •