Dois lançamentos procuram explicar a irrealidade coletiva das redes sociais e confrontam visões distintas sobre o futuro da tecnologia digital. Para o evangelho do marketing, o metaverso será uma experiência nova. Para o jornalismo investigativo, uma máquina sofisticada de agressão

Seriam as redes uma “revolução” para mudar “para sempre a realidade” ou um coletivo de inteligências do malignas que “reprogramaram nossa mente e, nosso mundo”? A pergunta, formulada em caracteres suficientes para caber num tuíte, aponta para duas perspectivas completamente diversas sobre as redes sociais e o mundo virtual.  De um lado, há promessa de um futuro leve, divertido, no qual a tecnologia em estado abstrato e autônomo será capaz de ajudar indivíduos, empresas, negócios; enfim, a sociedade. De outro, avisa-se que o pior do impacto da comunicação por meio digital ainda nem chegou.

No primeiro cenário, o metaverso já começou e transformará todos em seres híbridos homem-máquina, pelo menos no que diz respeito à nossa vida mental. Tal cenário é descrito por um especialista em capital de risco, CEO de uma empresa de tecnologia, Matthew Ball, em “A Revolução do Metaverso – Como o mundo virtual mudará para sempre a realidade” (editora Globo).

Ball é um “evangelista” do metaverso. Na origem do termo, “tech evangelists” (ou “evangelistas tecnológicos”) eram os engenheiros e cientistas da computação que compunham o grupo envolvido com a construção do primeiro computador pessoal da Apple e sabiam “vender” o produto. A tarefa de convencer pessoas comuns a terem um computador elegante, mas caro e incompatível com outros sistemas operacionais, era muito árdua. Daí a ideia de evangelizar.

Na história da tecnologia digital de lá para cá, há sempre de vender a nova novidade com a paciência, o entusiasmo e a dedicação de quem prega no deserto. O metaverso, espécie de expansão em tecnicolor e animação 3 D do mundo virtual no qual já estamos parcialmente imersos, de acordo com o evangelho de Bell, é um mundo de oportunidades de ganhos na casa dos trilhões de dólares, de conexão e imersão total do indivíduo num combo de shopping center e ambiente de jogos global.

Para um CEO, consultor de empresas de startups, investidor-anjo e produtor de games e audiovisual digital, parece ser evidente que este novo mundo será inescapável. Ball é um nativo do mundo digitalizado e, aos 30 anos, acumula um currículo impressionante como homem de negócios.

Seu longo ensaio sobre a “próxima internet” é informado, didático e cheio de histórias curiosas, mas não consegue tocar nas questões que, hoje, são as que regem as discussões mais complexas sobre o meio digital: precisamos de tudo isso mesmo? Quem vai ficar de fora dessa festança de avatares e bitcoins? Em que medida o humano se transforma radicalmente nessa experiência? E, sobretudo, precisamos de tudo isso mesmo?

São indagações parecidas com essas que nortearam “A Máquina do Caos – Como as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo”, do jornalista Max Fisher (editora Todavia). Talvez até mais importantes do que as perguntas seja o fato de que Fisher, repórter no “New York Times”, recebeu em 2018 um pacote de documentos de ex-empregado do Facebook desconfiado dos critérios de moderação em grupos naquela rede.

A partir dos documentos fornecidos pelo whistleblower, ele começou uma investigação que o leva para dentro das empresas do Vale do Silício, para entender como, afinal, aqueles que constroem e mantêm as redes de informação e comunicação tratam do efeito da disseminação dos discursos de ódio, fake news, mentiras e boatos que se tornaram a língua franca da redes.

Num estilo que se pode chamar de ensaio jornalístico, “A Máquina do Caos” remonta histórias escabrosas de acusações falsas e da espiral de desinformação que levaram ondas de ódio e ataques, na maioria das vezes com alvo em grupos minoritários que tiveram a participação decisiva de redes sociais tão comuns como o Facebook, o Youtube e o Whatsapp.

Em contraste com o panorama do metaverso animado e próspero, ao longo do seu livro vamos encontrar um meio ambiente em que viceja aquilo que há de pior no humano: crimes, violência sexual, conspirações. Tudo mil vezes amplificado pela imediatez e pela promessa de gratificação rápida das redes sociais.

Ainda que Fisher seja cuidadoso em atribuir responsabilidade das plataformas de forma direta, “A Máquina do Caos” consegue traçar um panorama impressionante da alienação (na melhor das hipóteses) que cerca o discurso das diversas pessoas envolvidas no grande negócio das redes. E estamos aqui falando do Google, responsável pelo Youtube, e do Meta, que detém o Facebook e Whatsapp.

Entre o cinismo e a candura, os trabalhadores das empresas de tecnologia de informação, na maioria dos casos relatados pelo autor em seu livro, se esquivam de compreender as responsabilidades do que produzem. Mais ainda, muitos negam que o poder de manipular a maneira de enxergar a realidade possa ter consequências desastrosas.

Com pesquisa muito cuidadosa, Fisher escreve um uma espécie de anti-manual do futuro — ou, ainda, um guia para não chegarmos —, desse presente em que boiamos no ódio simbólico e concreto, num amanhã logo ali e ainda mais distópico. O caos produzido pelas máquinas, ele nos avisa, já está instalado e funcionando à velocidade da luz em nossas casas e em nossos bolsos.

Os dois livros, no entanto, o do “evangelista da tecnologia salvadora” e o do repórter que nos traz verdades inconvenientes, são úteis justamente para fazer esse contraponto. Se Ball aponta para o que as empresas gigantes, grandes e médias de tecnologia querem desenhar para as próximas décadas, Fisher sugere um mergulho mais aprofundado e crítico no presente e no passado recentes para podermos retomar a possibilidade de desenhar um futuro alternativo — com as máquinas, mas com humanos mais libertos da servidão dos algoritmos. •

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