Autoridades dos EUA pedem calma, investidores fogem das ações de bancos menores nas bolsas, enquanto o FED e o BCE repensam a política monetária após o colapso do Silicon Valley Bank e a quebra do Signature. Joe Biden corre para salvar o sistema e é criticado. É o fantasma da crise de 2008 que sussurra: o mercado financeiro precisa de normas que impeçam lambanças

O pesadelo neoliberal assombra a maior economia do mundo. O cheiro é familiar. Uma instituição financeira não muito conhecida entra em crise. As autoridades em Washington pedem calma, enquanto os bancos centrais se mobilizam e os investidores despejam ações, provocando queda das bolsas. Outros títulos sobem e o ouro também.

O cheiro de podre se prolifera. O cheiro é familiar porque o mundo assistiu a isso há apenas 13 anos: uma crise financeira. Ainda não se sabe o quão profunda é a atual crise e o quanto este episódio, marcado sobretudo pelo colapso do Silicon Valley Bank, afeta a economia real, mas os efeitos já são palpáveis ​​nos mercados, nas expectativas de subidas das taxas de juro e mesmo no discurso político. A desconfiança já atingiu o Credit Suisse, resgatado com US$ 54 bilhões na quarta-feira, 15, pelo Banco Central da Suíça. O risco é da crise atingir o planeta.

Em um final de semana, o mundo assistiu as maiores falências de bancos desde a crise financeira de 2008 e a segunda e terceira maiores falências de bancos na história dos Estados Unidos. Na prática, a mão amiga do Estado foi acionada para resgatar o mercado — aquele touro indomável que promete há décadas tornar o mundo um lugar melhor.

O efeito político já pode ser sentido no Congresso dos EUA. Os democratas voltam a discutir no Capitólio que o sistema financeiro dos Estados Unidos precisa de regulação. Foi a falta de regras, afrouxadas nos últimos anos durante o governo Trump, que colocaram o mercado financeiro de novo no olho de um furacão. Pior. Vários democratas se juntaram aos republicanos no Congresso para enfraquecer leis, incluindo Dodd-Frank, a histórica reforma aprovada após a crise. 

Agora, o fato constrangedor é constatar que executivos dos dois bancos que entraram em colapso — o Silicon Valley Bank e Signature Bank — estavam entre aqueles que fizeram lobby com sucesso para enfraquecer as regras que poderiam ter evitado seu colapso na última semana. Pior é saber que deputados democratas foram para o outro lado do balcão.

O ex-congressista Barney Frank, que ingressou no conselho do Signature Bank depois de deixar o Congresso, fez lobby para enfraquecer a Lei Dodd-Frank, do qual é co-autor. Nos últimos sete anos, Frank recebeu pelo menos US$ 2,4 milhões em dinheiro e ações do Signature Bank antes do colapso do banco.

Os ecos de 2008 ressoam nas mensagens que se seguiram à crise do Silicon Valley Bank. Há apenas 15 anos dizia-se também que o Bear Stearns era um caso isolado e que o risco de contágio era limitado, antes que a falência do Lehman Brothers desse o sinal oficial de partida para a Grande Recessão. A história vai se repetir ou desta vez é diferente?

O cenário central continua sendo de impacto limitado, mas em crises financeiras, como corridas aos bancos, há uma espécie de profecia autorrealizável. A quebra do mercado de ações dos bancos regionais dos EUA na segunda-feira, 13, deixa a todos de cabelos em pé.

Na terça-feira, 14, o New York Times lembrava da promessa feita por Barack Obama em 21 de julho de 2010, quando assinou o pacote normativo Dodd-Frank para regulamentar os bancos após o colapso de 2008 — a maior quebra desde o crash de 1929, expondo que o capitalismo sem freios tem um custo para todos. Ali, Obama declarou: “Não haverá mais resgates financiados por impostos. Ponto”. Biden estava ali, ao lado de Obama, batendo palmas para a promessa.

Na segunda-feira, 13, foi Biden quem reiterou a mensagem: “Este é um ponto importante: nenhum prejuízo será arcado pelos contribuintes”, prometeu o presidente dos Estados Unidos. “Deixe-me repetir: nenhuma perda será suportada pelos contribuintes”. Biden não conseguiu pronunciar sequer a palavra “salvamento”. Mas foi isso que Washington fez.

O Fundo de Garantia de Depósitos (FDIC), o Federal Reserve e o Departamento do Tesouro garantiram os depósitos dos clientes do SVB, que somam cerca de US$ 175 bilhões de dólares, e os do Signature Bank, também quebrado, que rende outros US$ 100 bilhões.

Apesar do risco moral de cobrir todos os depósitos — e não apenas aqueles de menos de US$ 250 mil, como é a norma, as autoridades estão cientes de que não garanti-los teria causado um contágio imediato, arrastando para baixo outras entidades financeiras regionais e gerando uma grande crise de confiança no sistema bancário do país. O SVB é o 16º banco em tamanho dos Estados Unidos.

“Os americanos podem ter certeza de que nosso sistema bancário é seguro. Seus depósitos estão seguros”, garantiu Biden. As autoridades farão “o que for preciso”, acrescentou, usando palavras semelhantes às usadas pelo presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, para defender o euro. Biden repetiu que não haverá prejuízos para os contribuintes, mas que a limpeza será financiada com as taxas que as entidades pagam ao FDIC.

Essa é a diferença em relação aos resgates ao estilo de 2008, pagos com dinheiro público. A outra é que, embora os depositantes sejam ajudados, não haverá resgate para investidores de bancos falidos, sejam eles acionistas ou detentores de títulos: “Eles assumiram um risco conscientemente e perderam seu dinheiro. É assim que o capitalismo funciona”, insistiu Biden.

Não apenas os acionistas e detentores de títulos do SVB perderam seu dinheiro. Na semana anterior, o Silvergate, um pequeno banco vinculado à criptomoeda, e o Signature Bank, uma entidade de Nova York também próxima ao mundo criptográfico arrastado para baixo no fim de semana, também caíram. As autoridades podem ter impedido a fuga de depósitos, mas não impediram a fuga de investidores.

REGRAS Obama assina o pacote legal Dodd-Frank, em 2010, para regular o setor financeiro e impedir novos abusos de instituições como na crise de 2008

O mercado agora aposta quem será a próxima vítima. Os primeiros candidatos são os que mais se assemelham ao SVB, bancos regionais, principalmente na Califórnia, onde a crise do SVB também é reflexo de uma mudança de ciclo um tanto mais ampla para as empresas de tecnologia. As ações do 14º maior banco dos EUA, o First Republic Bank, com sede em São Francisco, caíram mais de 60% na segunda-feira. Mesmo diante da alegação da entidade de que tinha liquidez abundante.

As ações de outros bancos regionais como Western Alliance (Arizona), PacWest (Califórnia) e Zions (Utah) caíram entre 25% e 50%. Charles Schwab, com cerca de US$ 350 bilhões em depósitos, caiu mais de 11%. Em todo o mundo, os bancos, especialmente os considerados mais fracos, também sofreram punições dos investidores.

Os relatórios da crise vêm de todos os cantos financeiros do planeta, de um fundo de pensão sueco a uma empresa de tecnologia australiana ou uma empresa de investimentos japonesa.

O Silicon Valley Bank era uma entidade peculiar. Fundado em 1983 e sediado em Santa Clara, Califórnia, no coração do Vale do Silício, cresceu e se tornou o 16º maior banco dos Estados Unidos em ativos. Fazendo jus ao nome, desempenhou importante papel no setor de tecnologia. Era um banco de referência para as startups, as novas empresas emergentes a quem as entidades tradicionais relutavam em emprestar dinheiro. O paradoxo é que não foi o risco assumido no setor de tecnologia que afundou o banco, muito pelo contrário.

DÉJA VU Biden anuncia o resgate dos bancos Silicon Valley e Signature, na segunda-feira, com a promessa de que os contribuintes não sairão no prejuízo

O negócio de um banco é receber depósitos de quem tem dinheiro para emprestar a quem precisa, mas as empresas tecnológicas nadavam em liquidez abundante em 2021 e início de 2022. Juros baixos, rodadas de financiamento, IPOs, aumentos  de capital e outros canais de financiamento fizeram com que as startups não pedissem tantos empréstimos ao SVB, mas depositassem valores multimilionários no banco. A instituição decidiu investir os depósitos de curto prazo pelos quais não pagava juros em títulos seguros de renda fixa de longo prazo com alguma remuneração.

Parecia um acordo redondo, mas as taxas de juros começaram a subir. Normalmente, para um banco, esse aumento de juros é bom. A maior parte dos empréstimos às empresas são a taxa variável e a subida das taxas aumenta os rendimentos do banco, que, entretanto, pode demorar a aumentar a remuneração dos depósitos. No caso do SVB, em vez de empréstimos corporativos de curto prazo e taxa variável, havia títulos do Tesouro dos EUA de longo prazo e outros títulos de renda fixa. O preço ou valor dos títulos se move na direção oposta às taxas de juros. Se as taxas sobem, os títulos valem menos. Em princípio, são apenas perdas latentes, no papel, enquanto o banco mantiver os títulos em carteira, mas se os vender, eles se materializam.

Paralelamente, a alta das taxas exauriu as fontes de financiamento das empresas de tecnologia, que passaram a sacar dinheiro do banco. Para reembolsar os depósitos, o SVB teve de vender obrigações e essas perdas fictícias foram convertidas em perdas reais. Isso, ademais, deteriorou seus indicadores.

A péssima gestão e comunicação desta situação na quarta-feira passada, 8, e uma operação falha de aumento de capital geraram desconfiança, pelo que mais depositantes quiseram recuperar o seu dinheiro, alimentando um círculo vicioso de fuga de depósitos a que nenhuma entidade resiste. A debandada financeira derrubou, assim, um banco que decidiu investir em ativos seguros.

Os problemas se espalharam para o Signature Bank. Ambas as entidades tinham em comum o crescimento muito forte em depósitos, a maioria dos quais não segurados. E enquanto o SVB tinha startups como clientes, o Signature recebia depósitos de empresas de criptomoedas.

Para afastar o espectro de uma crise financeira mais grave, as autoridades não só garantiram os depósitos, como o Federal Reserve — o Banco Central dos EUA — criou um novo mecanismo de liquidez para as entidades que possam ser afetadas por levantamentos de depósitos por parte dos seus clientes.

Eles poderão solicitar recursos ao banco central usando como garantia seus títulos de dívida pública pelo valor nominal e, portanto, não terão que vendê-los com prejuízo. A ideia deste tipo de mecanismo é que sejam preventivos ou dissuasivos: ou seja, que a sua mera existência impeça a fuga de depósitos e torne desnecessária a sua utilização.

DO OUTRO LADO O ex-deputado Barney Frank (D), da Lei Dodd-Frank, deixou o Congresso e virou conselheiro do Signature, antes de quebrar

O medo do contágio está no mercado, como explicaram analistas do Citi no último fim de semana: “Antes do SVB, já estávamos em um ambiente frágil com preocupações no mercado de bancos sobre pressões de financiamento, grandes perdas não realizadas em títulos e possíveis preocupações com a qualidade do crédito em áreas como imóveis comerciais”, disse uma fonte, de acordo com o El País. “Então, o fracasso do SVB apenas alimenta a narrativa”.

Embora acredite-se que a natureza do modelo de negócios do SVB seja única, há uma preocupação com o risco de contágio neste ambiente frágil para bancos menores, especialmente aqueles com grandes bases de depósitos não segurados, e é por isso que uma resolução é importante para restaurar a confiança. Um analista do mercado financeiro confessou ao jornal espanhol: “É mais uma questão psicológica, já que os modelos de negócios bancários dependem da confiança e, como mostra a história do SVB, uma vez que a confiança desaparece, isso pode ser muito problemático”, explica.

O FDIC tentou, sem sucesso, no domingo, encontrar um comprador para o Silicon Valley Bank, uma solução que teria sido mais limpa e cirúrgica do que um seguro de depósito geral. Os esforços para vender o banco caído a outra entidade que responda pelos depósitos continuaram na segunda-feira sem se concretizarem e abriu-se a opção de cisão.

Os especialistas da Oxford Economics também apoiam a tese do risco limitado: “O colapso do SVB foi causado por fatores específicos que sugerem que não é necessariamente uma indicação de riscos mais amplos para a estabilidade financeira, mas é claro que os riscos estão aumentando. A base de clientes do SVB era dominada por investidores de capital de risco e startups”, aponta uma fonte.

“E estava excepcionalmente mal preparado para sobreviver aos aumentos agressivos de juros do Federal Reserve. Tinham uma proporção particularmente grande dos seus ativos líquidos em títulos de longo prazo”, disse. “Depois de sofrer pesadas perdas em sua carteira de investimentos devido ao aumento das taxas, a falta de diversidade entre sua base de clientes levou a um êxodo de rebanho, exacerbando a corrida aos bancos”.

Embora o caso do SVB seja extremo, não é único. Martin Gruenberg, presidente Fundo de Garantia de Depósito, o FDIC — a agência federal dos Estados Unidos da América cuja principal função é a de garantia de depósitos bancários — alertou em uma conferência em Washington no Institute of International Bankers que “o atual ambiente de taxas de juros teve efeitos dramáticos na lucratividade e no perfil de risco das estratégias de investimento”.

Com o aumento das taxas de juros, os ativos com prazos mais longos comprados pelos bancos quando as taxas eram mais baixas agora valem menos do que o valor de face. “O total dessas perdas não realizadas, incluindo títulos disponíveis para venda ou mantidos até o vencimento, totalizou cerca de US$ 620 bilhões no final de 2022”, explica Gruenberg.

Embora o presidente do FDIC argumente que os bancos geralmente estão em uma posição forte — muito longe dos problemas de solvência de 2008 —, parte de sua intervenção foi presciente: “As perdas não realizadas enfraquecem a capacidade futura de um banco de atender às necessidades de liquidez inesperada. Isso ocorre porque os títulos gerarão menos caixa quando vendidos do que o inicialmente previsto e porque a venda normalmente resulta em uma redução no capital regulatório”.

Na crise financeira de 2008, mais de 450 bancos faliram em quatro anos, desde bancos muito pequenos até grandes empresas como Lehman Brothers e Washington Mutual.

Para combater a inflação, o Federal Reserve empreendeu os aumentos de juros mais agressivos em quatro décadas. Há um ditado em Wall Street que diz que o Fed aumenta as taxas até quebrar alguma coisa. E parece que ele já quebrou.

Por esta razão, os analistas que acreditavam que haveria um aumento de 0,5 ponto na reunião da próxima semana agora estão inclinados a pensar que será de 0,25 ou que não haverá aumento. O Goldman Sachs espera uma pausa “à luz das recentes tensões no sistema bancário”. Os ciclos anteriores de aumento das taxas oficiais levaram à crise das hipotecas lixo (2007), ao colapso do fundo LGTM (1998) ou à desvalorização do peso mexicano (1994).

Os mercados reagiram na segunda-feira, 13, com fortes movimentos nos títulos de renda fixa que refletem a mudança de cenário e até antecipam cortes de juros antes do esperado. As taxas dos títulos do governo de dois anos, por exemplo, caíram agora mais do que em 40 anos. Curiosamente, isso revaloriza os títulos e reduz as perdas latentes nas carteiras dos bancos.

Voltando à crise financeira anterior, o aumento das taxas pelo Banco Central Europeu em julho de 2008 ainda é lembrado como o maior erro do mandato de Jean-Claude Trichet. Agora, não está claro até que ponto uma hipotética quebra no aperto da política monetária se espalharia também para a Europa.

PROFÉTICA A senadora Elizabeth Warren (D) previu em 2018, durante o governo Trump, que a desregulação acabaria resultando em desastre

Tanto o boom das criptomoedas quanto do capital de risco, especialmente no setor de tecnologia, foram alimentados pelo dinheiro ultrabarato disponível desde a crise financeira anterior. Agora, esses mesmos setores são vítimas do aumento das taxas.

A queda do SVB também abriu o debate sobre os aparentes erros de supervisão que permitiram que a situação se deteriorasse até a irredutibilidade. O FED anunciou na segunda-feira uma revisão da supervisão e regulação do Silicon Valley Bank, face à sua falência, cujo resultado será publicado antes de 1º de maio. “Os desenvolvimentos em torno do Silicon Valley Bank exigem uma revisão completa, transparente e rápida do Federal Reserve”, disse seu presidente, Jerome H. Powell, em um comunicado.

“Precisamos ser humildes e realizar uma revisão cuidadosa e completa de como supervisionamos e regulamos esta empresa e o que precisamos aprender com essa experiência”, acrescentou o vice-presidente de supervisão Michael S. Barr.

O próprio Biden se referiu a possíveis deficiências regulatórias na intervenção, na qual destacou que todos os clientes do SVB e do Signature Bank podem ficar tranquilos porque seus depósitos estão protegidos. “Devemos obter uma explicação completa do que aconteceu e responsabilizar os responsáveis”, disse.

Biden introduziu a queda dos dois bancos no debate político ao garantir que algumas exigências rígidas que haviam sido impostas às entidades durante a presidência de Obama fossem abolidas na era Trump. O democrata destacou que o resgate não custará dinheiro aos contribuintes, que os gerentes serão demitidos, que os acionistas e detentores de títulos perderão seu dinheiro e que ele pedirá que a regulamentação financeira seja mais rígida.

No conselho do Federal Reserve de São Francisco, encarregado de supervisionar o Silicon Valley Bank, estava o ex-CEO da entidade. No conselho do falido Signature Bank estava Barney Frank, que deu seu nome à restritiva lei Dodd-Frank de 2010. O congressista posteriormente apoiou o relaxamento dos requisitos regulatórios. Uma mudança legal aprovada em 2018 liberou o Signature Bank de uma supervisão mais rígida. Frank ainda está listado no site do banco como diretor. Claro, o banco não existe mais como tal.

Curiosamente, em 2018, a senadora democrata Elizabeth Warren alertou para os riscos de remover regras mais duras para o sistema financeiro, como fez Donald Trump. “Vou fazer uma previsão. Esse projeto de lei vai passar. E se os bancos conseguirem o que querem, nos próximos 10 anos haverá outra crise financeira. É claro que, quando o crash chegar, os grandes bancos levantarão as mãos e dirão que não é culpa deles, ninguém poderia ter previsto isso. E então eles vão correr para o Congresso e implorar por dinheiro de resgate”, disse no plenário do Senado. “E, vamos ser francos, eles provavelmente vão conseguir. Mas, assim como em 2008, não haverá resgate para as famílias trabalhadoras. Empregos serão perdidos. Vidas serão destruídas. O povo americano, não os bancos, mais uma vez arcará com o fardo”. •

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