Surgem evidências de que o poeta foi assassinado no Chile. Cientistas detectam nos restos mortais uma bactéria tóxica após investigação de uma década que reforça as suspeitas de que o Nobel de Literatura foi vítima de uma conspiração política

Um dos maiores poetas do século 20, Pablo Neruda morreu em 1973. A causa oficial foi o câncer, mas  há muito se suspeita que o o mais famoso poeta do Chile teria sido assassinado. E, agora, evidências parecem reforçar tal teoria. Menos de duas semanas antes de sua morte, o golpe militar derrubou o governo de Salvador Allende. Neruda era um dos aliados mais proeminentes do governo e estava a poucas horas de fugir para o México. Então, em 2011, seu motorista fez uma alegação bombástica: Neruda foi injetado no estômago pouco antes de sua morte.

Na última quarta-feira, 15, após investigação de uma década, uma equipe de especialistas forenses internacionais entregou a um juiz chileno seu relatório final sobre a análise dos restos mortais exumados de Neruda. Era um momento que os chilenos esperavam há muito tempo. Os cientistas encontraram no corpo de Neruda um tipo de bactéria potencialmente tóxica que não ocorreria naturalmente ali, e confirmaram que estava em seu sistema quando ele morreu. 

Apesar disso, a equipe de especialistas forenses não conseguiu distinguir se era uma cepa tóxica e tampouco pode concluir que o poeta foi envenenado com a bactéria. Ou se, em vez disso, ingeriu alimento contaminado. Ainda assim, os cientistas admitiram que outras evidências circunstanciais apoiam a teoria do assassinato, incluindo que em 1981 a ditadura militar envenenou prisioneiros políticos com bactérias possivelmente semelhantes à cepa encontrada em Neruda. 

Em vez de fornecer clareza, o relatório altamente antecipado mostrou que um mistério de assassinato que paira sobre o Chile nos últimos 50 anos pode nunca ser resolvido. “Se ele tivesse uma cepa tóxica, como ela teria chegado lá?”, questionou Charles Brenner, um investigador forense da Califórnia que ajudou a completar o relatório. “Isso é mais uma questão de imaginação e não de ciência”.

Em 2017, cientistas anunciaram que encontraram vestígios da bactéria no dente de Neruda, mas não tinham certeza se ela havia penetrado em seu corpo após o enterro, o que poderia ter ocorrido. Agora, a nova descoberta de que a bactéria estava dentro de Neruda quando ele morreu provavelmente alimentará a profunda suspeita entre muitos chilenos de que a morte da figura cultural mais proeminente do país foi apenas mais uma atrocidade da ditadura militar do Chile.

A ditadura, que governou de 1973 a 1990 sob o punho de ferro do general Augusto Pinochet, levou centenas de milhares de chilenos ao exílio, torturou dezenas de milhares e deixou mais de 3.000 mortos. Paola Plaza, a juíza chilena que supervisiona a investigação da morte de Neruda, recebeu o relatório na quarta-feira e disse que o consideraria uma evidência importante no inquérito sobre se Neruda foi envenenado. Ela pode apresentar acusações de homicídio se achar que tem provas suficientes.

Para alguns dos parentes de Neruda, que há muito acreditam que o poeta foi assassinado, o relatório foi uma prova de que ele foi vítima do regime de Pinochet. “Já encontramos a arma do crime. Mas quem o matou? Essa é a segunda etapa”, disse Rodolfo Reyes, sobrinho de Neruda, advogado e autor do caso. “Mas pelo menos ficou registrado na história que Neruda não morreu de tristeza ou câncer”.

Conhecido pelos seus poemas de amor, Neruda é amplamente considerado um dos maiores poetas do século 20, tendo sido laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1971. Durante sua vida, esteve ativamente envolvido na política, inclusive como ex-senador do Partido Comunista e embaixador do Chile na França. Neruda estava em Paris quando fez o primeiro tratamento para câncer de próstata, retornando ao Chile em 1972.

Um ano depois, os militares tomaram o poder. As tropas saquearam e destruíram a casa de Neruda em Santiago, Chile, e invadiram duas vezes sua casa em Viña Del Mar, cidade costeira a 70 milhas a oeste de Santiaga, onde vivia com sua terceira esposa. Em meio ao tumulto dos dias que antecederam a derrubada do governo socialista, o México ofereceu asilo a Neruda. Mas dias antes de sua viagem, ele foi internado em uma clínica médica em Santiago, onde morreu aos 69 anos.

Embora houvesse algumas suspeitas de crime, a ideia de que ele morreu de causas naturais foi amplamente aceita em todo o Chile. Na década de 1980, a Fundação Pablo Neruda, uma organização sem fins lucrativos que administra as antigas casas do poeta , argumentou que não havia “nenhuma evidência para apoiar que a causa da morte fosse outra coisa senão câncer”.

Mas em 2011 veio uma nova denúncia. O ex-motorista de Neruda, Manuel Araya, disse a uma revista mexicana que Neruda lhe disse em seu leito de morte que os médicos o injetaram no estômago com uma substância desconhecida que o fez “queimar por dentro”. Na época, poucos parentes e amigos de Neruda acreditaram na versão de Araya, nem a Fundação Pablo Neruda.

Não ficou claro por que o Araya se manteve em silêncio por 40 anos. Ele disse que tentou contar ao Partido Comunista do Chile décadas antes, mas que ninguém quis ouvir. Mas depois de sua alegação pública, o partido entrou com uma ação para investigar a morte. Em abril de 2013, o corpo de Neruda foi exumado por ordem de um juiz. 

Especialistas forenses do Chile, Espanha e Estados Unidos analisaram os restos mortais e publicaram um relatório sete meses depois, afirmando que não havia “nenhuma evidência forense” apontando para uma causa de morte que não fosse o câncer. Os examinadores encontraram lesões metastáticas no esqueleto correspondentes ao câncer de próstata e vestígios de medicamentos para tratá-lo.

No entanto, os laboratórios forenses da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, e da Universidade McMaster, no Canadá, continuaram a examinar os restos mortais de Neruda, incluindo o DNA. Em 2017, eles disseram que uma causa oficial de morte, caquexia ou atrofia do corpo causada por câncer, estava incorreta.

“Não havia indicação de caquexia. Ele era um homem obeso no momento da morte”, disse na época o Dr. Niels Morling, um cientista dinamarquês que ajudou a liderar a análise. “Todas as outras circunstâncias em sua última fase de vida apontavam para algum tipo de infecção”.

Os pesquisadores também encontraram em um dos molares de Neruda vestígios da bactéria clostridium botulinum. Algumas cepas dessa bactéria causam botulismo, que pode paralisar e matar pessoas, e estão entre as toxinas mais mortais do mundo, às vezes usadas em armas biológicas. •

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