Novo romance de B.Kucinski remonta histórias de pessoas que foram assassinadas pelo Estado até os tempos coloniais. Em “O Congresso dos Desaparecidos”, o escritor parte de uma situação absurda para resgatar e ampliar a memória dos que morreram na ditadura

O novo livro de B.Kucinski, “O Congresso dos Desaparecidos”, se inscreve na dificílima categoria da ficção híbrida. Para o crítico literário Márcio Seligmann-Silva, trata-se de um “romance-manifesto”. Sem discordar completamente de Seligmann-Silva, talvez fosse interessante acrescentar mais algumas definições: ao lado do potente libelo a favor da memória e da reparação histórica dos desaparecidos que emerge da leitura, Kucinski experimenta uma espécie de romance-ensaio com fortes tintas paradidáticas.

E em nada isso diminui a importância da obra, uma vez que as questões ali discutidas pelos dois desaparecidos que iniciam o diálogo nada tem de triviais. A cena inicial é puro nonsense: dois amigos se reencontram por acaso na praça da República, no centro de São Paulo. Só que estão mortos e fazem parte da lista dos desaparecidos do período da ditadura militar. No exato momento que o leitor supõe que o narrador vai enveredar pela nostalgia dos tempos idos (e sempre mais gentis), o escritor lhe dá uma rasteira: em vez de sentimentalismo, vamos de investigação histórica e debate político.

Os dois ex-companheiros, então, inventam de organizar um congresso que reúna os 434 mortos e desaparecidos no período da guerrilha urbana e rural para que contem suas histórias de vida, de luta e, sobretudo, de suas mortes violentas e que foram relegadas ao esquecimento. No processo de organização, questões práticas que cercam esse simpósio de fantasmas se desdobrarão em dilemas de toda a espécie; dos éticos-existenciais aos mais teóricos, que propõem perguntas novas: em que medida, outros personagens eliminados e silenciados da história do Brasil não deveriam compor esse colóquio?

Na construção da obra, B.Kucinski deixa entrever suas pegadas intelectuais. O autor, também jornalista e pesquisador, publicou “K. — Relato de uma Busca. São Paulo”, seu primeiro romance em 2011, aos 74 anos. De lá para cá, com uma produtividade impressionante, escreveu mais seis obras de ficção, entre romances e contos, com projeto de se dedicar ao período 1964-1985, isto é, os anos do regime militar, em especial às vítimas do período da repressão.

A escolha de Bernardo Kucinski certamente tem relação com sua história pessoal: foi preso e exilado. Teve mais sorte que a irmã, Ana Rosa Kucinski, militante da ALN morta sob tortura. Construiu uma sólida carreira como jornalista, trabalhando desde Londres para a BBC e para a Gazeta Mercantil, e, na volta ao Brasil  no período da redemocratização, em dois dos títulos mais importantes da imprensa alternativa, como “Movimento” e “Em Tempo”.

Reintegrado à Universidade de São Paulo, foi professor da Escola de Comunicações e Artes, no curso de Jornalismo. Dois de seus livros sobre história da profissão — “Jornalistas e Revolucionários” (1991) e “Jornalismo Econômico” (1996) — tornaram-se referência para qualquer estudioso da área. Quando enveredou pela ficção, Bernardo Kucinski adotou uma assinatura literária, B.Kucinski, como que para marcar o abandono do jornalismo e construir uma nova persona literária nova.

“Juntaram-se num mesmo momento o enfado e a desilusão com o jornalismo, a aposentadoria compulsória da USP e a saída do governo Lula, onde eu estava emprestado como assessor da Presidência”, comenta. “Nesse vazio comecei a escrever um folhetim satírico quase como um divertimento. Saiu com facilidade (“Mataram o Presidente”). Gostei e me pus a escrever uma novela policial ambientada na USP que também saiu com facilidade (Alice). A partir daí decidi nunca mais fazer jornalismo e me dedicar à ficção. Ruptura total”.

“K – Relato de Uma Busca” surpreendeu o mundo literário quando foi lançado pela força da narrativa e pelo tom pouco sentimental, ainda que sensível, adotado pelo escritor. Lançado em 2011, mais de 20 anos depois que os primeiros livros sobre esse período começaram a vir à luz depois da Anistia em 1979 (“O que é Isso Companheiro”, de Fernando Gabeira, “Os Carbonários”, de Alfredo Sirkis), tratava de resgate de memória, mas com trabalho ficcional de primeira. Na década em que muitos escritores muito jovens estavam se esbaldando na autoficção, brilhou a ficção de um idoso — “K” foi finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e Portugal Telecom de 2012. 

Desde “A Nova Ordem” (2019), B.Kucinski também vem experimentando com esse texto híbrido, alegórico, como que para fazer um retorno necessário aos fatos históricos e à contextualização em um panorama político diverso desde a chegada de Jair Bolsonaro ao poder em 2018. A volta do militarismo, o fascismo à brasileira do ex-presidente e seus apoiadores e a pandemia parecem ter exigido do autor instrumentos novos para dar conta do absurdo — além de fôlego para publicar nada menos que quatro livros:  ‘Júlia, nos campos conflagrados do senhor (2020), “A cicatriz e outras histórias” (2021) e “O colapso da nova ordem” (2022).

“O Congresso dos Desaparecidos” se insere nessa nova fase do escritor. Entre os personagens históricos recuperados e os desaparecidos anonimizados pela sanha sanguinária do aparato repressivo, o escritor se mostra seguro em trazer o macabro, sublinhando o desfile de horrores que vigora a cada novo extermínio desde a Colônia, ao lado do humor negro, essencial para dar conta da tragédia. Antídoto certo para o ódio tosco das redes sociais e o tratamento infame dado a esses assuntos pela extrema-direita.  •

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