Nos 30 anos do AI-5, em 1998, Boris Fausto ensinava: “É um dever das gerações mais velhas transmitir às mais novas —quando mais não fosse para valorizar a liberdade de expressão— um pouco da experiência daqueles anos de chumbo”

Nos depoimentos dos integrantes da reunião em que se promulgou o AI-5, em meio às variações pessoais, há um fio em comum: os participantes se dizem convencidos de que estão instituindo uma ditadura para salvar o país da desordem e do caos, provocados pela contrarrevolução.

É significativo assinalar o fato de que, decorridos 30 anos do episódio, nenhum dos remanescentes daquela reunião se disponha a rever esse enfoque. Eles parecem considerar não ter razões para isso e o senador Jarbas Passarinho, com sua franqueza habitual, insiste em afirmar que a escolha era entre a ditadura e o comunismo.

A análise histórica desmente a versão maniqueísta. O AI-5 não foi um remédio amargo, adotado em uma conjuntura de caos social, mas uma medida de força, na linha do estabelecimento de uma ditadura sem brechas, sustentada pela extrema direita, desde o início dos anos 1960, ou mesmo antes, por convicções ideológicas.

Foi um ato longamente premeditado, que se tornou possível após o afastamento do grupo castelista, no interior das Forças Armadas. Naquela altura, como se sabe, os defensores do aprofundamento da ditadura, nos meios militares e também civis, venceram os partidários de uma gradativa abertura que só viria a concretizar-se anos mais tarde.

Uma breve referência à conjuntura de 1968 confirma essa interpretação. É certo que as manifestações de oposição ao regime militar ganharam ímpeto naquele ano (passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro, greves de Contagem e Osasco), assim como é certo que tinham surgido as primeiras ações da guerrilha urbana.

Mas o regime autoritário concentrava o poder em suas mãos e dispunha de meios suficientes para enfrentar seus adversários, mesmo os mais radicais. 

Note-se que as manifestações da oposição tinham arrefecido, nos últimos meses de 1968. Desse modo, a recusa do Congresso em dar licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves representou apenas o pretexto utilizado pelos coronéis da “linha dura” para manipular Costa e Silva e instituir o arbítrio.

A partir do AI-5, por força de condições geradas por ele, muitos simpatizantes e militares de esquerda, sobretudo os mais jovens, convenceram-se da inviabilidade de enfrentar o regime autoritário por meios pacíficos.

Quando as portas se fecharam, cresceu a ilusória atração pela luta armada, como, aliás, a extrema direita desejava, pois os sequestros e outros atos espetaculares pareciam justificar uma repressão feroz. Em poucas palavras, antes de ser um ato reativo de defesa, o AI-5 foi um ato de profunda agressão à sociedade, com as consequências conhecidas.

Passados 30 anos da decretação do AI-5, o Brasil mudou para melhor. Virou uma página trágica de sua história e se converteu em uma democracia, com as insuficiências conhecidas.

Mas a memória permanece. E é um dever das gerações mais velhas transmitir às mais novas —quando mais não fosse para valorizar a liberdade de expressão— um pouco da experiência daqueles anos de chumbo. •

Texto publicado originalmente em 14 de dezembro de 1998, na Folha de S.Paulo

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