Getúlio se mata com um tiro no coração e adia por 10 anos a possibilidade de uma quebra da ordem democrática. Carlos Lacerda imaginava que iria depor o presidente. Não conseguiu. E o povo, indignado, toma as ruas das principais cidades brasileiras para denunciar a perseguição ao líder

Na manhã de 24 de agosto de 1954, o presidente Getúlio Vargas, de pijamas, sai do seu quarto no palácio do Catete, vai até o gabinete de trabalho e volta com um envelope. Pouco tempo depois, ouve-se um tiro. O filho, Lutero, corre para os aposentos do pai, seguido pela irmã, Alzira, e pela mãe, Darci. Encontram Getúlio caído na cama, com um revólver Colt calibre 32 perto da mão direita. Na altura do coração, um buraco da bala e uma mancha de sangue. Encostado no abajur, sobre o criado-mudo, estava o envelope contendo a carta que, datilografada na véspera por um amigo, explica o gesto — não é um lamento, mas um manifesto político. Uma carta de adeus que adiaria por dez anos o golpe de Estado, que interromperia a vida democrática e popular brasileira.

A carta-testamento não deixava dúvida sobre como o suicídio deveria ser entendido: era uma reação a uma campanha subterrânea dos grupos internacionais, aliados aos grupos nacionais, para bloquear a legislação trabalhista e o projeto desenvolvimentista. “Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida”, dizia a carta, que concluía: “Serenamente dou o meu primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar para a história”.

Naquele momento, seu maior adversário político, o ex-governador Carlos Lacerda (UDN), ferido no pé dias antes no atentado da rua Tonelero, comemorava com champanha o golpe que parecia vitorioso. Horas antes, uma reunião de oficiais de alta patente recusara a proposta de Getúlio de licenciar-se da Presidência enquanto se desenrolasse o Inquérito Policial Militar (IPM) sobre o atentado. Brigadeiros, almirantes e generais foram taxativos: só aceitariam a renúncia.

Certo de que vencera o último round na luta contra Getúlio, Lacerda vociferou numa emissora de rádio: “Aqui estou, no dia da redenção nacional […] para declarar que esse covarde, esse pusilânime, não está licenciado, está é deposto, o lugar dele é no Galeão [palco do IPM] ou no estrangeiro, e deve apodrecer na cadeia!”

Getúlio estava encurralado. Às 2 horas da manhã, numa reunião ministerial, ouvira dos ministros militares que os oficiais das três armas haviam se unido em torno do manifesto dos brigadeiros que pedia sua renúncia. Às 6 horas, dois oficiais da Aeronáutica foram ao Catete convocar Benjamim, irmão de Getúlio, para depor no Galeão.

Pouco antes do suicídio, o presidente recebera a notícia de que o comando das Forças Armadas havia se somado ao movimento pela sua renúncia imediata. Getúlio cumpriu então o que havia prometido ao país dias antes. Eleito pelo povo, só sairia morto do palácio do Catete. Por volta das 8 horas da manhã, suicidou-se com um tiro no peito.

A notícia do suicídio de Getúlio, veiculada pouco depois pelas rádios, chocou o país. A população, revoltada, saiu às ruas para expressar sua indignação e homenagear o presidente morto. No Rio de Janeiro, capital da República, uma multidão amargurada, revoltada e colérica passou a percorrer as ruas, armada com paus, pedras e fúria.

Arrancou dos postes propaganda da oposição, quebrou as vidraças da Standart Oil, apedrejou a fachada da embaixada dos Estados Unidos e os prédios onde funcionavam os jornais “O Globo” e “Tribuna da Imprensa”. Para arrematar, incendiou os caminhões que distribuíam esses jornais. Só a “Ultima Hora”, que era favorável ao governo Vargas, pôde circular naquele dia.

Horas depois, em frente ao palácio do Catete, 1 milhão de pessoas tentava ver o corpo do presidente. Muitos choravam compulsivamente, outros desmaiavam, e havia aqueles que, ao entrar na sala onde acontecia o velório, se agarravam ao caixão.

Às 8h30 da manhã do dia 25, a multidão acompanhou o corpo de Getúlio até o aeroporto Santos Dumont, em um gigantesco cortejo que se desenrolava pela praia do Flamengo, do Russel até a avenida Beira-Mar. Quando o avião da Cruzeiro do Sul desapareceu no céu rumo a São Borja, aconteceu o inevitável: as pessoas perceberam que estavam em frente ao quartel da 3ª Zona Aérea.

O que era dor virou cólera, e a multidão avançou contra a guarnição da força militar que era escancaradamente oposição ao governo Vargas. Os soldados da Aeronáutica, aterrorizados, dispararam contra a população civil desarmada durante 15 minutos. No tumulto, mulheres e crianças foram pisoteadas, uma pessoa morreu e muita gente saiu ferida.

A comoção nacional transformou inteiramente a situação política. Os golpistas tiveram de recuar às pressas. As tropas voltaram aos quartéis, e os líderes da oposição, inclusive Lacerda, preferiram se esconder da fúria popular. Getúlio, o “pai dos pobres”, havia partido. O povo estava de luto, mas vigilante. Nas ruas, deixava claro que não aceitaria ver os inimigos do presidente, que o haviam levado à morte, dando novamente as cartas no Brasil.

Em todo o país, populares ocuparam ruas e praças de muitas cidades e atacaram sedes de partidos de oposição — principalmente da UDN —, jornais alinhados ao udenismo e quartéis. E não se esqueceram do maior inimigo do líder morto: Carlos Lacerda. Caçado nas ruas do Rio, ele se refugiou na embaixada dos Estados Unidos. Quando a embaixada foi atacada, ele fugiu num helicóptero militar para o cruzador Barroso, ancorado na baía da Guanabara. “Mataram Getúlio! Mataram Getúlio!”, gritavam os populares nas inúmeras manifestações que se seguiram à notícia do suicídio do presidente.

No Rio, São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte e capitais do Nordeste, a multidão mostrava a cara e manifestava profunda revolta com o desfecho trágico da dura campanha oposicionista contra Vargas. O Exército interviria em várias cidades.

Em Porto Alegre, desde as primeiras notícias sobre o suicídio do presidente, populares se concentraram no Comitê Central Pró-Candidatura Leonel Brizola, da ala esquerda do PTB, em busca de informações. De lá, saíram às ruas carregando fotos de Getúlio e bandeiras nacionais tarjadas de preto, em sinal de luto.

Os primeiros alvos da multidão foram as sedes dos principais partidos de oposição: a UDN, a Frente Democrática, a Frente Popular, o Partido Socialista, o Partido Social Progressista (PSP) e o Partido Republicano (PR). Os prédios foram depredados e incendiados.

Furiosa, a multidão também investiria contra “O Estado do Rio Grande”, jornal ligado ao Partido Libertador (PL), as oficinas do “Diario de Notícias”, dos Diários Associados, e os prédios onde ficavam as rádios Farroupilha e Difusora.

O governador do Rio Grande do Sul, general Ernesto Dorneles, primo de Getúlio, só ao final da tarde solicitaria auxílio do Exército para conter os manifestantes. Os distúrbios na capital gaúcha terminaram com o saldo de dois mortos e dezenas de feridos.

Em São Paulo, ao meio dia, os sindicatos já estavam lotados de trabalhadores que esperavam o início dos protestos que marcariam o dia do suicídio de Getúlio Vargas. Às 13 horas, começou a passeata, saindo dos sindicatos dos metalúrgicos e dos têxteis e dos diretórios do PTB em direção ao centro.

No caminho, líderes sindicais acalmavam os manifestantes mais exaltados e evitavam depredações, sob o argumento de que isso apenas serviria aos inimigos de Getúlio. Na sede do PTB, realizaram um comício. Na Praça da Sé, outro grupo de trabalhadores participava do comício convocado pelo PCB e pelo PTB, mas foi dispersado pela polícia.

O PCB, que na véspera engrossava o coro de ataques contra Getúlio, seria pego de surpresa pela reação popular e se somaria a ela, juntando-se aos trabalhadores que se manifestavam pela cidade. Tentou, mas não conseguiu assumir o controle do movimento: os operários estavam no comando.

Na Zona Leste, onde comunistas se misturaram à multidão para levantar palavras de ordem, quem deu a voz de comando foi uma operária, que faria de sua anágua preta um estandarte de luto e gritaria, em frente à multidão: “Mataram Getúlio! Mataram Getúlio! Morreu nosso pai!” •

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