Decreto assinado por Lula e Margareth Menezes retoma as políticas de fomento cultural e promete mais diversidade, inclusão e descentralização de investimento via editais. Massacrado por Bolsonaro, setor terá R$ 10 bilhões em 2023

Quatro anos depois da eleição de Jair Bolsonaro, que colocou a classe artística como inimiga pública do Estado, a cultura brasileira volta ao centro das atenções do governo federal. Uma cerimônia de celebração e reverência à cultura brasileira no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 23 de março, marcou o que se pode chamar de ressureição do fomento cultural no Brasil, após sufoco e arrocho no setor – um dos mais atingidos pelo abandono.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a ministra da Cultura Margareth Menezes, assim como o advogado-geral da União, Jorge Messias, assinaram decreto que traz a unificação e uniformização da execução, ainda em 2023, de recursos de várias fontes para o fomento da cultura: Lei Paulo Gustavo (R$ 3,8 bilhões), Lei Aldir Blanc (R$ 3 bilhões) e Lei Rouanet (R$ 2 bilhões).

“Estamos em um processo de remontar o ministério e começar a executar as leis. É uma política cultural aberta, que anda de mãos dadas com o povo”, declarou Margareth Menezes. O governo sinalizou que vai reestruturar outras políticas públicas culturais e os mecanismos de acesso para os produtores e realizadores das artes brasileiras. 

Levantamento do Ministério da Cultura aponta que a Lei Rouanet proporciona um retorno para a sociedade de R$ 1,60 para cada R$ 1 investido. Até 2018, o mecanismo trouxe um impacto econômico de R$ 49,8 bilhões para a economia nacional. “O novo decreto vem para descentralizar mais os recursos e sensibilizar as empresas, para que esses investimentos cheguem a todo o Brasil”, disse a ministra.

Lula anunciou que o decreto permitirá que a Lei Rouanet atue de forma mais democrática, alcançando não só os grandes centros urbanos, mas todas as regiões do Brasil. “Precisamos trabalhar para mudar o pensamento de quem acha que investimento em cultura é gasto”, disse o presidente. “A gente pode transformar a cultura em uma indústria de geração de riqueza e empregos. E financiada, sim, por empresas públicas e privadas, porque esse país não pode abrir mão de sua cultura”.

O presidente e a ministra foram ovacionados pela plateia inebriada com as novidades anunciadas. Centenas de artistas, produtores, patrocinadores, gestores, estudantes, técnicos e trabalhadores da cultura de todo o Brasil aplaudiram a retomada da política cultura. Gente que manteve o brilho no olhar e agora pode voltar a trabalhar, produzir e desenvolver projetos culturais.

A reestruturação da política cultural era uma promessa de campanha de Lula. Ainda em dezembro, durante o período de transição, constatou-se que a destruição no setor era um abismo, o que gerou não somente um retrocesso aos artistas e ao povo brasileiro, como também uma reação em cadeia de perda de emprego e renda para milhares de trabalhadores.

OUTRO TEMPO Lula cumprimenta Margareth Menezes no Theatro Municipal do Rio, após assinatura de decreto com regras para a cultura

A própria recriação do Ministério da Cultura (MinC), outro compromisso de campanha, já indicava que o novo governo retomaria o movimento das administrações petistas de investir na cultura como um componente importante de resgate econômico e social do povo.

Além da retomada dos investimentos pela Lei Rouanet, os principais avanços no fomento direto, que trata as leis Paulo Gustavo, Aldir Blanc e Cultura Viva, são as definições e modelos dos mecanismos. Tais iniciativas promoverão melhor gestão dos recursos, assegurando a manutenção de espaços culturais, a concessão de bolsas e premiação, a implementação de instrumentos de financiamento reembolsável e a realização de editais de apoio à produção cultural.

Logo após o Golpe de 2016, que afastou Dilma Rousseff da Presidência da República, por um impeachment sem crime de responsabilidade, o Ministério da Cultura chegou a ser fundido ao da Educação. Mas protestos fizeram com que a pasta fosse recriada por Michel Temer.

Em 2019, no primeiro ano da gestão Jair Bolsonaro, o MinC voltou novamente a ser extinto, reduzida a uma Secretaria, vinculada inicialmente ao Ministério da Cidadania, mas transferida para o Ministério do Turismo em seguida. A pasta serviu de palco para discursos extremistas, fomento de projetos que divulgavam propaganda armamentista e religiosa, além de abrigar nomes que insultavam a cultura nacional, bradando lugar-comum que arrasta incautos, como a campanha “anti mamata da Lei Rouanet”. O desmonte promovido por Bolsonaro teve protagonistas desastrosos. Ao todo seis apoiadores do presidente passaram pela pasta para cumprir a agenda anticultural de Bolsonaro.

A primeira polêmica foi com o titular Roberto Alvim, demitido após ter um vídeo publicado nas redes sociais com referências a um discurso nazista de Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda de Adolf Hitler. Destacou-se, ainda, a atriz Regina Duarte, que tomou posse dizendo que retomaria investimentos na cultura popular e ridicularizou-se ao falar do “pum do palhaço”.

Ela deixou a pasta sem apresentar sequer qualquer proposta para o setor – depois de brigar ao vivo na CNN por se recusar a falar sobre a ditadura militar, que perseguiu a Cultura, e era exaltada pelo então presidente Jair Bolsonaro. Ela se afastou do governp alegando saudade da família.

Da secretaria, pulou para a Cinemateca em São Paulo e nunca mais foi vista, apesar de ter seguido ferrenha propagadoras de mentiras e ataques a colegas artistas. Por último, Mário Frias, o ator de “Malhação”, que se projetou ao lado do bolsonarismo, longe das artes, assumiu o posto de junho de 2020 a março de 2022.

De acordo com o governo de transição, o cenário encontrado pedia a reestruturação da pasta e uma ressurreição da política. A cultura estava em uma UTI, respirando por aparelhos. Desde 2016, houve uma perda de 85% no orçamento da administração direta da cultura e de 38% no da administração indireta (incentivo fiscal).

APOIO Regina Duarte deu apoio de primeira hora ao então candidato da ultradireita radical. Deixou o governo, sob críticas da classe artística nacional

O Fundo Nacional de Cultura (FNC), principal mecanismo de financiamento governamental do setor, teve seu orçamento reduzido em 91% nesse período. Segundo cálculos realizados ainda na transição, somente o governo Bolsonaro representa um retrocesso de 20 anos na execução orçamentária, com cancelamento de editais, extinção de políticas, atos normativos autoritários e perseguição a servidores.

Além da retomada de recursos, o decreto sancionado pelo governo Lula vai simplificar processos para facilitar o acesso a realizadores de pequenos eventos culturais e melhorar a fiscalização a grandes projetos. Entre as mudanças trazidas está a possibilidade de o MinC atuar junto aos patrocinadores da Rouanet por meio de editais públicos, gerindo o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) de forma que as ações sejam realizadas em todo o país e os recursos sejam distribuídos entre as regiões.

As medidas de democratização de acesso para a sociedade, as ações proativas de descentralização e regionalização, ampliarão os investimentos nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste e assegurando projetos de maior impacto social. Principal ferramenta de fomento à cultura no Brasil, a Lei Rouanet injetará na economia criativa cerca de R$ 2 bilhões por ano e é responsável pelo patrocínio anual de cerca de 3.500 ações culturais.

ATRASO O então secretário de Cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, fez pronunciamento em que copiou Joseph Goebbels, ministro de Adolf Hitler

A Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC) retorna requalificada e com protagonismo. Desfigurada pelo governo Bolsonaro, ela será responsável pela assessoria na gestão do programa e terá a participação de membros da sociedade de todas as regiões brasileiras, incluindo representante dos povos indígenas, da cultura popular, de especialistas em acessibilidades e combate a discriminações e preconceitos.

Está de volta também a possibilidade de execução de planos anuais ou plurianuais apresentados por instituições culturais, museus, orquestras, grupos de teatro, corpos artísticos estáveis e eventos continuados e estruturantes, como festivais, mostras, seminários, bienais, feiras, entre outros, permitindo melhor planejamento desses agentes culturais.

Para estimular uma expressão cultural plural e diversa, a nova regulamentação estimulará a realização de ações afirmativas para mulheres, pessoas negras, povos indígenas, comunidades tradicionais, de terreiro e quilombolas. Também estarão contempladas populações nômades e povos ciganos, pessoas do segmento LGBTI+, s com deficiência e de outros grupos, seja por editais e linhas exclusivas, ou por meio de cotas e definição de bônus de pontuação nos editais. Importante demanda de pequenos produtores também foi ouvida. Houve definição de novos critérios de avaliação de resultados por tamanho de projeto, simplificando os processos e mantendo a segurança jurídica.

Após a publicação do decreto, o Ministério da Cultura tem até o dia 24 de abril para editar a instrução normativa necessária para o cumprimento das novas regras, trazendo os procedimentos detalhados para apresentação, recebimento, análise, homologação, execução, acompanhamento e avaliação de resultados dos projetos financiados.

No entanto, novos ares já circulam entre os produtores e artistas do país, todos já fazendo planos e retomando projetos parados há anos, em diversos setores: teatro, música, audiovisual, literatura etc. O MinC anunciou que lançará ainda este mês o Prêmio de Literatura Carolina Maria de Jesus, voltado exclusivamente a mulheres ficcionistas, com a premiação de 40 obras escritas por mulheres, com o valor total de R$ 2 milhões.  •

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