Músico, compositor e ator, o artista japonês morto aos 71 anos fez a ponte entre a música eletrônica experimental, o ocidente e o oriente e a tradição de seu país e as paradas pop

Quem viu o filme, em qualquer formato, não esquece da cena. Estamos num campo de prisioneiros no Japão, durante a Segunda Guerra. Um grupo de soldados e oficiais britânicos está preso, em condições péssimas. O oficial inglês encarregado de negociar com o comandante japonês será punido por insubordinação diante de todos os prisioneiros, sob um sol escaldante. Ajoelhado diante do capitão Hosoi, se prepara para receber o golpe de espada na nuca. O major Celliers, carismático e durão, se aproxima de Hosoi, que pensa ver um movimento para liberar o oficial condenado, mas isso resulta num beijo entre os dois militares inimigos.

A reviravolta da história de “Furyo – Em Nome da Honra” (Merry Christmas, Mr. Lawrence) seria, por si só, emblemática para o ano de 1983, mas com Ryuichi Sakamoto e David Bowie escalados para Hosoi e Celliers, a cena atingiu o status de uma pérola pop. Sakamoto e Bowie já eram artistas da música pop internacional — o músico oriental à frente da banda Yellow Magic Orchestra e o inglês na esteira de “Let’s Dance” – quando estrelaram o filme de Nagisa Oshima, carregado nas tintas da violência da guerra, mas com uma carga de tensão sexual enorme — e reprimida.

Sakamoto, ator, compositor, produtor e músico, morreu em 28 de março, aos 71 anos, em Tóquio. Era um artista bem dentro de seu tempo. Formou-se na Universidade Nacional de Tóquio em artes e música. No final dos anos 1970, passou a integrar a Yellow Magic Orchestra, projeto experimental de música eletrônica, onde tocava sintetizadores e cantava.

“Firecracker”, faixa de 1979, foi ao topo das paradas britânicas e tornou-se uma das responsáveis pela verdadeira “mania nipônica” que permeou a cultura ocidental entre os fins da década de 1970 e início da de 1980. Ainda mais depois dos filmes de Nagisa Oshima, como “O Império dos Sentidos” (1976), premiado em Cannes.

Em paralelo a YMO, Sakamoto eria produtor e compositor nos dois primeiros discos do Japan, a mais influente banda do pós-punk japonês. E David Sylvian, vocalista da banda, em troca, faria a voz melancólica da canção “Forbidden Colors”, da trilha sonora de  “Furyo”, também assinada por Sakamoto.

Ao longo de sua trajetória, ele colaboraria também com artistas. distintos, como Iggy Pop, Caetano Veloso, Towa Tei e DJ Dmitry (grupo Deee-Lite) e  Thomas Dolby, entre outros.

Compositor de formação erudita, assinou várias trilhas de filmes que marcaram época, como “O Último Imperador” (1987), da fase épica-histórica do cineasta italiano Bernardo Bertolucci. Por essa trilha, ele e David Byrne ganharam um Oscar.  Trabalhou em filmes de Pedro Almodóvar (“De Salto Alto”, 1992) e Brian de Palma (Snake Eyes, 1998, e  Femme Fatale, 2002).

Em carreira solo, lançou mais de duas dezenas de discos, sempre na fronteira do pop e, em muitos casos, ressignificando as tradições da música japonesa. Entre os destaques, “Coda”, de 1983, com as versões de piano da trilha de “Furyo”; “Illustrated Musical Encyclopedia” (1985); e a recuperação da parceria com David Sylvian, “World Citizen” (2003); e “async”, também tema do documentário  “Coda”, de 2017, dirigido por Stephen Nomura Schible e premiado no Festival de Veneza.

“Você tem de abrir seus ouvidos o tempo todo porque alguma coisa pode acontecer inesperadamente. Qualquer coisa pode ser música”, dizia Sakamoto sobre seu processo criativo, marcado pelo improviso inicial e o rigor cuidadoso que caracterizava a sua linda música. •

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