Em disco, o sambista carioca, ex-integrante do Grupo Revelação, interpreta dez canções da carreira do  compositor baiano e devolve o samba a seu lugar de destaque na MPB

Bia Abramo

Que tal um samba, ou melhor, um sambista? O sambista em questão é Xande de Pilares, vocalista e instrumentista que fez parte do Grupo Revelação, surgido na geração anos 1990 do pagode carioca. Desde 2014, quando deixou o grupo, Xande constrói carreira solo, que colocou em relevo a potência de sua voz grave e seu bom gosto como arranjador de instrumentos de cordas. No novo disco, gravado em plena pandemia do coronavírus, Xande deixou de lado o lado compositor para gravar dez canções do repertório de Caetano Veloso.

À primeira vista, a escolha de repertório parece um tanto óbvia para um compositor com um repertório tão vasto e diverso como o bardo de Santo Amaro. Estão lá “Alegria, Alegria” (canção-emblema do Tropicalismo), “Muito Romântico” (da fase Caetano fazedor de hits radiofônicos), “Tigresa” (da época do Caetano popstar do Leblon), músicas que, provavelmente, integram oito entre dez catálogos de karaokê. Mas é só começar a ouvir  que essa primeira impressão se desfaz, uma vez que as versões de Xande passeiam por referências pessoalíssimas do  artista.

Por exemplo, “Muito Romântico”, balada que já se destacava em  “Muito (Dentro da Estrela Azulada)”, álbum de 1978 de Caetano, ficou conhecidíssima pela voz de nosso maior crooner do gênero, Roberto Carlos, o que intensificou, é claro, sua circulação. Em entrevistas à época da gravação do disco, Xande contou que escutou no rádio a versão de Roberto antes de ouvi-la no disco de Caetano.

Aqui, a homenagem ao cantar suave de Roberto é evidente e combina admiravelmente com o cavaquinho de Xande ao instrumental pagodeiro que entra na sequência. Na senda das homenagens, por assim dizer, tanto em “Luz do Sol” como em “O Amor”, ambas gravadas por Gal Costa, ouvem-se os ecos das interpretações que receberam de uma de nossas maiores cantoras — o que faz pensar que uma parceria Gal e Xande, caso ainda fosse possível, poderia repetir os duetos de voz aguda e grave que Gal fez tantas vezes com Bethânia.

“O Amor”, versão musical de Caetano e Nei Santos Lopes a partir de poema de Vladimir Maiakovski, inclusive é dos pontos altos de emoção disco, com arranjo percussivo e rítmico quase mínimo para que a voz de Xande brilhe nos versos-manifesto do poeta russo (1893-1930): “Ressuscita-me/ para que ninguém mais/ Tenha de sacrificar-se/Por uma casa/Um buraco”.

Em outros destaques, vale a colagem e a experiência de Xande também como compositor de escola de samba e autor de sambas-enredo vitoriosos do Salgueiro (2014), da Unidos do Padre Miguel (2018) e da Vai-Vai (2022). “Trilhos Urbanos” recebe a citação incidental de “Retirantes”, de Dorival Caymmi, apenas o coro “lerê, lerê” que, já na letra de Caymmi refere-se à diáspora interna dos negros africanos trazidos ao Brasil durante o regime escravocrata  (“Vida de negro é difícil, é difícil como o quê/ Eu quero morrer de noite, na tocaia me matar”), o que subverte a letra algo nostálgica de Caetano sobre marcos históricos de Santo Amaro, imprimindo sentidos mais potentes.

Diversamente, “Qualquer Coisa” com a participação do bandolinista Hamilton de Holanda, ganha texturas mais delicadas e sutis, certamente também pelo fraseado do instrumentista. Destaque também para o resgate do bolero “Diamante Verdadeiro”,umas das várias composições de Caetano para a irmã Maria Bethânia, em clima de deboche.

E se a MPB tantas e tantas vezes bebeu na fonte inesgotável do samba, nada mais justo que o sambista-pagodeiro, o sambista de enredo e de avenida se apropriar da MPB e transformar composições como “Lua de São Jorge” e “Gente” em sambas intensos, vibrantes com bateria, cama percussiva, coro de pastoras e até o toque da alvorada que remetem à avenida, ao pulsar coletivo de alegria do samba nas ruas, nas esquinas, nos botecos.

Mais do que simplesmente cantar Caetano, Xande de Pilares reinventa um Caetano — e, surpreendentemente, sobre os aplausos do próprio compositor, sempre tão cioso de sua imagem e do controle de sua obra e que acaba de fazer 81 anos. Não é, de maneira nenhuma, um feito ordinário. •

`