Tim Maia, o artista que morreu há 25 anos, viveu 55 anos de suíngue, soul e funk e deu novos sentidos à música negra no Brasil

Tim Maia morreu num 15 de março. No dia em que completaram-se 25 anos da morte do artista em 2023, o ECAD (órgão arrecadador de direitos autorais de música) fez um levantamento das 10 músicas que persistem na memória de brasileiras e brasileiros. O ranking pode servir de guia para compreender a importância do músico nos corações, mentes e quadris da pátria mãe gentil.

Negro nascido na Zona Norte do Rio de Janeiro, Tim era dono de um talento musical impressionante. Aos trancos e barrancos, dado um ambiente que só compreendia a contribuição dos negros ao samba — e olhe lá —, ele construiu uma carreira complexa & linda, trilhando praticamente sozinho o caminho do soul e do funk.

Embora fosse multi-instrumentista, arranjador e produtor, como James Brown, ele usava a voz, que vinha grave e suave, como seu principal instrumento. E, na direção oposta de seu contraparte norte-americano chamado de “o padrinho do soul”, a Tim Maia foi reservado o epíteto mais familiar e carinhoso de “o pai do soul à brasileira”.

O tijucano Sebastião Rodrigues Maia formou seu primeiro grupo, The Sputniks, na onda do rock anos 1950 brasileiro, que acabou por tomar o nome de Jovem Guarda. Enquanto a juventude da orla fazia a Bossa Nova, os suburbanos, colados no rádio e nas poucas TVs, estavam ligados no que vinha da gringa; baladas românticas, pegada roqueira, barulho e confusão juvenil comportada.

The Sputniks, grupo formado em 1957 no qual o igualmente ultrajovem Roberto Carlos cantou, chegou a apresentar-se em programa musical na hoje extinta TV Tupi. Na virada para a década de 1960, o então adolescente Tião foi para os Estados Unidos, onde estudou inglês e conviveu com o início da explosão do soul estadunidense.

O soul americano seria responsável pelo primeiro grande fenômeno de crossover na cultura de massa norte-americana, o termo para o qual não há equivalente em português designa a capacidade de manifestações culturais de migrarem entre dois nichos de público. Nos EUA, nos anos 1950, por conta das leis de segregação racial, apesar da pulsação intensa da música negra desde pelo menos os anos 1930, os públicos não se misturavam — ou, ao menos, não com a intensidade que o soul faria nos anos 1960. Além de emergir num ambiente musical novo e diverso, Tim sofreu as agruras de ser negro, imigrante e, ao menos no início dos quatro anos que passou nos EUA, pelas dificuldades com a língua.

Na volta ao Brasil, Tim volta a se associar com a porção mais permeável às influências estrangeiras: compôs para a dupla Roberto & Erasmo Carlos, gravou com Os Mutantes em São Paulo. Apesar da efervescência cultural em, em praticamente todas as áreas da cultura, duas características de Tim, a inescapável negritude num país que ainda nem sequer se entendia como racista e a bagagem do soul e do funk deixavam ele numa situação complexa no cenário musical.

A Bossa Nova iria, de certa forma, se dissolver nas águas do Tropicalismo, a Jovem Guarda estava produzindo estrelas milionárias e efêmeras, em alguns casos. Para piorar, o Brasil sofreu um Golpe Militar em 1964, que recrudesceria em 1968.

Tim, no entanto, foi abrindo caminho como pode, e lançou compactos aqui e ali até chegar ao primeiro LP, em 1970, chamado apenas Tim Maia. Nessa década, foram oito discos em apenas seis anos, todos chamados “Tim Maia” e variações. A variação vale um parêntese: entre 1974 e 1975, Tim aderiu à uma doutrina chamada Cultura Racional.

Compôs, produziu e gravou dois álbuns baseados nos ensinamentos do guru. Diante da recusa da gravadora em lançá-lo, Tim fez produção independente (comprou as fitas e fundou um selo) e os discos, brilhantes, conseguiram circular por algum tempo. Quando Tim deixou a seita, ele mesmo mandou recolher. Até os anos 1990, na transição do vinil para o CD, os dois álbuns eram daqueles muito comentados, mas pouco ouvidos.

Essa fase de intensa criatividade e cada vez maior apuro técnico dos 1970, e que legou canções daquelas imprescindíveis e álbuns inteiros quase que sem reparos, foi conquistando admiradores por um Brasil que, à época, não se via muito. Tim tocava nos bailes negros das grandes cidades brasileiras, na domingueiras de clubes de bairros menos ricos e fascinava pela musicalidade tão brasileira e tão parecida com o que se ouvia em inglês. Numa época de nacionalismo quase unânime na cultura brasileira, não era pouco.

Quem teve o privilégio de ver Tim Maia ao vivo, podia esperar duas coisas: atrasos injustificáveis e irritantes, mas também poderíamos ver shows que não acabavam naquela 1h, 1h30 protocolar. Rigorosíssimo com a qualidade de som, as reclamações com aquela voz potente que o pai do soul à brasileira fazia em relação ao “retorno” viraram bordão & piada.

Tim, na década seguinte, tinha alcançado alguma respeitabilidade entre pares e enfileiraria hit atrás de hit: “Do Leme ao Pontal”, “Vale Tudo” (com Sandra de Sá), “Me Dê Motivo”, “Um Dia de Domingo” (com Gal Costa), e “Descobridor do Sete Mares”.

Cantando baladas românticas, como “Me Dê Motivo” ou suingando e fazendo plateias enormes cantarem um refrão tão aleatório como “tomo guaraná, suco de caju/goiabada para sobremesa” (“Do Leme ao Pontal”), o músico alcançou um lugar de prestígio até então inaudito. A geração do rock brasileiro dos anos 1980, que tinha crescido ouvindo MPB, incluindo a MPB negra — Jorge Ben, Luiz Melodia e Tim —, também reverenciava o mestre.

Entre brigas com gravadoras e problemas de abuso de substâncias, entre as legais e as ilegais, Tim entrou numa fase mais conturbada nos anos seguintes. Fez lindos discos, como aquele em que canta Bossa Nova, menos shows, devido a problemas de saúde, mas, de certa forma, sua música passou a ser melhor compreendida e acolhida. Sua curiosidade enorme, a diversidade que imprimiu às suas chamadas influências e a química peculiar de discos e apresentações ao vivo caíam bem num momento cultural e político também de reconstrução da democracia.

Em entrevista publicada na edição brasileira da revista Playboy, Tim foi sabatinado pelo então editor especial Ruy Castro. Depois de responder a perguntas sobre João Gilberto (“é um geniozinho, mas precisa ser mais humilde”), Roberto Carlos (“inteligente, batalhador e canta mais ou menos”), ele chega uma auto-definição: “Por enquanto é um sujeito que, em vez de estar dormindo com uma Miss Brasil maravilhosa até às 9 da manhã, acaba dormindo com uma prostituta que sai correndo às 6h43 e ainda leva quinzinho. Mas isso vai mudar”. •

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