Entrevista | Paulo Artaxo – “Temos como reduzir emissões de gases pela metade até 2030”
O cientista brasileiro que integra o Painel de Mudanças Climáticas das Nações Unidas alerta que as evidências são de que o mundo caminha para 3ºC mais quente do que o esperado, o que já era grave. Ele diz que Lula pode ajudar na agenda ambiental ao mostrar que o Brasil vai fazer o dever de casa e reduzir a zero as emissões de CO2 e que deve cobrar das nações mais ricas que façam o mesmo
Eventos climáticos como a chuva que atingiu o litoral de São Paulo há duas semanas, a maior em volume já registrada na história do Brasil, e que causou uma tragédia com mais de 50 mortes e milhares de desabrigados, vão continuar a ocorrer. Este é o diagnóstico feito pelo professor e pesquisador da USP, Paulo Artaxo, integrante do painel de cientistas da ONU que investiga as mudanças climáticas, o IPCC.
O planeta está ficando 3°C mais quente. Caso medidas não sejam tomadas com urgência, o aquecimento da Terra só irá aumentar. Ele diz que são as populações mais pobres quem mais sofrerão com as consequências. Artaxo afirma que se o curso das práticas adotadas não for alterado, a região Nordeste do Brasil ficará inabitável em algumas décadas. Ele diz que o problema é urgente e necessita de soluções imediatas, que tenham como objetivo o desenvolvimento econômico sustentável, a economia verde.
Artaxo comemora o fim do governo Bolsonaro por conta das práticas antiambientais, antiindígenas e negacionistas. Ao mesmo tempo, entende que o governo Lula está apontando na direção correta, firmando compromissos para alcançar o desmatamento zero da Amazônia até 2028.
O pesquisador afirma que o Brasil tem as condições ideais para ser o pioneiro na redução da emissão de gases do efeito estufa. Por outro lado, o atual governo mostra-se disposto a trabalhar intensamente na diplomacia para convencer os maiores emissores do mundo a acelerarem ações que tenham o mesmo objetivo. Leia os principais trechos da entrevista à Focus Brasil:
Focus Brasil — Com relação à tragédia que vimos recentemente no litoral de São Paulo, pesquisadores afirmam que o evento não poderia ser considerado como consequência das mudanças climáticas. Qual é a sua opinião, há alguma dúvida nesse sentido, realmente?
Paulo Artaxo — Olha, a questão toda é a seguinte: não é possível você atribuir um particular evento às mudanças climáticas. Eventos extremos sempre ocorreram e vão continuar ocorrendo. O que está acontecendo não é essa questão. Isso não tem nada a ver com as mudanças climáticas globais. O que observamos é que o aquecimento está aumentando a ocorrência de eventos climáticos extremos no mundo inteiro. Então, estamos vendo incêndios gigantescos nos Estados Unidos e na Europa, secas intensas e ondas de calor muito grandes na Europa, nos EUA e na Ásia e inundações muito fortes. E isto é um sinal claríssimo, já previsto pelos modelos climáticos, de uma das consequências das mudanças climáticas globais. Elas estão trazendo um aumento na frequência e na intensidade de inundações, chuvas muito intensas, secas prolongadas e assim por diante.
— Recentemente, o professor Carlos Nobre afirmou que, no Brasil, houve um aumento de 50% na ocorrência de eventos extremos. O país já tem uma infraestrutura historicamente precária. É preciso imediatamente, urgentemente, que haja um preparo para o que vai ocorrer daqui para frente?
— Não é se preparar para o que vai ocorrer daqui para frente, mas, para o que já está ocorrendo. Estamos falando dos eventos climáticos e chuvas que já estão aqui e agora com a gente. Tivemos no ano passado enchentes enormes e chuvas torrenciais na Bahia, em Minas Gerais, no Rio de Janeiro. Em Paraty também houve mortes causadas por isso no ano passado. Tivemos em Petrópolis alguns anos atrás. E, agora, temos aí em São Sebastião e Barra do Sahy, no litoral de São Paulo.
Então, é evidente que o Brasil precisa melhorar a sua preparação, a sincronia entre os vários agentes nessa questão que vão desde a previsão meteorológica até os alertas aos governos municipais, estaduais e federal, até a ação da Defesa Civil. Temos que ser muito mais competentes em ajudar o mais rápido possível e com a maior antecedência possível a população vulnerável, a população de risco, para minimizar as mortes nesses eventos. O Brasil tem que se adaptar ao novo clima, que já mudou. Não é que ele vai mudar no futuro. As mudanças climáticas estão aqui com a gente hoje, no nosso presente, como uma chuva de 600 milímetros em 24 horas deixa muito evidente lá em São Sebastião.
— Qual é a importância do fim do governo Bolsonaro?
— O que tivemos foi um governo que trabalhou pela destruição dos ecossistemas brasileiros, incluindo a Amazônia, que não atuou na questão de melhorar e atentar para as vulnerabilidades da população mais pobre do país. Foi um governo essencialmente para banqueiros, industriais e sem levar em conta as necessidades da população como um todo. Felizmente, isso mudou radicalmente. O novo governo só está aqui há um mês e meio. Mas já está tomando medidas importantes, por exemplo, na área do clima, estruturando uma Secretaria Nacional de Mudanças Climáticas, transversal a todos os ministérios, que vai cuidar da questão econômica, ambiental, de diplomacia e vai por aí afora. Então, o novo governo está na direção certa de implementar políticas de combate às mudanças climáticas globais. Além de reduzir as emissões de gases de efeito estufa, que, no caso brasileiro, concentra-se em zerar o desmatamento da Amazônia até 2028 como prometido pelo atual governo.
— Quão fundamental para o clima do país e também do planeta é o combate ao desmatamento na Amazônia?
— O Brasil tem vantagens estratégicas enormes na questão das mudanças climáticas globais e teria sido fundamental que o antigo governo tivesse aproveitado essas vantagens estratégicas que temos. Com isso, ganharíamos terreno na luta contra as mudanças climáticas globais. O mais importante é a questão de que, atualmente no Brasil, cerca de 50% das nossas emissões de gases de efeito estufa se dão através do desmatamento da Amazônia e não há nenhum outro país do planeta entre as 196 nações da ONU que possa reduzir as suas emissões pela metade em pouquíssimos anos e com muitos benefícios, como manutenção da chuva no Brasil Central, a preservação da população indígena na Amazônia, a melhora da qualidade do ar na região amazônica e assim por diante. Então, o Brasil tem ‘cobenefícios’ muito fortes na redução do desmatamento da Amazônia. Esta foi a primeira medida que teve foco muito importante do novo governo. Temos até um Ministério dos Povos Indígenas que também está lutando para, junto com os ministérios do Meio Ambiente, da Ciência e Tecnologia e a nova Autoridade Nacional Climática, para que o Brasil cumpra o seu compromisso de reduzir a zero as emissões do desmatamento até 2028. Isso é possível e altamente desejável para a sociedade brasileira.
— Alcançar o desmatamento zero e fazer o trabalho de reflorestamento que foi anunciado ainda na campanha, além do incentivo ao desenvolvimento sustentável, a uma economia verde, são ações que podem trazer resultados como a diminuição desses eventos extremos? É possível traçar esse tipo de consequência?
— Em primeiro lugar, o Brasil está no caminho certo de transformar o nosso sistema energético e toda a economia em uma economia verde muito mais moderna, não predatória dos nossos recursos naturais e muito mais eficiente no uso de energia e dos recursos naturais do Brasil como um todo. Então, a gente vê declarações do presidente do BNDES [Aloizio Mercadante], de que vai colocar o banco a financiar a transição energética para uma economia verde. A gente vê uma série de ações do Ministério da Fazenda, por exemplo, também indo nessa direção. Como falei, essa é, na verdade, a única direção que pode levar o Brasil a se tornar de novo uma nação próspera, moderna, mais eficiente e sustentável.
O Brasil está comprometido com a implementação dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável e acredito que estamos na direção certa. Agora, evidentemente, não temos muito tempo a perder. A Amazônia tem pressa em estancar o processo de desmatamento, estancar o processo de destruição dos povos indígenas da região amazônica, dos quais, os ianomâmis são somente o povo que hoje está em evidência, mas certamente não é o único dos grupos indígenas em perigo na região amazônica. Precisamos integrar as ações com o Exército, defendendo no fundo a população amazônida, em vez de ficar defendendo quem estava executando atividades ilegais na região, tais como garimpo ilegal, apropriação indébita de terras públicas, realizando crimes, que foi o que mais caracterizou o modelo de desenvolvimento da região amazônica implantado no último governo.
— Essas ações podem influir na questão dos eventos extremos?
— O Brasil é responsável por uma fração relativamente pequena das emissões. O Brasil é o oitavo maior emissor de gases de efeito estufa. Os Estados Unidos, China, Rússia e Inglaterra têm emissões mais altas que o Brasil. Chegamos numa situação de emergência climática, o que faz com que seja muito importante, além de reduzirmos a zero o desmatamento da Amazônia, realizar ações diplomáticas para que os demais países do nosso planeta também reduzam a zero as suas emissões. Isso não é uma tarefa simples, não é uma tarefa trivial. Não depende só do Brasil. Nós temos que fazer a nossa lição de casa, não há a menor dúvida, mas nós também temos que pressionar países como os Estados Unidos a reduzirem drasticamente as suas emissões de gases de efeito estufa, o mais rápido possível.
Isso, sim, vai fazer com que a escalada que estamos observando agora de eventos climáticos extremos possa dar uma certa arrefecida. Entretanto, é importante mencionar que o estrago que está sendo feito hoje na atmosfera está levando a um aquecimento médio do planeta de 3º C, não um grau e meio a dois graus, como tem sido discutido no Acordo de Paris e nas reuniões diplomáticas. A ciência hoje mostra, claramente, que estamos indo, com as atuais emissões de gases de efeito estufa, para um aquecimento de 3ºC. E isso é muito sério para o planeta como um todo.
Vai causar mudanças radicais no padrão de chuvas, vai aumentar os eventos climáticos extremos e pode fazer com que regiões brasileiras, como o Nordeste que pode vir a ser praticamente inabitável somente em algumas décadas. Então, temos que trabalhar para reduzir esse cenário, que é um cenário de ameaça não só ao Brasil, mas a todos os países. Só que quem mais vai sofrer o impacto das mudanças climáticas é a população mais vulnerável, é a população mais pobre. Então, não temos tempo a perder. Temos que reduzir as emissões o mais rápido possível.
— A geopolítica atual favorece a pauta ambiental?
— A primeira coisa importante é que o painel de cientistas da ONU que cuida da mudança climática, que é o IPCC, coloca muito claramente que temos todas as tecnologias para reduzir as emissões de gases de efeito estufa pela metade até 2030. Então, não se trata de que não há alternativas. Há, sim. O Brasil tem um gigantesco potencial, por exemplo, de geração de energia solar e eólica a preços muito menores do que a geração nuclear ou a queima de combustíveis fósseis. O Brasil tem que aproveitar estas oportunidades enormes que a gente tem.
Agora, do ponto de vista global, temos um problema sério com a questão da governança, porque, basicamente, a maior parte dos governos é controlado pela indústria dos combustíveis fósseis. Isso é verdade para os Estados Unidos, para os países europeus e, obviamente, também para os países produtores de petróleo e para a Rússia. Então, o que temos é uma dificuldade enorme pois a população do nosso planeta não está sendo ouvida em relação à necessidade de estabilizar o clima. Muito pelo contrário. O que estamos observando hoje é que a indústria do petróleo está fazendo com que nenhuma das 27 COPs realizadas até agora sequer mencionou a questão da absoluta necessidade de eliminar a combustão de níveis fósseis do sistema energético global. O que a gente vê é um problema grave de governança que tem que ser resolvido o mais rápido possível.
— Durante a campanha eleitoral e nas primeiras semanas do governo Lula falou-se muito sobre a formação do BIC, que seria uma junção de Brasil, Indonésia e Congo, os países que têm as maiores florestas para a regulação de mercado de carbono. Como o senhor
enxerga a possível formação desse grupo?
— Não há a menor dúvida, isso é um movimento muito positivo que foi negociado na COP em Sharm el-Sheikh, no Egito, e isso é um movimento muito positivo porque, para reduzir o desmatamento, podem haver estratégias comuns entre Brasil, Congo e Indonésia, os três países que mais desmatam florestas tropicais do planeta. E, basicamente, se reduzirmos as emissões desses três países a zero, vai ser possível reduzir em cerca de 18% o total da emissão de gases do efeito estufa no planeta com muitos benefícios climáticos. O que a gente observa é que esse é um movimento geopolítico muito importante. Os países em desenvolvimento precisam se alinhar para defender os seus interesses nos fóruns de negociação global porque, senão, basicamente, quem vai dominar a discussão vão ser os países produtores de petróleo e as nações desenvolvidas. E aí realmente não há solução para a crise climática dentro desse quadro.
— Eu queria ouvir também a sua opinião sobre o agronegócio brasileiro, apontado como um dos vilões do desmatamento. O agronegócio vai se adequar a essa nova realidade?
— Um setor importante do agronegócio deixa muito claro que, para aumentar a produtividade agrícola brasileira, não precisamos derrubar uma única árvore. Mas, principalmente, o agronegócio quer se livrar da péssima imagem que tem fora do Brasil de destruidor do meio ambiente. Isso é péssimo para o negócio de exportação de commodities. Portanto, acho que parte do agronegócio já acordou para a questão de que eles têm que se aliar a essa estratégia de redução do desmatamento a zero, o mais rápido que puder. E, com isso, o agronegócio, mais ou menos, melhora sua imagem fora do Brasil antes que sanções comerciais ocorram, como por exemplo, a dificuldade de exportação de carne, de soja, que possam ser implementadas e prejudicá-los ainda mais. É uma questão muito importante e, basicamente, como 95% do desmatamento no Brasil é feito através de ações ilegais, nenhum setor da economia brasileira deve ser visto ou não quer ser rotulado como um setor que não obedece às leis do país. Então, a gente espera que o agronegócio se alinhe ao novo governo brasileiro na campanha de desmatamento zero o mais rápido possível. Isso permitirá traçar uma nova trajetória de desenvolvimento econômico, baseada na legalidade e na sustentabilidade. •