Morre o último dos grandes idealizadores da era de ouro do cinema espanhol. Crítico de Franco, amigo de Buñuel, o diretor de “Ana e os lobos”, “Cria cuervos”, “Carmen” e “Tango” fecha os olhos de vez aos 91 anos

Dono de uma filmografia extensa, o diretor, roteirista e fotógrafo Carlos Saura começou a ficar mais conhecido no Brasil nos anos 1970, quando ganhou o Prêmio Especial do Júri de Cannes com  “Cría cuervos” (1976), que entrou em cartaz nos cinemas brasileiros do que então era chamado do circuito de arte.

Uma história de memória de infância durante os anos da ditadura franquista, que paralisou a Espanha por quatro décadas anos e perseguiu implacavelmente seus dissidentes. O filme tem interpretações notáveis de Geraldine Chaplin e da menina Ana Torrent e capturou a imaginação de cinéfilos brasileiros que aqui também amargavam uma ditadura militar e conservadora.

Grande difusor da cultura espanhola, sufocada pelo governo militarista e ultracatólico do general Francisco Franco, Saura se ombreia com o cineasta de vanguarda Luis Buñuel (1900-1983)  e, na geração posterior à queda do franquismo, com Pedro Almodóvar (1949).

De formação mais clássica, filho de um funcionário público e uma pianista, Saura nasceu na região de Aragão em 1932 e começou a vida trabalhando como fotógrafo. Frequentou a Escola de Cinema em Madri nos anos 1950 e conseguiu fazer seu primeiro longa em 1959. A partir daí, começou a ganhar projeção no circuito europeu, sobretudo quando ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim em 1966 e 1968.

Com histórias que ainda refletiam o pesadelo franquista — o ditador morreria em 1975 —, Saura chamou a atenção de realizadores de fora da Europa quando passou a trabalhar com Geraldine Chaplin, filha de Charles Chaplin, em “Ana e os Lobos” (1973). Com a mulher e companheira Geraldine, Saura faria ainda alguns de seus títulos mais famosos, como “Elisa, Vida Minha” (1977) e “Mamãe Faz 100 Anos” (1979).

Esteta sofisticado, Saura depois partiria para aquilo que acabou sendo identificado como “filmes de dança”. Na verdade, a coreografia do flamenco, dramática e profundamente representativa de uma certa alma espanhola que lutava por se expressar quando faltavam as palavras ou eram censuradas pelo regime franquista, é como um cenário em movimento mais ou menos ideal para determinados roteiros.

Com muitas histórias centradas em personagens femininas, “Bodas de Sangue” (1981), “Carmen” (1983), “El Amor Brujo” (1986) e “Sevillanas” (1991) e “Flamenco” (1995) são todos filmes que exploram as possibilidades da música e das danças espanholas com muita mestria.

“Ay, Carmela”, de 1990, abre uma nova fase para Saura, de volta às histórias sobre a vida cotidiana no franquismo, mas com uma pitada de humor negro — e também contribui para isso a presença de Carmen Maura, atriz ultratalentosa revelada nos filmes mais anárquicos e pop de Pedro Almodóvar, então a estrela em ascensão no cinema espanhol. “Ay, Carmela” ganhou 13 prêmios Goya, o Oscar do cinema espanhol. O Oscar propriamente dito Saura nunca ganhou: “Carmen” foi indicado em 1983, mas não levou.

No final dos anos 1990, Saura ainda ganharia um prêmio de fotografia em Cannes com “Tango” (1998), por aquele que seria, talvez, seu último “filme de dança”. Na década de 2000, dedicou-se a temas como o pintor Goya e Luis Buñuel.  Nonagenário, seu último filme é do ano passado: “Las Paredes Hablan”.

Saura morreu de insuficiência respiratória em 10 de janeiro, um dia antes de receber o Prêmio Goya de Honra. Ele ainda será será homenageado de forma póstuma — por sua extensa e muito particular contribuição criativa para a história do cinema espanhol  e mundial, desde o final dos anos 1950 até a atualidade. •

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