“Conhecimento liberta. A extrema direita não quer um povo educado”, afirma Chico Pinheiro
Com mais de cinco décadas dedicadas ao jornalismo, Chico Pinheiro revisita sua trajetória, fala sobre democracia, cultura, educação e comunicação, e reafirma sua confiança no futuro do Brasil como um “realista esperançoso”

Francisco de Assis Pinheiro, o Chico Pinheiro, é um dos nomes mais respeitados do jornalismo brasileiro. Ao longo de mais de cinco décadas, construiu uma carreira marcada pela credibilidade e pela defesa dos direitos humanos, passando pelo jornal impresso, rádio e televisão.
Ex-âncora de noticiários da Rede Globo por 26 anos, incluindo o Bom Dia Brasil, hoje integra o Instituto Conhecimento Liberta (ICL), que define como “um projeto de jornalismo realmente livre, sem vínculos com governos ou anunciantes”.
Nesta entrevista à Focus Brasil, o jornalista revisita momentos pessoais e profissionais, fala sobre religião, cultura e política, e comenta os recentes episódios da democracia brasileira. Define-se como um “realista esperançoso”, citando Paulo Freire e Ariano Suassuna: alguém que confia no futuro, mas também trabalha para que ele aconteça.
Leia a entrevista completa:
Francisco de Assis, estou vendo aí, no fundo da sua imagem, uma foto sua com o Papa Francisco. Eu não ia começar por religião, porque tem aquele ditado que diz que religião e política não se discutem…
Uai, eu só discuto isso. O que eu não discuto é futebol!
Como é que você tem acompanhado, se você tem acompanhado o papado do Papa Leão IV à frente do Vaticano? Você tem acompanhado o novo Papa?
Não tenho acompanhado de perto o papado de Leão XIV. Ele tem se manifestado pouco. Algumas vezes ele se manifestou em relação a temas que considero mais importantes para o nosso tempo, como o massacre em Gaza, sua postura foi satisfatória e firme. Pelo que percebo, ele tem uma faceta um tanto tradicionalista, especialmente na liturgia e nos símbolos da Igreja, mas parece que ele seguirá os passos de Francisco, que, por sua vez, seguiu os de Paulo VI e João XXIII, se ele caminhar por aí, será muito bom. Não sei o que será, pois, como disse, tenho acompanhado pouco essa questão. No momento, estou mais focado em assuntos mais urgentes de nosso lado, tanto as ameaças à democracia no Brasil quanto as ameaças dos Estados Unidos ao Brasil e ao planeta.
Por falar em religião, o veículo em que você está trabalhando (ICL) tem se destacado na cobertura do tema. Qual sua relação com o ICL hoje?
Sou membro da família ICL, onde tem muita gente interessada em trabalhar com informação correta e livre. Por isso, o ICL não possui nenhuma fonte de receita publicitária, de anunciantes, de governo ou de qualquer outra entidade; somos sustentados apenas pelos cursos e pelas matrículas dos alunos. É uma experiência de jornalismo realmente livre, até às vezes com alguns conflitos de opiniões, mas naturalmente, por ser livre, tem um perfil mais progressista e de esquerda. E é uma plataforma de cursos, e os alunos dos cursos online do ICL são a base que sustenta a nossa experiência jornalística, onde me sinto muito confortável trabalhando com gente muito boa.
O ICL tem realizado um trabalho bem interessante na produção de documentários, trazendo, inclusive, uma produção sobre o pastor Silas Malafaia. Como é construído isso? Falar sobre religião ainda é uma necessidade, precisamos ter esse tema em conta hoje, nesse momento em que vivemos? Falar sobre religião, ou sobre os religiosos, talvez?
É, quer dizer, é uma dimensão importante do ser humano: a dimensão espiritual, a dimensão mística, a dimensão da transcendência. É uma dimensão humana. Como gosta de dizer o meu amigo Frei Betto, “até o ateu tem uma religião, que é a negação de um Deus”. Essa é a dimensão que o ser humano tem: entender a sua finitude ou transpor essa finitude. E o Brasil, de uma maneira muito particular, tem uma influência na sua formação cultural muito forte da religião.
Não podemos esquecer que aqui era a terra de Santa Cruz, os portugueses trouxeram a mensagem na história completamente deturpada, se você usar como base para balizar isso os textos bíblicos. Principalmente os evangelhos, as epístolas do Novo Testamento, ou os Atos dos Apóstolos, que é uma descrição de como viviam os primeiros cristãos. Um dia perguntaram ao Dom Hélder se ele era comunista, ele respondeu: “Eu sigo o que está lá nos Atos dos Apóstolos. Os cristãos tinham tudo em comum, dividiam seus bens e davam a cada um, segundo a sua necessidade”. Então, isso é uma mensagem que, muitas vezes, é apropriada para um discurso comunista mesmo, se você quiser chamar assim. Tem um cristianismo que veio para o Brasil: o cristianismo do opressor, eurocentrado, do poder divino dos reis, do imperador, que oprimiu muito.
Um exemplo são os povos originários, que tinham que ser convertidos, e os povos que vieram da África, os escravizados, o que é um absurdo, é uma contradição se você contemplar isso à luz da mensagem do evangelho de Jesus. A religião é uma dimensão importante. Agora, no Brasil, ela sempre serviu, como igreja católica, ao poder dominante. E depois, quando a igreja católica começou a dar passos mais largos, principalmente depois de João XXIII, do Concílio Vaticano II, mais largos rumo à questão social, à justiça social, à questão da maior igualdade entre os homens, à discussão do lugar do poder, remontando aos princípios evangélicos: quem tem maior poder é aquele que serve mais, é o servo do Senhor. O servo é que tem poder, vem para servir, não para ser servido. A igreja católica avançou um pouco nisso e fez emergir, por exemplo, a chamada Teologia da Libertação, e começou a conquistar muita gente que se sentia novamente inserida numa mensagem de libertação, libertação no sentido integral, política, sobretudo.
A gente recebeu, principalmente da matriz norte-americana e estadunidense, os televangelistas. Pode lembrar, a Petra fala disso no filme dela: o Jim Swaggart, o Billy Graham. Esses caras chegaram e montaram essas coisas estranhas, essas seitas, como a de Malafaia, de Edir Macedo, enfim, todas essas pretensas igrejas, que eu não considero igrejas, são seitas, de manipulação, de extorsão de dinheiro usando o medo. O centro de muitas, ou da maioria dessas seitas evangélicas, principalmente as chamadas neopentecostais, não é a figura encarnada na história através de Jesus, estou usando aqui a linguagem “cristológica” mesmo, desse que serve, desse que sofre e desse que ajuda no sentido da força da libertação, não é nada disso.
Eles colocam o centro da sua fé, embora não digam de maneira tão explícita, no diabo. Então é o seguinte: você tem que vir aqui, que você tem um curso, sabe? É o diabo que está te jogando para baixo. Então você tem que aderir aqui, botar uma grana, fazer isso, fazer aquilo, porque a gente vai tirar o diabo de você e vai dar tudo certo. Algumas pessoas, como em qualquer grupo grande de pessoas, algumas pessoas prosperam materialmente, então essas são pinçadas como exemplo. “Está vendo? Fulano aderiu de todo o coração, deu não sei quanto aqui para a igreja, olha como é que ele está.”
Essa é, mais ou menos, grosso modo, o discurso feito por esse pessoal. Agora, esse discurso é reacionário, é antigo, ele preserva a concentração de renda e de poder, uma desigualdade imensa entre as pessoas usando para isso o que é chamado… quem fala muito sobre isso de maneira muito brilhante é o professor João César de Castro Rocha… é a teologia da prosperidade, que vem em contraposição à teologia da libertação.
Quanto à condenação do Jair Messias, já existe um movimento de comoção…
Comoção onde? Não vi nenhuma comoção aqui, tá todo mundo quietinho, eu não tô vendo ninguém fazer muito barulho, não. De vez em quando você encontra uns mimimi. Dá vontade de dizer para o Bolsonaro, Chega de “mimimito”! Chega de mimimito! Não é de comoção não, eu tô vendo o país caminhando. Claro, com riscos para frente, mas estamos livres dessa quadrilha que queria dar um golpe, um retrocesso absoluto no país.
Você é um jornalista que veio lá de trás, do jornal, da rádio, depois foi para a televisão, e agora nas redes sociais. Você não é um lacrador de rede social, você tem uma história no jornalismo. Eu acho que essa postura que você tem, inclusive, está presenta na sua atuação nas “novas mídias”. Você acredita ser esse, de fato, o caminho?
É, esse é um dos caminhos. Bem lá no passado, a gente tinha como fonte de informação os jornais impressos, o rádio sempre foi, e depois veio a televisão. Mas a partir dos anos 1960, o rádio, com a qualidade de som melhor, porém restrito a uma área, a uma região, que é o AM. Você tinha AM, com transmissão em 31 metros, e tinha o país inteiro atingido pela rádio, fundamental para a manutenção do poder da ditadura do Estado Novo de Getúlio.
Você tinha a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, que pegava no Brasil inteiro, falando a mesma língua, com a mesma ideia, isso foi fundamental para a sustentação da ditadura do Estado Novo, da ditadura de Vargas. E sempre o rádio foi muito importante: Rádio Nacional, Rádio Tupi, Rádio Mayrink Veiga. Depois esse troço acaba todo. Hoje, se você ligar a Rádio AM, vai ver sertanejo e evangélico, basicamente.
E o jornalismo, está no FM, claro que é um jornalismo mais local, poucas emissoras que se dedicam realmente a jornalismo, e depois vem a televisão. Então, essa mídia das redes digitais, que eu não chamo de redes sociais, chamo de redes digitais porque elas não favorecem nada o social, elas só misturam, mas nesse tempo das redes digitais é um tempo novo. Agora, o que vai acontecer com isso, eu não sei.
Acho que vai se integrando. Hoje, você já assiste programas de rádio através das redes; você põe lá no YouTube, por exemplo, o programa do Reinaldo Azevedo, diariamente, é um programa da Band News, da Rádio Bandeirantes e da TV Bandeirantes, mas está com a imagem, tem uma imagem de estúdio. A TV Globo mesmo, a GloboNews, está pensando seriamente, já entrando no YouTube para transmitir ali também.
Quer dizer, este é um caminho, não sei se ele vai acabar com os antigos caminhos da televisão, não sei ainda. Eu sei que a Rádio FM não acabou com a Rádio AM, mas a Rádio AM deixou de ter relevância. Então, as coisas vão se alterando aos poucos. O ICL fez opção pelo YouTube, ele fez opção para fazer a sua programação aí, porque é um projeto audacioso com recursos limitados, a gente só vive daqueles que fazem os cursos do ICL e que pagam uma mensalidade, ainda que muito pequena, mas é muita gente pagando, que conseguem sustentar o nosso jornalismo e os nossos eventos. Mas é um caminho que a gente está escolhendo. Por que não abre logo uma TV, uma TV a cabo? Porque é muito caro, e para você manter isso, você precisaria ter anunciante.
O Eduardo Moreira é inflexível nisso, do “eu não quero financiamento de ninguém, nenhuma fonte, não quero nenhum banco patrocinando a gente, não quero nenhuma grande empresa, não quero agro, não quero indústria de automóveis, não quero verba de governo, porque eu quero liberdade para trabalhar”. Então, a gente vai caminhando, por enquanto, no YouTube. Pode ser que amanhã a gente consiga ocupar um espaço em grade de televisão, mas eu não sei. A televisão também está começando a migrar para isso.

Assim como as concessões de TV são públicas e regulamentadas, acredita também que as redes precisam desse mecanismo de proteção e regulamentação?
A Constituição diz que as TVs, os canais de televisão, e rádio também, claro, os canais de radiodifusão, de teledifusão, são canais que pertencem à União e, através do Presidente da República, são concedidos para cumprir três, se não me engano, é isso que está na constituição, três objetivos fundamentais: primeiro, educação, segundo artística e cultural e terceiro, informação. Embora a gente saiba que hoje, para seu funcionamento e para o sucesso que precisam ter e para manter o custo disso, as emissoras de televisão, assim como de rádio, têm inúmeros patrocinadores.
Eu costumo dizer que a grande mídia não é feita exatamente para o seu consumidor final, para o telespectador, para o rádio-ouvinte, ela é feita para atender o seu anunciante. gora, claro, para atender o anunciante, ela tem que chegar, passar pelo público, porque é esse público que consome os produtos do anunciante, sejam quais forem.
Então, você tem que ter uma programação que atenda ao grande público, mas, ao mesmo tempo, não pode ser um tipo de conteúdo que agrida interesses daqueles que o financiam. Aí, você tem o dilema da liberdade. É um negócio danado. Mas acho que a diferença que a gente tem tentado fazer reside aí: a gente não tem que atender interesses de absolutamente ninguém, a não ser o público.
Além da trajetória no jornalismo diário, factual, você também mergulhou no jornalismo cultural, um entusiasta da cultura. Fui seu espectador na época do Sarau. Você é um cara que entende muito de música. E eu sei que você é ligado à cultura brasileira e à brasilidade como tal. Como é que você interpreta o ódio que essa extrema direita tem da cultura brasileira? De onde viria isso?
Olha, tá aqui na minha camiseta, não dá pra vocês lerem aí: “Só o conhecimento liberta”. Isso é uma frase de José Martí, que foi um dos heróis, ou foi o herói da independência de Cuba, no final do século XIX; ele morreu na luta pela libertação de Cuba, que era a colônia espanhola, e dizia: só o conhecimento liberta. Essa direita, extrema direita, os donos do poder, não querem um povo educado. Porque um povo educado, um povo com sabedoria, com conhecimento, se torna livre e se tornando livre, ameaça os privilégios e a concentração de renda dos donos do poder. Não é isso? Eles não querem educação. Só que o brasileiro, muitas vezes, se torna mais sabido e adquire mais conhecimento sem ter podido fazer a escola que seria aquela sonhada, por exemplo, pelo Darcy Ribeiro, nos seus CIEPS, na escola de horário integral, onde as pessoas realmente evoluem muito. Mas muita gente aprende na cultura e na cultura popular.
Muita gente entende mais e sabe falar da vida e da realidade, da diferença de classes, da injustiça, através do samba, samba mesmo, feito por gente, às vezes, quase analfabeta, sem ter passado pelos livros, do que pelos livros. E aprende, sabe, é sabido, e com críticas a tudo que você pode imaginar, né? Todas as formas de dominação, e a gente estava falando sobre dominação da igreja. O Miguinho Neto, sambista, foi chefe da bateria do Salgueiro, no Rio de Janeiro, ele faleceu, eu era muito amigo dele; um sujeito grande, bonito. Ele fez várias músicas em parceria; fez uma linda, em parceria com o Zeca Pagodinho — o Zeca interpretou muitas coisas dele. Mas o Almir fez uma música em que ele fala dessa coisa, dessa banalização do nome de Deus: “Deus te guarde”, “Deus te crie”, “Deus te acompanhe”, “Deus é nosso pai”, “é nosso guia” …
Tudo o que se faz na Terra, se coloca a Deus no meio. Ele faz esse samba dizendo que os habitantes da Terra estão destruindo o planeta, estão se matando, estão pregando o ódio, e no meio disso tudo vive falando de Deus; Deus deve estar de saco cheio, porque isso está banalizado, o nome de Deus, o nome do sagrado, o nome daquilo que deveria ser, para essas pessoas e para todos nós, um modelo de forma de convivência social e de integração com o planeta, com o meio ambiente, com as criaturas todas.
Aí, se me pega na religião, porque eu me chamo Francisco de Assis, em homenagem ao santo das criaturas, que amava as criaturas. Então, a sabedoria chega a muitas pessoas através da música. Houve uma época no Nordeste, em que aqueles que sabiam ler, decoravam as histórias do cordel, a cultura de cordel, as sextilhas, as décimas, e tal, e declamavam aquilo, contavam histórias, passavam conhecimento, passavam ensinamento, e isso se espalhava no meio do povo.
E é claro que a cúpula dominante, a Faria Lima… ela não quer, não quer que as pessoas saibam muito, que as pessoas se vejam como realmente são, em especial as pessoas mais pobres, como realmente são: escravizadas por um novo tipo de casa grande e uma grande senzala, que são as periferias. Porque quando eu fazia um programa de música, em que a gente falava muito de samba e muito de música popular, a gente tocava em assuntos fantásticos, coisas que estão na vida de todo mundo desde sempre, e eu ficava muito à vontade mesmo, que a gente estava conversando a língua das pessoas.
A sua relação com a música é conhecida. Pode falar um pouco sobre esse caminho pela arte?
Um dia, eu fazia lá o Bom Dia Brasil, e a Ana Maria Braga, que é muito minha amiga, me convidou para ir ao programa dela, pra cantar. A produção dela me procurou: “Ana Maria quer que você venha cantar, porque ela ficou sabendo que você cantou não sei onde, que não sei o quê”. Eu falei, mas eu não sei tocar instrumento. Aí ela falou: “Mas você viria?”. E eu falei: “Olha, eu iria cantar, mas só se eu pudesse levar o meu violonista que me acompanha”. “Ah, me passa! Me passa o nome dele, e tal”. Eu falei, se vocês conseguirem que ele vá, aí eu vou”. Aí eu passei — se chama Antônio Petty Filho — e dei o número do Antônio Petty. Aí, dali a pouco, a menina me liga de volta: “Mas que história é essa?”. Eu falei: “Por quê?”. Ela falou: “Você me passou o telefone do Toquinho!”.
Eu falei: “É do Toquinho mesmo!”. Toquinho, que era parceiro, foi parceiro do Vinícius —, porque eu tava num show do Toquinho em São Paulo, e ele me chamou pro palco pra eu cantar com ele. E eu, muito cara de pau, subi e cantamos; fizemos dupla, ele fez segunda voz, ficou até bonito. E aí ele passou a me chamar, “vem cá, vem cá pra você cantar hoje”. Eu cantei no Canecão, no Rio; cantei num teatro que tinha aqui em São Paulo, chamado Palladium.
Aí, depois, o João Carlos Martins fez uma apresentação da sua orquestra em Curitiba e me chamou no palco pra cantar. E virou essa coisa de cantar. Aí a Ana Maria me chamou pra cantar lá, eu levei o Toquinho, e foi muito engraçado porque, na véspera da apresentação, a Ana Maria falava assim: “Você não pode perder o Mais Você’ de manhã, ‘Chico e Toquinho’”. Eu falei, olha que danada! Todo mundo achando que era o Buarque, que nada, era eu. Toquinho entrou no programa; muita gente deve ter ligado achando que apareceu o Buarque lá, e nada. Aparece o Chico Pinheiro, decepção.
Mas foi uma farra ali, eu e Toquinho tocando. Toquinho tem uma delicadeza pra te colocar no tom certo e tal. E depois, outra vez que ela me chamou pra cantar lá uma moda de viola, uma moda chamada Moda da Onça, eu chamei o Rolando Boldrin, e o Boldrin foi tocar Moda da Onça pra eu cantar. Aí cantou comigo também; foi muito legal. E isso me dá muito orgulho: o Rolando Boldrin tava com o programa até a morte dele na TV Cultura, um programa chamado Senhor Brasil. E ele tinha feito o programa matinal de domingo na Globo. Reza um ditado aqui de onde eu moro que “as maiores expressões são a maior quantidade, são o Brasil”.
E eu falei: “O quê? O Brasil!”. Depois ele parou; teve um desentendimento com algumas pessoas da direção da Globo, não quis mais, e eu consegui que ele fosse ao programa da Ana Maria pra gente cantar “Moda da Onça”. E foi um sucesso tão grande, ele gostou tanto, que aí a gente fez um projeto pra ele voltar pra Globo pra fazer As Manhãs de Domingo. E o grande diretor de televisão, o Milton Travesso, que era meu amigo, desenhou esse projeto e apresentamos pra Globo.
Mas a Globo achou que não cabia mais, que já tinha lá Os Amigos Sertanejos, que não cabia o Boldrin. O Boldrin não tava querendo voltar não, mas a gente convenceu que ele deveria voltar. Aí ele não voltou pra Globo, mas, pra minha felicidade, basicamente o mesmo projeto ele fez na TV Cultura. Iria ser um programa — o nome que eu tinha dado pra ele era Armazém. Era igual a Armazém; era o mesmo projeto que eu tinha dado pra ele. Era Armazém. E tinha esses armazéns que tinha antigamente no interior, que vendem de tudo, né? De sal, linguiça, bicicleta, arroz, feijão e saca, né?
Então era uma bancada daquela que você sentava, as pessoas chegavam pra tomar uma cachaça e beber um café, e apresentavam a música. E ele levou esse programa pra Cultura, que fez na Cultura, e eu fiquei muito feliz. Estive com ele mais duas vezes depois que ele começou esse programa. Depois fizemos — apresentamos o programa pra Globo —, eu apresentei com ele um espetáculo de música e cultura popular, música e poesia, no Centro Cultural Banco do Brasil.
Como profissional da grande imprensa, você sempre manteve presente seu posicionamento. Qual é o tabu que envolve esses profissionais de grande mídia que os impede de se posicionar?
Olha, não é que impeça. Eu nunca fui impedido. Nunca me proibiram de me posicionar, de jeito nenhum. É, mas eu nunca fui um cara assim, vamos dizer… eu nunca me senti um sujeito panfletário, entendeu? É claro que, às vezes, por exemplo, participando do jornal do ICL, eu uso de mais veemência e tal, porque a gente tem um público ali que é um público assumidamente progressista, então eu falo a linguagem mais parecida com eles.
Na TV Globo, nunca me proibiram, tal assunto você não pode falar, nunca fizeram isso. Mas também nunca fui comentarista lá; eu era âncora de um jornal. E sempre, sempre, não me esqueço de que a minha posição não era congruente com a da emissora quando começou o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. E eu falei no estúdio: estão preparando um golpe, porque armaram uma comissão: o deputado Eduardo Cunha armou a comissão para examinar as questões da Dilma e ver se abre o processo de impeachment dela. Só que ela está sendo acusada de pedaladas fiscais, e que isso seria uma jogada de corrupção.
Agora, todos os membros dessa comissão todos, a partir do senhor Eduardo Cunha, todos estão metidos em acusações suspeitas de corrupção. Então, não vejo nele nenhuma autoridade moral para julgar uma presidenta por uma coisa que precisa ser estudada, a questão da pedalada fiscal, o que está acontecendo, o que pode acontecer não é impeachment, seria um golpe. E eu me lembro que isso causou um certo desconforto, porque havia pessoas ao meu lado que estavam no estúdio debatendo aquele momento e que absolutamente não concordavam, achavam que tinha que caçar mesmo, essa não era a posição editorial da empresa naquele momento. E tudo bem, mas era a minha opinião. Agora, eu não vou usar a empresa para dar a minha opinião, né?
Então, eu me abstive a partir dali de fazer esse tipo de denúncia. Eu não era um comentarista, eu era uma pessoa que apresentava as notícias. Agora, eu nunca deixei de me manifestar quando havia abusos contra os direitos humanos, quando havia abusos de corrupção, tudo isso, eu sempre, sempre me manifestei. Claro que uma posição diferente, de um apresentador de televisão, na maior emissora do país, você fazer isso para um público que já entende e que é majoritariamente progressista, é outra linguagem, e é outro território que comporta outra linguagem.
Antes até da existência da Globo News, o jornalismo da TV Globo era muito mais quadrado, muito mais fechado, a Globo News começou a abrir um pouco, você já tem pessoas que pensam, que dizem o que pensam, tem bons jornalistas ali manifestando opiniões com a maior liberdade, com grandes liberdades. Então as coisas vão se transformando, nunca tive problemas de me manifestar, mas também tive juízo de saber que eu não posso fazer ali um libero panfletário, que não tem nada a ver. Aliás, não é essa a função do jornalista.
Você já pensou, já cogitou a possibilidade de desenvolver alguma atividade política? Diretamente?
Começaram a me perguntar disso agora, que eu tenho falado muito — tenho falado muito no ICL, em todo lugar a que vou —, sobre a enorme importância que tem o parlamento hoje, e sobretudo o Senado, que vai decidir muita coisa a partir do ano que vem. É onde a extrema-direita está buscando espaço, porque sabe que ali pode ser o Calcanhar de Aquiles do governo e do Judiciário, do Supremo Tribunal Federal: eles podem fazer uma grande bagunça ali, faltam candidatos e tal.
Já tem gente que diz: “Não, você tem que ser candidato”. Olha, eu nunca pensei em ser candidato, não. Fui convidado a ser candidato uma vez, em 1982, no começo, quando a gente teve a primeira eleição para governadores depois do Ato Institucional número 2, de 1966. Em 1964, você teve o golpe da ditadura militar; em 1966, a gente teve a eleição de governador, em que ganharam — venceram a eleição — governadores de oposição à ditadura, como o Negrão de Lima no Rio de Janeiro, Israel Pinheiro em Minas Gerais. Vários, vários venceram, e a ditadura então acabou com a eleição de governador.
Elas voltariam em 1978, mas aí houve um episódio conhecido, chamado Pacote de Abril, onde o ditador de plantão, que era o General Geisel, suprimiu essas eleições. Em 1982, afinal, tivemos eleições para governadores. Fui escalado para cobrir as eleições em Minas Gerais e procurei o candidato, Tancredo Neves, que eu conhecia bem e entrevistava frequentemente. Fui conversar com ele, e ele me disse: “Fecha a porta, senta aqui no sofá do meu lado”.
Batia a mão na minha perna e disse: “Pinheirinho, você não vai ser o repórter da minha campanha. Você vai ser candidato. Vai pedir licença ou sair da TV Globo e será deputado federal”. Eu respondi: “O quê?”. Ele insistiu: “Vai assinar a filiação no MDB, (ou PMDB, não sei se já era PMDB), e eu garanto que você está eleito. Vou ganhar a governança de Minas, mas preciso de uma bancada de deputados federais jovens, arejados, que conquistem votos. Você é repórter do Jornal Nacional, tem 29 anos, está na flor da idade e eleito. Já tenho recursos para sua campanha: você será o speaker, o narrador. Viajaremos o estado; em todo comício, você sobe no palanque, faz um discurso rápido e anuncia: ‘E agora, Tancredo Neves!’. Como as pessoas te conhecem da TV, será fácil ganhar votos. Vou distribuir santinhos com sua foto abraçado comigo. Você está eleito, garantido”. Eu argumentei: “Doutor Tancredo, não é meu projeto de vida. Quero continuar jornalista”. Ele retrucou: “Não quero saber agora. Converse com sua esposa e volte em uma semana para assinar a filiação”. Cheguei em casa e comentei como uma piada: “Que doideira! O cara quer que eu seja deputado”.
Minha mulher respondeu: “Assina e traz o divórcio, porque não quero ser casada com deputado, de jeito nenhum”. Eu já não tinha interesse nisso. Ele queria dez deputados jovens e leais para ter peso na Câmara. Acabei não cobrindo tão de perto a campanha dele, fiquei constrangido e acompanhei mais de longe, cobrindo até o adversário, Eliseu Rezende. Aprendi coisas interessantes. Olha, talvez vocês não tenham pensado nisso.
Quando vejo os discursos e posições, Tancredo era tido como moderado — o pessoal mais à esquerda até criticava, porque ele não era barulhento, era da moderação. Mas as metas que tinha, perseguia com racionalidade. Tancredo não entrava numa briga para perder. Fez a campanha das Diretas Já não com a virulência de outros — como Teotônio Vilela, Ulisses Guimarães, Lula, Brizola, que fizeram bonito —, mas ficou mais nos bastidores. Aparecia, mas sem discursos que empolgassem tanto. Porque ele sabia: se aquilo não desse certo (como não deu), a presidência teria que ser conquistada pelo colégio eleitoral.
Alguém precisava se preservar para negociar a transição democrática, pois nós, democratas, não tínhamos votos suficientes para eleger o presidente. Quando as diretas se encerram com a frustração do sepultamento da emenda Dante de Oliveira. Tancredo começa a costurar apoios com maestria e prudência. Atrai líderes como o senador Petronio Portela (da Arena), depois Aureliano Chaves (ex-vice de Figueiredo) e José Sarney, que acabou ficando na presidência. Tecia uma trama de apoios da esquerda à centro-direita, não havia essa direita neofascista de hoje; a maioria era centro-direita, direita liberal que apoiava a ditadura, mas com quem era possível dialogar, como Marco Maciel, Petronio Portela, Aureliano Chaves.
Quando a Arena despertou para a disputa no colégio eleitoral, a direita estava em conflito interno: Mário Andreazza, militares da linha dura e, no final, Paulo Maluf como adversário direto. Tancredo, com seu arranjo de centro (da esquerda à centro-direita), conseguiu passar. Se pegar o discurso de posse que Tancredo escreveu — e não leu, pois foi internado na véspera —, é impressionante: parece um discurso do presidente Lula. Falava de teto para todos, combate à fome, exploração das riquezas por empresas brasileiras (antinacionalismo), justiça… Um discurso que caberia perfeitamente na boca do Lula.
Acho curioso que nunca prestamos atenção nisso. O Lula, para chegar ao poder agora, também fez um arranjo, não ideal, mas necessário, com conservadores e o centrão, considerando a realidade política para alcançar o Planalto.
Você tem nos planos a escrita de um livro sobre a sua trajetória jornalística?
Ninguém está lendo livro hoje… Quem está lendo hoje são alguns intelectuais, pessoas universitárias, pessoas que veem vídeos o dia inteiro. Há uma profusão enorme de vídeos, gravações, conteúdos. Eu mesmo estou cercado de pilhas de livros que não consigo ler por falta de tempo.
Livros exigem concentração maior. Mas vou escrever um livro para contar o quê? Olha só: histórias, lendas e narrativas, eu as conto aqui. Agora, livro é para conter coisas fundamentais. Acho que hoje, em vez de botar mais um livro por vaidade nas prateleiras, e até me ofereceram: nossa, você não tem tempo para escrever tanto, a gente põe alguém para redigir, depois você dá forma e publicamos, eu pergunto: para quê? Para fazer um lançamento? Foram tantas pessoas… olha, esse livro leva meu nome?
Nada. Já está cheio de livro aqui para ser lido. Tem livros de história, da história política recente do Brasil, alguns até com visão de dentro do regime da ditadura militar, tem os fundamentais como os livros do Gaspari, As Ilusões Armadas. Há uma quantidade de obras sobre essa história recente, de gente que se dedicou profundamente a isso. Vou botar mais um livro para atrapalhar? Quero que as pessoas leiam os clássicos. Estava falando com meu filho agora mesmo: o Supremo Tribunal Federal julgou quando tinha que julgar, caminhou e se preparou para isso. Ele perguntou: “Por quê?”. Respondi: “Porque resolveu encarar o Rubicão. E ninguém vai ao Rubicão para pescar”. E o que é isso? O Rubicão é um riozinho do norte da Itália.
Quando as tropas romanas voltavam das campanhas de conquista, tinham que depor as armas na beira do Rubicão. Se passassem o rio para dentro da Itália, era sinal de que haveria luta armada pelo poder. Júlio César foi ao Rubicão, atravessou e tomou o poder. Expliquei: o Supremo sabia que ninguém vai ao Rubicão para pescar. Vai-se ao colégio eleitoral por necessidade, vai-se ao Rubicão para atravessar e conquistar.
O Supremo sabe: chega ao Rubicão para atravessá-lo e obter o resultado necessário. Para isso, é preciso estudar história, ler as histórias de Roma, os clássicos gregos: a Ilíada, a Odisseia de Homero…. Há tanto na literatura: Machado de Assis, Guimarães Rosa, Érico Veríssimo, Eça de Queirós em Portugal… e as memórias! Pedro Nava, que descobri aos 30 anos, cinco volumes de memórias de um grande médico, considerado por muitos o maior memorialista da língua portuguesa, comparado a Proust. Há uma quantidade enorme de literatura importante, divertida, instigante, que ensina. Agora, Chico Pinheiro, botar um livro aí? Esse pessoal tem muito mais a dizer do que eu. Então vou falando aqui, porque quem começar a assistir e chegar até aqui terá descoberto, muitas vezes, que há muita coisa importante.
O que é que faz uma entrevista ser uma boa entrevista?
Tanto de verdade que ela contiver, as novidades, né? E o que faz uma entrevista ser uma boa entrevista é ela ser vista na hora certa para quem está interessado. Eu não sou entrevistado, é raro, eu sou mais entrevistador. O que faz uma entrevista ser uma boa entrevista é quem faz a entrevista, fazer perguntas certas que demandam resposta.
Chico, só para encerrar. Você é um veterano, como foi falado aqui, da imprensa. Os principais momentos do país na travessia da ditadura, ainda na ditadura, para a democracia, e depois, você mesmo historiou aí a eleição de Tancredo, que foi o início do processo democrático, e agora uma tentativa de golpe de Estado que foi punida exemplarmente, foi a primeira vez na história. Você é otimista com o futuro do nosso país?
Olha, eu prefiro… o Ariano Suassuna, quando lhe perguntaram se ele era otimista ou pessimista, ele falou assim: “Não sou nem otimista, nem pessimista. Sou um realista esperançoso”. Um realista é esperançoso, entendeu? E toda vez que falo de esperançoso, que é a condição daquele que tem esperança, me lembro imediatamente de Paulo Freire. Eu sou esperançoso porque tenho esperança, mas tenho esperança do verbo esperançar. Esperançar não é ficar sentado esperando a banda passar. Esperançar é, ao mesmo tempo que confia no resultado da ação dos homens e mulheres na história, trabalhar para que as coisas aconteçam.
Esperançar exige uma postura ativa, não passiva; exige uma postura de propostas. Então, sou, nesse sentido, um realista esperançoso. Tenho esperança e luto para isso. Do meu tamanhozinho de luta, uma luta pequena, dentro da comunicação, mas junto a mim tem muita gente, ombro a ombro, na mesma luta. Aliás, tem um poema lindo do Drummond, Sentimento do Mundo, que fala disso: “Olhe os meus colegas que estão todos taciturnos diante desses tempos difíceis, mas nutrem comigo grandes esperanças.” Ele fala disso: “Vamos, não nos afastemos, vamos juntos de mãos dadas”. Então é isso: me sinto de mãos dadas com a minha turma do ICL, com vocês, da Focus, da Fundação Perseu Abramo, com todos os progressistas e sonhadores desse país. Vamos, vamos aqui, um projeto de Brasil no qual nós acreditamos.
Nós acreditamos nisso: os progressistas, a esquerda verdadeira, acredita num projeto de país. Um projeto onde há respeito aos direitos humanos, mais igualitário, onde as riquezas são exploradas com respeito ao meio ambiente e ao solo, onde existe soberania e diálogo. Esse é o projeto em que a gente acredita. É nele que deposito minha esperança e exerço o verbo esperançar. Porque a direita não tem nenhum projeto.
A direita, como disse esses dias o deputado Ivan Valente, fica esperando um aventureiro passar para pescá-lo e colocá-lo no poder. Assim fez com Collor, assim fez com Jair Bolsonaro. Para quê? O que a direita quer ao poder? Para manter seus privilégios, continuar explorando as pessoas, sugando o máximo do meio ambiente e do país, para acumular. O chão não tem gaveta, né? Chega de mimimi, né? Chega de mito.