O disco póstumo de Elza Soares traz justa reverência ao melhor da MPB, assim como o álbum de Marcelo D2. O rapper faz um mergulho radical no samba de raiz e mostra que a música popular ainda tem muito a surpreender o mundo

Bia Abramo

Um disco póstumo e um (mais uma) guinada de carreira não deixam dúvida de que a música popular brasileira tem ainda muito o que dizer ao Brasil — e ao mundo. Se em “No tempo da intolerância”, Elza Soares mostra, mais uma vez, a potência de sua voz quase nonagenária e de sua versatilidade nos ritmos negros, em “Iboru”, encontramos um Marcelo D2 no mergulho particular e emocionante no samba. E, em ambos, a marca das colaborações e parcerias, característica que se tornou o arroz com feijão da produção musical na era do streaming, acrescenta camadas de interesse ainda maiores.

As gravações de “No tempo da intolerância” estavam a pleno vapor quando Elza Soares morreu em 20 de janeiro de 2022, aos 91 anos. Depois de ficar parado por mais de um ano, o álbum foi retomado pelo produtor Rafael Ramos, que também produziu “Planeta Fome” (2019), e “Ao Vivo no Municipal” (2022).

O tempo a que se refere o título do disco fica imediatamente claro que foram os anos em que o Brasil esteve à beira do fascismo, depois das eleições de Jair Bolsonaro em 2018. Ainda que reconstruído sob o impacto do luto pela morte de Elza aos 91 anos, o disco não deixa cair nenhum das bandeiras da cantora, sobretudo a do feminismo negro e da liberdade da criação.

No álbum, a cantora admite sentir medo, coloca o próprio otimismo em dúvida, diz que vivemos um período de luta e faz um clamor por justiça, em especial para mulheres e para a negritude. A fala foi retirada de um vídeo, uma gravação inédita deixada por Elza, e retrabalhada por cima de uma trilha de teclado e guitarra. Foi um dos poucos elementos do disco que a cantora não teve a oportunidade de ouvir — como os arranjos de sopro, por exemplo—, já que ela morreu antes de o álbum ser finalizado.

O disco ainda traz surpresas. O primeiro grande encontro musical de “No tempo da intolerância está em “Rainha africana”, cuja letra foi escrita por Rita Lee e musicada por Roberto Carvalho. Pitty assina “Feminelza”, composta especialmente para a cantora. Duas compositoras jovens, a baiana Josyara e a carioca Isabela Moraes assinam outras faixas que atestam a inquietude de Elza, cuja idade, em vez de afastar, a aproximou ainda mais das novas gerações de músicos. Até como exigência de sonoridade, de acordo com entrevista concedida pelo produtor à Folha de S.Paulo, que teria ouvido dela a seguinte instrução: “Quero jovens, cariocas, e o mais preto possível — mas quero a molecada. Não adianta trazer esses nomes [mais tarimbados], falando que tem que ser de tal jeito. Tem que ser do nosso jeito”.

A ordem de Elza resulta, de fato, numa cama instrumental moderna, com toques de soul carioca, afrobeat e, sim, do novo samba brasileiro, que fazem o cenário para que o protagonismo das compositoras mulheres que ali lhe prestam homenagem ou para as composições da própria Elza, como “Coragem”, “No tempo da intolerância” e “Quem disse?”. O legado de Elza, artista que teve de se reinventar muitas vezes, ganha uma linda homenagem nesse disco que mantém viva a voz forte da sobrevivente dos planetas fome, injustiça e violência.

Se o disco de Elza tem alguma irregularidade natural pelo fato de ser finalizado sem a presença da artista, “Iboru”, de Marcelo D2, é um daqueles trabalhos que surpreende pela coesão. Ainda que desde que saiu em carreira solo ainda no final dos anos 1990, D2 tenha se aproximado cada vez mais do samba, inclusive gravando um álbum só de versões de Bezerra da Silva em 2010, “Iboru” é uma imersão vertical e radical no samba, sobretudo o de extração carioca.

Iniciado no culto de Ifá, Marcelo D2 não apenas batizou o álbum com o termo iorubá que significa “que sejam ouvidas nossas súplicas”, como deixa explícita na sequência das faixas e nas participações especiais o sentido ritual que a música, sobretudo a percussiva dos tambores, tem nas festas e cerimônias das religiões de matriz africana.

Não à toa, uma das faixas mais impactantes é “Kalundu”, parceria de D2 com Kiko Dinucci, na qual participa o baiano Matheus Aleluia que, com os Tincoãs, foi pioneiro no registro de afoxés e “músicas de santo”. Outra colaboração essencial em “Iboru” é com o historiador Luis Antônio Simas, “Povo de fé” e “Pra curar a dor do mundo”.

Outras participações-homenagens que desfilam ao longo das 16 faixas trazem Zeca Pagodinho, Xande de Pilares, Alcione, Mumuzinho, B Negão e a banda Metá Metá. D2 caminha com desenvoltura entre tantas referências, mas não deixa de gravar versões, como a linda “Duras Penas”, de Douglas Lemos e Moacyr Luz. Em “Bundalelê (Carlos Sena, Otacílio da Mangueira, Xande de Pilares, Zeca Pagodinho), ouvimos a reverência e a pândega das rodas de pagode carioca.

Se o respeito e à reverência à ancestralidade histórica e musical guiam o mergulho de D2 nos sambas variados, o passado no rap e nas pesquisas musicais que marcaram sua carreira solo comparecem tanto nas levadas vocais do cantor como na meticulosa e criativa produção do álbum. As batidas “perfeitas” que conduzem o disco, a escolha cuidadosa de samples e colagens sonoras e, sim, graves para rapper nenhum botar defeito fazem de “Iboru” um disco com a lastro no passado, vibração do presente e que aponta para o futuro. •

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