Lula resgata o programa criado para levar atendimento ao interior e às regiões mais remotas. Estão inscritos 34.070 profissionais interessados em preencher uma das 5.790 vagas já abertas

Com número de inscrições recorde, o Mais Médicos volta com cara nova — e as mesmas velhas críticas. Relançado em março de 2023, a volta do programa destinado a levar profissionais de saúde a cidades e municípios fora dos grandes centros foi compromisso da campanha de Lula em 2022.

A versão 2023 do Mais Médicos encerrou as inscrições no último dia de maio com 34.070 profissionais interessados em preencher uma das 5.790 vagas já abertas. Além de 1.000 das vagas estarem situadas na Amazônia Legal, para fazer frente à crônica falta de profissionais de saúde da região e reforçar as medidas emergenciais destinadas a combater a crise humanitária dos povos originários,  outra novidade da versão 2023 é o fato de que a maioria dos inscritos, 58%, é de médicos brasileiros.

Outra mudança no programa é a prioridade para médicos com registro profissional no Brasil na destinação das vagas. Para aquelas que não forem preenchidas dessa maneira, serão chamados profissionais brasileiros formados no exterior ou estrangeiros que tem registro profissional para atuação no Mais Médicos conferido pelo Ministério da Saúde. Também diminui pela metade, de 8 para 4 anos, o prazo que os profissionais estrangeiros interessados em participar do programa tem para fazer o Revalida, o exame de revalidação do diploma.

Ponto de atrito entre algumas entidades médicas e o governo, a questão da validação de diplomas estrangeiros, seja de brasileiros que cursaram medicina fora do país, seja de estrangeiros, assombrou o Mais Médicos desde o lançamento. No desenho original do programa lançado pela presidenta Dilma Rousseff em 2013, médicos brasileiros ou estrangeiros que tinham feito a formação médica fora do país estavam liberados do Revalida.

A regra ensejou críticas de que tais médicos seriam profissionais “de segunda classe”, dado que universidades e faculdades de medicina no exterior podem ter estruturas curriculares diferentes. Ainda que o reconhecimento de diploma seja necessário para a prática da medicina no Brasil, o Mais Médicos previa essa dispensa da validação. Era uma medida emergencial para ampliar o atendimento em unidades de saúde em zonas rurais ou na periferia de grandes cidades para os quais, apesar dos incentivos do programa, muitos médicos brasileiros formados nos grandes centros não se apresentavam para trabalhar.

A situação ficou ainda mais hostil com a chegada de um grande contingente de médicos vindos de Cuba, país que se notabilizou pelo atendimento na atenção básica de saúde. Desde a chegada nos aeroportos, os “médicos cubanos”, muitos homens e mulheres negros, foram hostilizados por profissionais de saúde e estudantes de medicina. A alegação é que teriam uma formação mais precária que os médicos brasileiros e trabalhariam em regime análogo à escravidão. Isso porque que os salários do cubanos eram pagos por intermédio da Organização Pan-americana de Saúde — uma parte do salário voltava para o país de origem, para ser reinvestido em pesquisa médica.

Apesar dos ataques, o Mais Médicos transformou as comunidades por onde passou. Estudos mostraram que o programa atendeu  63 milhões de brasileiros. Isso equivale a 24,6% da população brasileira, em 4.058 municípios e 34 distritos indígenas. Até a extinção do programa em 2019, 18.240 médicos, entre eles mais de 11 mil cubanos, se inscreveram no programa. Pesquisas feitas com usuários apontavam índices de aprovação na casa de mais de 80%, alguns chegando a 90%.

O êxito do programa, no entanto, não impediu que a pressão corporativa e dos planos de saúde tomasse fôlego depois do impeachment de Dilma em 2016. Já no governo Temer, o então ministro da Saúde, Ricardo Barros, assumiu o compromisso de afastar os médicos estrangeiros, sobretudo os cubanos.

Na campanha de Bolsonaro à Presidência em 2018, marcada pelas fake news e pelo terror do “comunismo”, os médicos cubanos foram usados como munição para insuflar o discurso fascista. Ainda em 2018, Cuba se retirou do programa em função de mudanças de regras anunciadas por Jair Bolsonaro. E em agosto de 2019, foi substituído pelo Médicos pelo Brasil, um programa em tudo mais precarizado que o anterior, no bojo de uma série de medidas adotadas pelo governo da extrema-direita, como cortes brutais no orçamento da saúde, que deixaram o SUS sucateado e enfraquecido.

Quando o Brasil teve de enfrentar a pandemia do coronavírus, a sanha privatista e destruidora de programas bem sucedidos de governo anteriores teve consequências diretas na capacidade de atendimento aos doentes de covid na rede pública. Para além do negacionismo de Bolsonaro e das invectivas de seus ministros de Saúde contra a ciência, a falta de médicos nos lugares mais pobres quase provocou o colapso do sistema público. Mesmo com a dedicação mostrada por muitos profissionais de saúde, certamente acabou pesando no número de mortes que poderiam ser evitadas.

Além da covid, uma grande preocupação dos técnicos em saúde pública e epidemiologia durante o pior período da pandemia era com a explosão de casos de outras doenças que ficaram negligenciadas pela emergência sanitária que o Brasil atravessou entre 2020 e 2023. Com o SUS já sobrecarregado, a volta dos Mais Médicos é mais do que necessária para ampliar a cobertura de saúde onde ela se faz mais necessária.

De acordo com a ministra da Saúde, Nísia Trindade, as entidades médicas que reclamam da atuação de médicos sem diploma nem registro nos conselhos regionais de medicina devem reavaliar as modificações feitas para a versão 2023 do programa. “Já oferecemos um número maior de vagas de residência médica”, diz.

“O Ministério da Saúde é responsável financeiramente por cerca de 40% da residência médica no Brasil. Em relação ao Revalida, a própria medida provisória do Mais Médicos já reconhece que tal como vinha sendo feito no Brasil não traz nenhum resultado positivo, impede muitos médicos de prestar o exame, um número excessivo de horas de exame num dia, a própria questão da prova prática é um problema”, disse à Folha de S. Paulo.

O médico e ex-ministro Arthur Chioro, em artigo publicado na revista Carta Capital, assinala que, apesar do acerto do governo em voltar a investir na atenção básica ao reeditar o programa, não será fácil vencer as resistências. “A questão pega fogo, de verdade, porque o tema é nitroglicerina pura nos debates internos à corporação médica”, aponta.  •

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