A feminista mais perseguida do Brasil diz que o país está vivendo uma pandemia de ódio, disseminada pelas redes sociais e alimentada pelo bolsonarismo. “O masculinismo sempre esteve muito ligado ao olavismo e, depois, ao bolsonarismo e ao neonazismo também. São todos muito parecidos”, aponta a jornalista e pedadoga, especialista no discurso de ódio que se multiplica no submundo da web

Lola Aronovich é a feminista mais perseguida do Brasil — e isso não é um exagero retórico. Desde que começou a escrever o blog ‘Escreva, Lola, Escreva’, em 2008, a ativista se destacou nas redes sociais, com seus textos cheios de humor sobre cinema, feminismo e a própria rede.

À época, a então chamada blogosfera foi adotada como plataforma de publicação alternativa por dezenas ou centenas de pessoas em todo o Brasil e, à exceção do Orkut, as redes sociais que já existiam fora do Brasil, como o Facebook e o Twitter ainda não eram tão populares. 

O panorama deu uma guinada em 2011, quando usou pela primeira vez o termo “masculinista” — o que atraiu para sua caixa de comentários um enxame de homens jovens profundamente machistas e misóginos.

A vida da jornalista e pedagoga virou do avesso e ela passou a ser alvo de perseguição digital, de ameaça de agressão e até de morte. Hoje, no programa de proteção a testemunhas do Estado do Ceará, a professora universitária acabou se transformando numa especialista no discurso de ódio que se move pelo submundo da internet, sobretudo ao ódio dirigido às mulheres. Em 2018, projeto de lei da deputada Luzianne Lins (PT) que determinava que as investigações de crimes cibernéticos eram da alçada da Polícia Federal e não da Civil (pelo seu caráter interestadual e internacional) foi aprovado e recebeu o nome de Lei Lola.

Integrante do grupo de transição e atual colaboradora do Ministério dos Direitos Humanos nos grupos de discussão sobre os ataques às escolas, Lola concedeu entrevista à revista Focus  Brasil depois da verdadeira epidemia de ataques às escolas em todo o Brasil. Leia, a seguir, os principais trechos: 

ENTREVISTA | Lola Aronovich - “A cultura da violência é fruto da extrema-direita”

Focus Brasil — Como a cultura masculinista se amplificou nas últimas duas décadas?

Lola Aronovich — É difícil saber, mas certamente estão adorando esse clima de terrorismo. Ontem, vários alunos pediram para cancelar a aula ou dar aula online. Está acontecendo direto, nunca vi esse clima. Me lembrou de 2012, um mês depois que dois autores de um site de ódio foram presos. Era uma sexta-feira, 13, e começaram a circular boatos de que haveria um massacre na UnB, e parte da universidade fechou. Eles comemoram essas coisas. No Natal de 2020 comecei a receber telefonemas com ameaças de que eu seria morta, que eu não ia sobreviver até o Natal ou o Ano Novo. Para mim, isso é comum pelo menos desde 2011. Mas em 2020, notei que eram meninos mais jovens, de 13 a 15 anos. Era uma nova geração de ódio, o pessoal do Discord [plataforma de jogos compartilhados]. Nunca tinha ouvido falar, mas notei que era uma coisa nova e ali eles estavam. Eles usam os mesmos métodos que os mais velhos: um querendo incriminar o outro. O masculinismo tem crescido no Brasil e no mundo também por causa da eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, e do Donald Trump, em 2016. Eles veem que esses dois caras nunca foram punidos, muito pelo contrário: foram recompensados com a Presidência. Então, por que eles vão se esconder? Piorou muito de 2016 para cá e eles começaram a aparecer mais ainda para outras novas plataformas, como o Tik Tok.

— Pior no Twitter…

— Sim, no Twitter, eles veem o [Elon] Musk como um deles, um ativista de extrema direita que é dono do site. Outro dia, um grande site neonazista americano, que se diz o maior site nacional-socialista dos Estados Unidos, ganhou o selo de verificado do Twitter porque comprou, é só pagar que você ganha. Isso de ter o selo de verificado quer dizer que eles vão ter o conteúdo deles divulgado, vão ser privilegiados pelo algoritmo, ou seja, mais gente vai receber mensagens deles.

É extremamente preocupante, porque são sites neonazistas que começam a ser verificados pelo Twitter. Vimos outros exemplos: ao receber pedidos de entrevistas ou ter que responder para alguns jornais, como a BBC Brasil que mandou algumas perguntas para o Twitter (sobre a política de moderação da plataforma) e teve como resposta um emoji de cocô. Então, é assim que eles estão respondendo aos jornalistas?  E não é só no Brasil, é em todo o mundo. Isso é muito, muito preocupante.

— É possível estabelecer uma linha do tempo que mostre como surgiu, o desenvolvimento e como chegamos nesse ponto de violência organizada nas redes?

— Até 2010 os masculinistas se reuniam em comunidades de ódio no Orkut. E sempre copiaram os americanos, vejam o vocabulário: incel, red pill, que eles nem traduzem. Isso já existe faz tempo, mas a internet deu muita voz e espaço para essas pessoas que antes publicavam livros, um nicho de mercado realmente muito pequeno. Eles encontram espaço muito grande para as suas teorias conspiratórias, copiam exatamente aquilo que os americanos fazem.

Mas também não dá para negar a influência do Olavo de Carvalho na extrema direita brasileira. Ele foi fundamental para espalhar o ódio e as teorias conspiratórias. A primeira vez que vi esse negócio ridículo de que o “nazismo é de esquerda”, tipo de coisa que só surgiu com a internet, foi através do Olavo. Ele formou toda uma geração de extrema-direita extremamente importante, não só teoricamente, como no modo de agir. Ele dizia, por exemplo, que você nunca deve debater com uma pessoa de esquerda, mas sim destruir, odiar, tem que acabar com a reputação dessa pessoa. Esses foram os ensinamentos do guru, e Bolsonaro aprendeu muito bem. O masculinismo sempre esteve muito ligado ao olavismo e, depois, ao bolsonarismo e ao neonazismo também. São todos muito parecidos.

— Mas, e antes?

— O meu primeiro contato indireto com o masculinismo no Brasil foi em 2008, no caso Eloá. Não conhecia esse nível de misoginia antes de entrar na internet, para falar a verdade. Fiquei muito chocada e comecei a ver que existia esse movimento de ódio por parte dos homens. Os comentários eram tipo “Eloá virou presunto”, um bando de caras comemorando o assassinato de uma menina de 15 anos, saudando o cara [Lindemberg Alves Fernandes, o assassino de Eloá] como o herói deles, lamentando que ele não matou também a Nayara, que também foi feita de refém. Isso nessa comunidade do Orkut, que se declarava como comunidade dos homens de bem.

Desde o começo do meu blog [2008], os trolls eram pessoas odiosas, que queriam desvirtuar qualquer discussão, mas não eram ameaça. É diferente você chegar e xingar, me xingar, xingar leitoras. Em fevereiro de 2011, eu escrevi meu primeiro post sobre os mascus brasileiros. Era num tom informativo, porque, assim como eu nunca tinha ouvido falar deles, o meu leitorado também não. Escrevi sobre como eram esses caras, no que eles acreditavam e falando que, por enquanto, eles eram poucos, mas que eles tinham potencial para crescer e que poderiam ser perigosos. Isso atraiu muito comentários de masculinistas. Eles vivem num universo alternativo, no qual a verdadeira vítima do mundo é o homem branco e hétero, que a gente vive um matriarcado, não no patriarcado, que as mulheres dominam o mundo. É uma coisa muito longe da realidade. E eu fiz um post com as pérolas deles que chegaram até o meu blog.  Era um post de humor, na verdade. Nesse texto, primeira vez que eu usei o nome “mascu” em vez de falar de masculinistas. Eu dei um apelido para eles, mas o nome pegou e eles odiaram.

Meu bom humor não durou muito tempo, porque logo em seguida, em abril de 2011, teve o massacre de Realengo. Eu já estava seguindo algumas comunidades no Orkut e acompanhei essa discussão que o massacre causou entre eles. Foi um Deus nos acuda, porque o Wellington, que era o assassino, era um deles. Isso não tem dúvida nenhuma. Eles sabiam disso e trataram Wellington como um herói, um ícone. Só que eles ficaram apavorados também, porque eles não imaginavam que a Polícia Federal ia investigar alguns grupos por causa do evento.

Eles conheciam meu blog desde o começo, desde 2008. Eu que não sabia quem eles eram, mas eles já sabiam quem eu era. Esse site de ódio viralizou [site criado seis meses após o massacre de Realengo, em agosto de 2011]. Eles conseguiram ser muito bem-sucedidos em viralizar o blog. Ameaçavam todo mundo, tentavam criar ódio em todos os lugares. A gente denunciou muito, teve quase 70 mil denúncias na internet, mas foi uma dificuldade muito grande, porque a polícia não respondia, não falava nada.

— Seu relato de perseguição e dos processos é estarrecedor. Como se vive com isso?

— Por ora vivo bem, não me importo muito, estou acostumada. É horrível a gente se acostumar com isso, né? Mas me sinto segura também por estar no Nordeste. Antes de morar aqui, morei em Joinville (SC), fica há duas horas de Curitiba, onde eles foram presos. Curitiba virou um antro neonazistas, Santa Catarina também não fica atrás. Se eu morasse lá estaria com muito mais medo. Mas estou no Nordeste, onde 70% da população não votou no fascista.

— Tivemos pelo menos treze ataques em escolas aqui no Brasil desde 2011. Podemos afirmar que estamos vivendo uma pandemia de ódio disseminado pelas redes sociais? Você acha que essas ações que o governo federal começou a anunciar, depois dessa tragédia, vão ajudar a resolver?

— Realmente a gente está vivendo uma pandemia de ataques. Eles estão sendo muito bem-sucedidos em aterrorizar a população. Eles festejam, comemoram muito quando tem um ataque e quanto maior o número de vítimas, melhor. Mesmo quando não tem vítimas, só de só aterrorizar a população, só de provocar suspensão de aula um dia universidade, outro numa escola, os pais correndo para tirar os filhos e coisas desse tipo…

Eles já comemoram muito porque estão afetando a população e querem esse clima de terrorismo, de medo. E eles têm conseguido nessas últimas duas semanas. Têm sido horrorosas, infernais mesmo. E alguns dos ataques que a gente está vendo, estão sendo realizados com crianças, por meninos cada vez mais jovens. Já teve um que foi impedido que eram meninos de 11, 12, 13 anos com facas e machadinhas. Então, se a pessoa tem dificuldade para conseguir uma arma de fogo, pode ir adiante com arma branca. Além disso, há centenas de ataques que estão sendo impedidos pela polícia, que finalmente está monitorando vários grupos de ódio e, por isso, a polícia consegue impedir muitos ataques.

Em 2021, a polícia impediu cinco ataques no mesmo mês de maio, em vários lugares do país. E agora? Hoje eles fazem muito mais. Então, a polícia tem um serviço de inteligência que tem que ser usado a realmente monitorar esses grupos e poder fazer busca e apreensão. Eles colocam gente para atacar. Muito antes de acontecer, os autores dos ataques começam a colocar fotos de armas e símbolos ligados ao neonazismo, como suásticas. A gente está vivendo um clima de pânico e as pessoas estão sendo muito, muito afetadas. Eu estou vendo minhas alunas, alunos, outros professores, servidores, pais. Tá todo mundo em pânico mesmo. E isso é terrível, porque a gente está sendo contaminado por isso, virando refém do medo, porque ontem vários alunos pediram para eu cancelar a aula porque os rumores de que haveria um ataque em Fortaleza, no Ceará, eram muito fortes. Mesmo assim, a gente decidiu não cancelar as aulas. Senão, a gente fica refém. Basta uma pessoa ligar, para alguém fazer ou mandar um e-mail ou algo, um áudio com uma mensagem de ameaça, que pode cancelar as aulas na universidade ou numa escola? Não é por aí, tem várias medidas que estão sendo tomadas.

Está todo mundo desesperado, por que a gente está correndo contra o tempo. Em dezembro, fui uma das 12 pessoas do grupo formado para elaborar um relatório sobre massacres em escolas, para a equipe de transição do Lula na área de educação. Fizemos um relatório mapeando os ataques e dando algumas sugestões de como impedi-los. Agora, desde março, estou em outro grupo de trabalho com várias outras pessoas para propor medidas de combate ao extremismo e às fake News, formado pelo Sílvio Almeida, no Ministério dos Direitos Humanos. A gente está com um trabalho intenso. Reuniões longas, semanais. A de ontem foi justamente sobre violências nas escolas. 

Estamos tentando oferecer algumas sugestões relacionadas à saúde mental: já que vai ter que ter polícia nas escolas, que seja uma polícia com treinamento em direitos humanos, é o mínimo. E um monitoramento das redes sociais, a responsabilidade das plataformas. Hoje, por exemplo, foi lançada uma portaria nesse sentido. Acho muito bom e muito, muito importante. Eu disse que a gente está correndo contra o tempo porque cada ataque encoraja novo ataque também. Além de comemorar, eles tentam recrutar novas pessoas para fazer os ataques. Felizmente, não estão conseguindo armas de fogo. Esse foi um dos principais motivos que os levaram a votar em Bolsonaro. Ideologicamente, já estavam alinhados em 2018 e 2022, mas também teve essa promessa de ampliar ainda mais o acesso às armas de fogo. Agora, no governo Lula, quando viram que não é tão fácil conseguir, estão bem decepcionados, mas conseguiram dar um jeito, estão começando os massacres do jeito que dá, de qualquer jeito. Eu nunca vi esse nível de pânico. É paranoia, é clima mesmo de terrorismo. Espero que a gente consiga reverter isso e ter alguma tranquilidade, porque a extrema direita surfa nessas pautas e começa a falar altas besteiras ao mesmo tempo que nos criminaliza como professores e criminaliza os direitos humanos. Mas a gente vai ter que adotar algumas pautas que vêm de projetos deles, como polícia nas escolas, detector de metais. Não é a hora da gente se opor a isso, porque toda a população está em pânico. E é a coisa mais visível e fácil de fazer. A coisa mais difícil é você fazer um trabalho de saúde mental com psicólogos nas escolas, criar disciplina de direitos humanos nos quais os adolescentes possam conversar sobre isso, sobre o que veem nas redes sociais. Isso é difícil. Isso é o que eu acho que deve fazer, daria mais certo a médio e longo prazo.

— Você mencionou a constatação de que os ataques às escolas vêm sendo feitos por agressores cada vez mais jovens, crianças. A mudança de faixa etária está associada a outras alterações no modus operandi desses agressores?

— Um artigo do New York Times mostrou que, até 2000, a maior parte dos ataques (não só a escolas e universidades, mas também a lanchonetes e escritórios) era cometida por homens de 25 a 45 anos. Nos últimos anos, a faixa etária principal de quem realiza massacres está entre 18 e 25 anos. E muitos dos últimos ataques nos EUA e aqui foram realizados por menores de idade. Quanto mais jovens, mais difícil é conseguir armas de fogo. Há também uma vontade de chamar a atenção usando armas inusitadas, como machadinhas, arco e flecha.

— O blog ‘Escreva, Lola, Escreva’ foi pioneiro e transformou-se em um marco importante no ativismo feminista digital. Podemos pensar que a internet facilitou o surgimento de vozes femininas variadas, possibilitou a formação de redes ao largo de partidos políticos e da academia, e até inspirou movimentos como o #MeToo e o #EleNão. Como essa amplificação dos temas e das agendas feministas bateu nesse submundo masculino e incel [subcultura virtual que se definem como incapazes de encontrar um parceiro romântico ou sexual, apesar de desejarem ter]?

— Assim como a internet ajudou e ajuda muito no ativismo e na divulgação de direitos humanos, ela também foi um trampolim ideal para a explosão do neonazismo, do negacionismo da ciência, das piores teorias da conspiração, do masculinismo, da pornografia infantil. Enfim, de muita coisa ruim. Os grupos misóginos combatem o feminismo e o deturpam completamente. Na maior parte das vezes não conseguem argumentar contra pautas reais dos feminismos, precisam inventar. Por exemplo: inventam que feministas encorajam que mulheres grávidas, que sabem que seu feto é menino, abortem. Nunca vi feminista defender uma sandice dessas. Mas mascus fizeram um blog falso no meu nome pregando que nós feministas queremos abortar fetos masculinos e matar e castrar meninos. Lembro de um meme que até hoje aparece de mulheres na praia com o biquíni manchado de sangue como se fosse uma celebração da menstruação. Esse meme e tantos outros foram criados num chan [fóruns de ódio e violência em geral] misógino.

— A responsabilidade da imprensa e das plataformas no crescimento das manifestações de ódio está mais do que clara. Depois do ataque de Blumenau, dois grupos da mídia corporativa, o Grupo Globo e o Estadão, tomaram decisões de não publicar imagens e outras informações sobre o ataque, para não causar o efeito de mimetização. A Folha defendeu posição contrária. As plataformas se mostraram mais avessas a retirar conteúdo num primeiro momento, mas estão também retirando. Quais outras medidas devem ou deveriam ser adotadas pela imprensa?

— Entendo que divulgar imagens dos atentados e o nome dos autores pode encorajar outros a imitar. Mas a função da imprensa é também informar. Informação é fundamental para a sociedade que quer combater o ódio. Não é possível medir o que vai ou não ser noticiado baseado apenas em como essa informação afetará grupos de ódio — grupos que de um jeito ou de outro saberão dos massacres em mínimos detalhes, até porque muitos desses massacres são planejados e comemorados nesses grupos. Para quem pesquisa, é extremamente difícil conseguir informações. A polícia, por exemplo, raramente dialoga com a população.

Com as plataformas é diferente. Elas realmente lucram com o ódio, por isso não têm o menor interesse em remover ou restringir canais criados por grupos de ódio. Algo que é importante, e que muitas vezes a imprensa não faz, é contextualizar. Não dá para tratar cada massacre como ato isolado. É preciso analisar que eles seguem um padrão. Eu me lembro que, entre 2016 e 2018, um mascu (que está preso há 5 anos) lançava sites com guias de estupro. A cada dois, três meses, lançava um novo “guia”: “como estuprar vadias na UnB”, “como estuprar vadias na USP”, “como estuprar vadias na UFC”, etc. E era basicamente o mesmo conteúdo, o mesmo layout, só mudava a universidade. Só que cada jornal de cada região dava destaque para a universidade daquela região, sem mencionar que, dois meses antes, havia um outro site falando de outra universidade. Espero que as polícias não tenham agido como a imprensa e iniciado uma nova investigação a cada novo site. A imprensa precisa conversar com especialistas, a polícia também.  •