Protestos na terra santa
A fúria nas ruas de Jerusalém obriga Benjamin Netanyahu a recuar na proposta de reforma do Judiciário. E os EUA engrossam o coro dos descontentes. A democracia está em risco em Israel
O mundo assistiu, entre chocado e perplexo, a eclosão de violentos protestos em Israel, com ataques furiosos de jovens e militantes que temem a derrocada da democracia liberal que foi montada no Oriente Médio. O mais surpreendente, contudo, foi o duro recado da Casa Branca ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. O presidente Joe Biden disse sem rodeios que o governo israelense — que sempre contou com o apoio tácito e a mão amiga de Washington — “não pode continuar por este caminho” de reformar o judiciário de seu país.
Na noite de domingo, 26, Netanyahu demitiu o ministro da Defesa, Yoav Gallant, que havia rompido com o governo na reforma do Judiciário. Em seguida, a Casa Branca anunciou que Biden havia advertido Netanyahu que os valores democráticos “sempre foram, e devem permanecer, uma marca registrada do relacionamento EUA-Israel”. Grandes mudanças no sistema, disse Biden, só devem “ser buscadas com a base mais ampla possível de apoio popular”. O alerta foi um tom acima do razoável. Em geral, os EUA não interferem na política interna de aliados.
Ao propor a reforma judiciária, Bibi jurava que estava operando para restaurar o equilíbrio de poder entre legisladores eleitos e juízes não eleitos. “Não é o fim da democracia, é o fortalecimento da democracia”, disse há duas semanas, antes da enorme onda de protestos e distúrbios civis explodirem no território de Israel. A manifestação nas ruas o surpreendeu. Os protestos mostraram o nível de insatisfação da população israelense que acordou para os riscos à democracia que o projeto do primeiro-ministro representa.
Ao New York Times, o professor de direito da Universidade Reichman, em Herzliya, onde vive a comunidade diplomática internacional, declarou que os riscos são evidentes e Bibi tenta reproduzir um regime autocrático que mina as instituições de Justiça. Isso ocorreu em outras nações e até mesmo extremistas como Jair Bolsonaro tentaram desacreditar o Judiciário pelo contrapeso às ameaças de um Executivo hipertrofiado. “Estudamos essa dimensão da chamada reforma do Judiciário na Hungria, Polônia e Turquia, e sabíamos o que estava por vir”, disse Yaniv Roznai. Ele faz oposição ferrenha a Bibi.
Roznai fala há meses sobre o “risco de criar um monstro”, eliminando os tribunais como um controle eficaz da regra da maioria. Na Hungria, por exemplo, o primeiro-ministro Viktor Orban e seu partido conservador Fidesz venceram as eleições nacionais em 2011 e fizeram uma série de mudanças legalmente permitidas na Constituição. E começaram mudando o processo de nomeação de juízes para dar ao Parlamento mais poder para preencher as vagas, assim como Netanyahu propôs.
Orban alegou que estava “fortalecendo” a democracia. Ele disse que dar ao parlamento o controle das nomeações judiciais alinharia a Hungria com o método de seleção de juízes federais nos Estados Unidos. Os aliados do governo israelense também invocaram os Estados Unidos como modelo para seu plano de nomeações judiciais. “Veja o que acontece nos EUA”, disse o ministro da Justiça de Netanyahu, Yariv Levin. “Nos Estados Unidos, os juízes da Suprema Corte são nomeados pelo presidente e confirmados pelo Senado”. No Brasil também. Mas a situação é distinta.
Benjamin Netanyahu e a coalizão linha dura que o apoia também propuseram a redução do poder do Judiciário, dando Knesset — o legislativo —, o poder de anular as decisões da Suprema Corte de Israel por maioria de votos. É como assegurar que a maioria legislativa permitisse ao governo suspender os efeitos de uma decisão que desagrade o governo. Um risco.
Vale lembrar que Israel não tem uma Constituição, como o Brasil ou os EUA. E o Legislativo no país só dispõe de uma casa — o sistema é unicameral. Nos Estados Unidos, como no Brasil, há duas casas legislativas, cada uma podendo controlar o poder da outra. Também não há separação clara entre os poderes executivo e legislativo e nenhum sistema federalista que delegue certos poderes a estados ou províncias. “O poder político está concentrado em uma legislatura”, diz Roznai.
O poder pode acabar em apenas algumas mãos. “Os ministérios do governo são liderados pela liderança da coalizão, que pode ser de cinco ou seis políticos que controlam seus próprios partidos”, disse o professor Roznai. “O governo da maioria é a essência da democracia. Mas não é uma condição suficiente”, lembra. “Você precisa de alguma separação de poderes, alguma independência judicial, alguma proteção de direitos”. •