Autor do livro “PT, uma história”, o sociólogo faz um balanço dos 43 anos da legenda da estrela vermelha, apontando os acertos na formação do partido. “A entrada de um partido que se organizou fora do Estado no jogo político brasileiro mudou completamente a configuração das outras peças e fortaleceu a regra do jogo”, diz

O sociólogo Celso Rocha de Barros começou a escrever “PT, Uma História” no início do governo de Jair Bolsonaro. Depois de dar conta de uma extensa bibliografia sobre o Partido dos Trabalhadores, Barros percebeu que havia lacunas a serem preenchidas com entrevistas. E aí o que era para ser um ensaio virou um livro de 485 páginas, entrevistas e muitos personagens da formação da legenda resgatados em histórias reais sobre a constituição de um partido político na periferia do capitalismo. Para ele, aos 43 anos, o partido tem muito a comemorar. “O PT deu certo”, diz. Leia a seguir trechos da entrevista à revista Focus Brasil.

Focus Brasil — De onde veio a ideia do livro? O livro já estava na sua cabeça, você queria fazer de qualquer jeito e aí a editora topou?

Celso Rocha de Barros — A editora tinha me procurado mais ou menos em 2017 para 2018 perguntando se eu tinha uma proposta de livro, o [Luiz] Schwarcz gostava das minhas colunas na Folha. Também tinha feito um texto grande sobre os diários do FHC, na Presidência, para a Piauí, que acho que os caras gostaram e aí eles queriam saber se eu tinha uma ideia. Eu tinha, mas era uma ideia de um ensaio bem mais curto sobre a crise da democracia brasileira, que iria de 2013 até o impeachment.

Também queria aproveitar para contar uma história que eu já tinha mais ou menos na minha cabeça, de coisas que li, que fui pensando — um certo modelo de como a política brasileira funciona, como foi a nova República etc. E, inclusive, falando do PT. Só que aí Bolsonaro ganhou a eleição. Aí o Ricardo [Teperman, editor] me chamou para conversar e eu falei: “Cara, não dá para fazer um livro sobre a crise da democracia brasileira porque o Bolsonaro ganhou e agora que vai vir mesmo a crise da democracia brasileira”. Aí fomos conversando e ele sugeriu: “Está mais clara para você a discussão sobre o PT. Por que você não faz sobre a história do PT?” Este livro que saiu é daqueles que você quer escrever porque é um que você gostaria de ler. Tem bons livros sobre o PT, mas sentia falta de um negócio mais global. Topei na hora e adorei escrever o livro. Às vezes eu sinto saudades de escrever esse livro. O processo durou mais ou menos o tempo de duração do governo Bolsonaro. Era meio que uma terapia, porque ao meu redor tudo estava indo pro buraco e, ao mesmo tempo, eu estava lendo sobre Diretas Já, Constituição de 1988, o Plano Real, o Bolsa Família, a Lei de Cotas… Serviu para me impedir de desistir da democracia brasileira porque tinha muitas histórias boas.

O projeto do livro mudou muito ao longo da execução, porque no começo eu ia fazer um ensaio curto, discutindo a questão de como é que se faz um partido de tipo social-democrata na periferia do capitalismo, num país subdesenvolvido, como funciona o viés conservador da democracia brasileira etc. Acho que preciso dizer que eu fui militante do PT do final da década de 1980 até o final da década de 1990 e rompi porque parei de fazer política partidária, fui para a vida acadêmica.

Eu sabia que tinham coisas muito importantes, como, por exemplo, a Constituinte, que não estavam em nenhum livro desses mais conhecidos sobre o PT. Aí resolvi fazer umas entrevistas para fechar essas lacunas. Quando fui fazê-las, comecei a achar as histórias muito boas. E decidi: “Eu vou contar essas histórias. Vou enfiar as discussões enquanto conto essas histórias”.

— É bonito você começar o livro falando sobre o movimento contra a carestia e com a Irma Passoni, porque tem figuras que ficaram esquecidas dentro do PT…

— E são figuras sensacionais. Tem que ter filme, tem que ter série. E a Irma, cara, uma mulher que era freira e depois foi lá fazer esse negócio todo na periferia, se aproximou do PCdoB e… Aí se elege deputada… É uma trajetória sensacional, e assim, é o que você disse se você não for não só do PT, mas se não conhecer a história de algumas décadas atrás, você não sabe da importância que teve a Irma Passoni.

— Você disse que fez política partidária dentro do PT entre 1980 a 1990. Isso foi no Rio de Janeiro?

— Começou no Rio, quando eu era secundarista ainda e uns amigos meus me levaram para as reuniões do movimento secundarista. Me amarrei naquilo, mas nem participei muito do movimento em si porque aí logo já estava começando a campanha de 1989 e eu tirei o ano para aquilo. Foi uma das grandes coisas que fiz na vida. Quando acabou a campanha, lá na Cinelândia tem uma praça que tem que a gente chama de “brizolândia”, porque tinha um monte de barraquinha que vendia material dos partidos e o [Leonel] Brizola era muito forte no Rio. Fui na barraquinha lá que vendia coisa do PT e perguntei “Onde é que eu me filio?” E aí me indicaram, me filiei, passei a participar no núcleo Copa-Leme, que é um núcleo sob forte influência da Benedita da Silva, porque tem o Morro Chapéu Mangueira aqui perto. Quando fui para a  Unicamp e aí, sim, eu fiz movimento estudantil. Fui coordenador de centro acadêmico do IFICH, era aluno do Marco Aurélio Garcia. E ele levava a gente para reuniões. A gente viu a confecção do plano de governo de 1994, por exemplo, participamos daquilo tudo. Foi a época que eu mais militei. Depois, eu fui indo para a área acadêmica, mas não tive ruptura traumática.

— Notei no começo uma leitura quase tucana do que é o PT. Você discute muito a formação do PT com o Fernando Henrique [Cardoso]. O que FHC ainda tem a dizer sobre o PT?

— Ele tem muita coisa a dizer. A entrevista com ele foi muito boa. Nos anos 1970, você tem que considerar FHC, ou do mesmo campo que o pessoal do Lula ou até à esquerda deles. A gente não pode projetar para os anos 1970 o que foi FHC nos anos 1990, um presidente centrista etc. Tem um texto que ele publicou na Versus, que é uma revista que era da Convergência, que tem  muito a ideia de partido que depois embasaria a criação do PT, entendeu? E, cá entre nós, o grupo dele no PMDB só não formou um partido junto com o pessoal que foi do PT porque a ditadura fez a reforma partidária antes de acabar. E aí aquela galera toda do PMDB pensou “até acabar a ditadura a gente continua aqui”. Boa parte da esquerda do PMDB já era de outras organizações.

FHC naquele momento não é um observador de fora, ele é um cara desse campo. É um participante daquilo. Nos anos 1980, quando aí já começa a divergência clara entre PT e PMDB, o diálogo ainda é muito frequente, entre caras como ele e os intelectuais do PT.  Na entrevista, tive a impressão de que FHC gostou bastante de conversar sobre essa época da vida dele. Talvez não tenha muita gente que pergunte a ele sobre isso. Foi legal. Acho que é errado projetar para os anos 1970 a briga do PT com FHC nos anos 1990.

— Mas já  tem uma disputa de poder, de liderança  ali…

— Teve uma disputa de poder para saber como ia ser a criação do novo partido. FHC era uma pessoa importante, mas não era tão central. Quem conduziu muito aquilo foi Almino Affonso, que é uma figura importante do período democrático anterior, que, realmente, partiu para tentar construir um partido de esquerda no Brasil dos anos 1970 aos poucos, fazendo reuniões na casa dele, tentando fazer pontes com os exilados, com Brizola, com [Miguel] Arraes.  Sobre essa disputa de poder, FHC mesmo é o primeiro a dizer que não teve essa fusão do pessoal que fundou o PT com a esquerda do PMDB por causa da discussão sobre quem ia mandar… Eu acho que não é só isso. Se perguntar para outras pessoas, você vai ver que tinha uma questão de fundo, que era o fato de a ditadura não ter acabado. Vários setores que avaliavam que a hora de construir um partido separado do PMDB seria quando os militares saíssem do poder. De fato, depois, quando [os militares] saíram, aí o PSB fez o seu, o PCdoB fez o seu etc. Eu acho que até que a resultante dessa briga foi boa: ficar um pessoal de esquerda no PMDB, puxando o PMDB mais pra lá e o PT do lado de fora, enchendo o saco. Ficou com um equilíbrio bom para aquele período.

— Sim, porque a gente estava realmente saindo de um período sangrento, horroroso, em que construir a democracia era uma coisa ainda frágil. Nos anos 1980, o tempo inteiro você achava que “vai acontecer alguma coisa esquisita” porque não estava nada garantido…

— É. O Zé Dirceu contou na entrevista, por exemplo, que no começo dos anos 1980 ele já dava entrevista, tinha cargo na Assembleia Legislativa, mas ainda tinha um plano B para voltar à clandestinidade. Os caras não sabiam se ia dar certo. A política interna do Exército é muito difícil de acompanhar para quem está fora. Você nunca sabe se um general maluco lá, golpista, vai derrubar o que tinha conduzido a transição. Era realmente complicado. O partido do Genoíno (PCBR), uma tendência do PT que ficou com esse nome, usava “nome de guerra” na maior parte dos anos 1980 para não vazarem os nomes reais. Eles não se identificavam publicamente como membros do partido, ainda tinham medo que houvesse um retrocesso. Da mesma forma que estava falando no caso do FHC, a gente não pode dizer assim, já que a transição deu certo, então, desde o início era óbvio que ia dar certo. Claro que não. De jeito nenhum.

— Você falou sobre FHC e é uma figura, vamos dizer, com a qual a mídia sempre convergiu bastante. Muito mais do que com o PT. No ano passado, entrevistamos a Eleonora de Lucena. Ela mencionou que em 2010, 2011, a então presidenta da ANJ [Judith Brito] fez um discurso público dizendo que no Brasil não existia oposição e que então a mídia tinha que ser a oposição. Você conseguiu analisar um pouco sobre essa questão da relação da mídia com o PT?

— Isso tem duas dimensões. Primeiro que a mídia brasileira tem um viés de centro-direita. Não é um viés conservador no sentido do Olavo [de Carvalho], do Bolsonaro etc. As grandes publicações não são homofóbicas ou, pelo menos oficialmente, não são. Você pode ter reportagens que sabem que reproduzem estereótipos, mas não é um jornalismo de militância pelo conservadorismo moral. Os grandes veículos têm um viés a favor de uma visão liberal de economia. A Inglaterra deve ter o melhor jornal de esquerda do mundo, que é o Guardian, mas só existe o Guardian porque é uma história que começa com a imprensa operária, tem um monte de reorganizações daqueles jornais voltados para o público de esquerda, que se desenvolvem e chega num volume de leitores que tem como funcionar não exatamente como a imprensa capitalista. Se não me engano eles são uma fundação, uma coisa dessas. Mas para fazer a fundação, tinham uma grana oriunda de vender jornal para fundar aquilo e organizar. E aí eles funcionam.

No Brasil tem essa questão de que a comunicação de massa começa antes da alfabetização. Você tem a indústria de comunicação de massas, sobretudo, com rádio e televisão, que é um negócio bem mais difícil de começar artesanalmente e ir crescendo, principalmente, a televisão. É muito difícil você achar no mundo um canal de televisão que não seja de um empresário muito rico, que naturalmente vai ter sua visão refletida ali de um jeito ou de outro.

Seria totalmente primário achar que a mídia empresarial viva exclusivamente para reproduzir os interesses dos chefes. Isso é mentira porque tem um público que precisa consumir a mídia e esse público quer jornalismo, apuração… Então, oferecem, mas a gente não sabe o quanto. Até está em questão isso agora por causa das fake news mas, certamente, houve pelo menos um público que topava pagar uma parte da sua renda por informação para estar dentro do debate nacional. É um equilíbrio difícil, inclusive dentro dessas empresas. E há concorrência. Onde há concorrência abre-se mais espaço.

Qual o lado bom de você não ter mídia? Primeiro, tem uma certa autocomplacência que percebo muito nos meus amigos tucanos: quando se tem mídia a favor é que você acha que está tudo certo, que você é “bonzão”, sabe tudo… E isso é ruim para você, para sua estratégia. Com a esquerda, isso não tem risco de acontecer. É muito difícil de a gente se fechar numa bolha porque tem grandes organizações de comunicação furando a bolha o tempo todo. Acho isso bom. A outra coisa é que obriga a gente a entrar no debate de ideias mais preparado. No espaço que você tiver, vai ter que entrar e ter o que dizer. Esses caras da Jovem Pan que são comentaristas, se fossem de esquerda, estariam desempregados, a barra pra eles é muito mais baixa. Agora, a relação do PT com a mídia já flutuou. Se você pegar o começo do governo Lula, era muito menos hostil. A briga começa mesmo no mensalão. E aí eu acho que tem um aspecto, um diagnóstico de que o PT ia acabar e teve gente que começou a dobrar essa aposta e deu errado.

— No levantamento, você viu mais sobre a importância do PT para a história da democracia brasileira e, ao mesmo tempo, ser um partido que publicamente sofre muito, ainda hoje, com acusações de ligação com regimes autoritários, aspirações autoritárias… A imprensa brasileira sempre esteve ali na linha do “ah, não porque o PT apoia ditaduras…”, como se houvesse qualquer traço dentro do partido de aspiração ditatorial.

— O PT foi um dos artífices da construção da democracia brasileira e até os adversários mais esclarecidos sabem disso. Uma parte importante da democracia em qualquer lugar do mundo e no Brasil é a sociedade civil. O PT teve uma participação imensa na construção da sociedade civil brasileira, dos sindicatos e dos movimentos. Você não conta a história do sindicalismo brasileiro sem falar do PT, do feminismo, do movimento LGBT, do movimento negro. Não conta nada disso sem falar do Partido dos Trabalhadores. Isso aí ninguém discute. Se pegar a atuação dos petistas na Constituinte, foi muito bem feita, porque era pouca gente. Teve que ser bem organizado para distribuir os cargos nas comissões. Conseguiram emplacar Plínio de Arruda Sampaio na comissão que criou o Ministério Público. O PT não tinha direito, pelo tamanho, a indicar alguém para ser presidente de comissão, mas o Ulysses [Guimarães] conversando com os caras do PT, bancou botar o Plínio. E o PT promoveu basicamente a única alternância de poder pacífica que o Brasil teve até hoje, que foi em 2002. Então, sobre isso não há o que discutir.

— Em que medida você acha que, na transição do Lula para a Dilma, teve uma reorganização de forças da centro-direita e da direita? 2016 foi golpe?

— Vou ser honesto. Não estou disposto a morrer por nenhuma dessas posições nesse debate, não. Impeachment é um troço que tem que ser feito com prudência. Não é para fazer toda hora, porque na fronteira entre isso e um golpe tem uma área cinzenta. Bem ou mal, quem ganhou a eleição vai ser retirado do poder. Tem casos em que, obviamente, não é golpe. E sempre tem casos que vão ser controversos. Pessoalmente, prefiro guardar “golpe” para isso que o Bolsonaro queria fazer, um assalto ao poder. E por que, em parte também, a minha visão sobre política talvez seja um pouco cínica, meio que supõe que vai ter conspiração, traição, que as regras vão ser distorcidas quando isso for possível para um dos lados… O impeachment, claramente, foi uma falcatrua, um estelionato total e obviamente não devia ter sido feito. Aquilo não tinha absolutamente nada a ver com combate à corrupção, nem com proposta para fazer o Brasil crescer. Foi o sistema político que recebeu uma porrada com o negócio da Lava Jato e chegou à conclusão que era mais fácil se reorganizar com o Temer na Presidência do que com a Dilma. Nada daquilo que o pessoal falava em defesa do impeachment se confirmou. Era mentira. Mas ainda prefiro guardar “golpe” para esses casos que os caras tentaram fazer no 8 de janeiro, mas obviamente não tem uma definição que todo mundo seja obrigado a usar sobre golpe. Eu acho que isso sempre vai ser um debate. 

— Tem uma coisa muito bonita no seu livro, que você já mencionou aqui, que foi botar em relevo o que se chama hoje em dia de movimentos identitários. Por que essa história perpassa o livro como um todo?

— Isso era uma das coisas que queria fazer desde o começo. Tem bons livros sobre o PT, agora eu queria um livro que contasse a história institucional do partido, mas também trazendo a coisa dos movimentos, porque isso pode não ser tão comum na literatura sobre partidos políticos, mas no caso do PT tem que entrar isso. Você pode até, de repente, contar a história do PFL sem falar de movimentos sociais, mas não a do PT. O PT tem uma singularidade, ele parece muito com um partido social democrata do final do século 19, quando ele começa. Todos os europeus notam isso na hora. Perry Anderson nota isso, Eric Hobsbawn e os sindicalistas de lá também. Mas no século 20, cem anos depois, tinha debates novos.

O PT acaba que, além de fazer um papel um pouco de partido social-democrata, faz um pouco de papel de Partido Verde europeu. O PT já nasce com pauta feminista, com a pauta do movimento negro. Se você for olhar o tamanho do debate LGBT no PT no começo, pode ser pequeno, mas é o único partido que tem debate sobre isso. Nessas discussões, o PT é realmente pioneiro. No caso do movimento negro, o PT divide esse pioneirismo com o PDT. O PDT tem uma participação fundamental na história do movimento negro brasileiro. O PDT se tornou uma força hegemônica no Rio de Janeiro e lá o movimento negro era particularmente forte. Eles roubam do PT uma liderança negra que era importante que é Lélia Gonzalez. Não tem como contar a história do partido sem a história desses movimentos. Eu não gosto desse negócio de identitário, pode ser que tenha uma  reflexão teórica por trás disso, mas… O Genoíno, por exemplo, falava como “pautas libertárias”. Eu acho melhor.

Agora, é óbvio que sempre vai ter tensões e sempre foi uma pancadaria para saber se vai levantar essa bandeira ou não. Se isso tem público, não tem. Se isso vai prejudicar aquela outra bandeira, mas isso é normal. Isso tem que ser tratado como normal. Se você não está brigando pra saber se é hora de trazer uma pauta, você está fazendo errado. Os movimentos têm uma perspectiva, que são diferentes da do partido. O movimento fala só para aqueles caras ali que fazem parte do movimento e tenta representá-los diante da sociedade. O partido tem que fazer uma costura mais ampla. Isso sempre vai ser controverso.

Tem uma certa literatura de esquerda, que eu acho meio saudosista, que fala: ‘olha só antigamente tinha uma pureza dos movimentos e depois virou um partido institucional como os outros’. Então, é um partido institucional, mas é o partido que passou a Lei de Cotas. Só passou no Supremo [Tribunal Federal], as cotas e a igualdade matrimonial, quando você já tinha maioria de indicados para o Supremo pelo PT.

O que a Marina Silva fez no Ministério do Meio Ambiente é um negócio absolutamente imenso. Aquela alta das commodities ajudou a economia no governo Lula, mas prejudicava o combate ao desmatamento porque passou a valer muito dinheiro abrir pasto. O esforço para frear o desmatamento era mais difícil do que em outras épocas e foi de longe a era de ouro do combate ao desmatamento. Então, os movimentos sociais, obviamente, vão continuar a ter um monte de reclamação para fazer para o PT, tá certo, é assim mesmo que tem que ser, mas valeu a pena a aposta que eles fizeram de construir um partido.

— Você acha que existe a possibilidade de o PT estabelecer uma nova relação com a sociedade brasileira? Ou as rusgas que sempre existiram vão continuar aí e a gente vai continuar nessa divisão eterna?

— Eu acho que, por exemplo, no caso da Marina, no meio ambiente sempre vai ter disputa, porque os problemas são complicados. Você vai fazer Belo Monte ou não vai? Eu respeito as posições, mas não é fácil, não. Não é um debate trivial. Vai ser complicado, vai ter disputa, porradaria, às vezes o nível vai baixar, mas é assim no mundo inteiro.

A questão de polarização é um pouco mais complicada. O governo Lula tem que trabalhar, pelo menos, para diminuir a temperatura da briga política no Brasil. Esse nível de conflito que a gente tem, vem por causa do Bolsonaro sozinho, é bom que se diga isso, não é um negócio de dois lados. Esse tipo de conflito, obviamente, é disfuncional para o povo brasileiro. Acho que vai ter que ter esse diálogo com o centro mesmo. E, por acaso, no momento, tem várias pautas com as quais dá para fazer esse diálogo tranquilamente e terminar o mandato com uma disputa eleitoral normal. Aí o centro vai ter seu candidato, a esquerda vai ter o seu. Maravilha. Mas tem uma série de pautas que dá para implementar porque tem espaço para consensos. Os primeiros sinais dados pelo [Fernando] Haddad me sugerem, claramente, que ele entende isso com a questão da reforma tributária. Vai ter disputa, mas, novamente, nunca vai acabar a disputa. Esse não é o objetivo. E como fazer isso? O Brasil precisa sair desse crescimento baixo, precisa atender a emergência social deixada por Bolsonaro e curar as feridas que o bolsonarismo fez na nossa democracia.

— PT 43 anos, o que temos a comemorar?

— Tem muito a comemorar. O PT deu certo. Assim, obviamente, você pode dizer: “Pô, mas teve um monte de problema, teve Petrolão. Teve, sei lá. A nova matriz econômica deu errado. Teve uma época que era muito sectário”. Tudo bem, teve tudo isso, mas o saldo para a democracia brasileira é gigante. A entrada de um partido que se organizou fora do Estado no jogo político brasileiro mudou completamente a configuração das outras peças e fortaleceu muito a regra do jogo, porque se a direita sempre ganha como era antigamente, as instituições são fracas porque as instituições são completamente aparelhadas pela direita.

Quando há alternância de poder, aí as instituições começam a funcionar. Pelo simples fato de ter garantido a alternância de poder em termos democráticos, no Brasil, pelas políticas de combate à pobreza dos governos Lula e Dilma, pela política de combate ao desmatamento, pela indicação de ministros para o Supremo que bancaram igualdade matrimonial, cotas raciais… A lista de realizações é muito impressionante, mesmo se você descontar os erros que são reais. E eu não acho que o partido deva se enganar sobre isso. O partido não tem que olhar para o escândalo da Petrobrás e dizer que é só conspiração da CIA. Tem que dizer “olha só, teve desvio mesmo e vamos ver o que aconteceu aqui pra isso não acontecer de novo”. Isso aí tem que acontecer. Mas, no balanço geral, foi amplamente positivo.  •

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