QUEBRA-QUEBRA Bolsonaristas raivosos tiveram apoio de elementos das forças policiais e não chegaram a ser incomodados no QG do Exército

Reportagem do Washington Post revela o surpreendente comportamento das autoridades e mostra as razões para as suspeitas do governo Lula sobre o que ocorreu em 8 de janeiro

Anthony Faiola, Samantha Schmidt e Marina Dias | Washington Post

Enquanto as forças de segurança retiravam os apoiadores do ex-presidente derrotado Jair Bolsonaro do Congresso, Palácio do Palácio e Supremo Tribunal Federal no domingo, 8, os insurgentes se deslocavam para um lugar que fizeram de santuário: o gramado do lado de fora do quartel-general do Exército, em Brasília.

Os bolsonaristas estavam acampados no amplo espaço verde desde a derrota do líder de direita nas eleições de outubro para Luiz Inácio Lula da Silva. Como o próprio Bolsonaro, eles se recusaram a reconhecer a vitória de Lula, mesmo depois que o novo presidente foi empossado em 1º de janeiro. Durante semanas, convocaram os militares a dar um golpe para manter Bolsonaro no poder.

Essa era uma ideia que observadores dentro e fora do Brasil consideravam absurda. Mas quando altos funcionários do governo Lula chegaram ao quartel-general do Exército na noite de domingo com o objetivo de garantir a detenção de insurgentes no acampamento, depararam-se com tanques e militares.

“Vocês não vão prender gente aqui”, disse o comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, ao novo ministro da Justiça, Flávio Dino, segundo duas autoridades presentes.

Esse ato de proteção, que funcionários do governo Lula dizem ter dado a centenas de insurgentes tempo para escapar da prisão, é uma das várias indicações de um padrão preocupante que as autoridades estão investigando agora como prova de suposto conluio entre militares e policiais e os milhares de manifestantes que invadiram as instituições no coração da jovem democracia brasileira.

Essas indicações também incluem uma mudança no plano de segurança antes que os rebeldes se reunissem em frente aos prédios federais no domingo, diante da inação e confraternização de policiais quando começaram a entrar nos prédios e a presença de um oficial superior da PM que havia dito aos superiores que estava em período de férias.

Esta reportagem, baseada em entrevistas com mais de 20 altos funcionários do governo Lula e do Judiciário, organizadores de protestos, participantes, checadores de dados e outros, inclui detalhes não relatados anteriormente sobre o ataque de cinco horas que abalou o maior país da América Latina, com ecos do atentado de 6 de janeiro de 2021, no ataque ao Capitólio dos EUA.

O comando militar do Brasil não respondeu a um pedido de comentário.

As autoridades também estão trabalhando para identificar os autores das mensagens nas redes sociais convocando a manifestação de domingo e os doadores que financiaram os ônibus para levar os participantes à capital.

Antes do dia 8, os militares haviam impedido duas vezes as autoridades de desocupar o acampamento bolsonarista, segundo declarações do coronel Fábio Augusto Vieira, ex-comandante da PM do Distrito Federal de Brasília, fornecidas ao Washington Post. Vieira foi detido por falhas de segurança durante os distúrbios.

Os insurgentes arrasaram os prédios modernistas do governo da Praça dos Três Poderes em Brasília, quebrando vidros, destruindo móveis, cortando quadros e roubando armas, documentos e outros troféus. O plano deles, acreditam os funcionários do governo Lula, era acionar uma lei que permitiria aos militares restaurar a ordem na capital.

A investigação envolveu também uma figura-chave do governo Bolsonaro: Anderson Torres, chefe da segurança de Brasília na época da insurreição e ministro da Justiça de Bolsonaro. Após o motim, as autoridades encontraram um projeto de decreto na casa de Torres declarando “estado de defesa” para anular a Justiça Eleitoral do Brasil e anular a vitória eleitoral de Lula. Os investigadores dizem acreditar que foi escrito entre 13 e 31 de dezembro, quando Bolsonaro ainda era presidente.

Torres, que estava na Flórida durante a insurreição, não contestou a autenticidade do documento, mas disse que o documento seria destruído. Ele negou qualquer ligação com os distúrbios. O ex-ministro da Justiça voltou ao Brasil na manhã de sábado e foi preso na hora.

Bolsonaro passou anos semeando dúvidas no sistema eleitoral brasileiro, chamando Lula de ladrão e alimentando a crença de seus partidários de que, se seu oponente vencesse, só poderia ser por meio de fraude. A vitória do líder da esquerda foi confirmada pela Justiça Eleitoral do Brasil, pelo governo dos Estados Unidos e de outros países ao redor do mundo. Bolsonaro autorizou seu chefe de gabinete a liderar uma transição, mas nunca cedeu.

Em 30 de dezembro, em seus comentários públicos mais extensos desde a derrota, Bolsonaro chamou o resultado de injusto. Em seguida, fugiu para Orlando, pulando a posse de Lula e a passagem da faixa presidencial, uma afirmação da democracia.

Ainda em Kissimmee, na Flórida, quando seus partidários começaram a se rebelar, ele ficou publicamente em silêncio por várias horas. Condenou a violência e lembrou da violência da esquerda.

O Supremo Tribunal Federal concordou na sexta-feira, 13, com uma petição dos procuradores para investigar Bolsonaro como parte de sua investigação sobre os “instigadores e autores intelectuais” por trás do motim.

“Havia muitos agentes coniventes”, disse Lula a repórteres. “Tinha muita gente conivente da Polícia Militar. Muita gente conivente das Forças Armadas. Estou convencido de que a porta do [palácio presidencial] foi aberta para essas pessoas entrarem porque não há porta quebrada. Ou seja, alguém facilitou a entrada deles aqui”.

Na noite do motim, dizem funcionários do governo Lula, o chefe da Casa Civil do presidente, seus ministros da Justiça e da Defesa e o novo chefe de segurança da capital nomeado para substituir Torres chegaram ao quartel-general do Exército por volta das 22h20. Foram negociar a detenção de rebeldes e outros no campo de protesto. Os comandantes militares concordaram em permitir que oficiais de segurança sob o controle de Lula invadissem o acampamento, mas não antes das 6h de segunda-feira. Funcionários do governo dizem acreditar que isso deu tempo aos militares para avisar parentes e amigos que lá estavam para ir embora.

As forças de segurança são um dos alvos de uma investigação em rápida expansão de um ataque que mais uma vez destacou o perigo para as democracias ocidentais de extremistas de direita alimentados por desinformação.

Trabalhando dia e noite, os investigadores estão rastreando as origens de postagens nas redes sociais que conclamavam “patriotas” a se reunir e paralisar Brasília. Ainda obtiveram relatos de empresas ligadas aos ônibus que levaram manifestantes à capital e dados contidos em 1.300 telefones celulares apreendidos de supostos rebeldes.

Autoridades disseram que estão investigando ligações financeiras com os interesses do agronegócio, a quem Bolsonaro defendeu e que teria ajudado a pagar os ônibus usados pelos manifestantes para ir à capital. 

Investigadores dizem que estão operando sob a premissa de que os grandes exportadores agrícolas do Brasil são suspeitos improváveis. Em vez disso, estão se concentrando em empresas menores ligadas ao desmatamento ilegal que floresceu sob Bolsonaro. 

Autoridades observam que um homem preso na véspera de Natal em conexão com uma tentativa de atentado na capital veio do Pará, na região amazônica, onde proposta o agronegócio ilegal.

“Os envolvidos no golpe de Estado foram especialmente aqueles envolvidos no agronegócio fora da lei”, disse Dino ao Post. “Os que ocupam terras indígenas, terras públicas, contrabandeiam agrotóxicos, fertilizantes. Pessoas que operam na mineração ilegal. Esse é o segmento que vai aparecer”.

O senador Carlos Portinho (PL-MT), ex-líder do governo de Bolsonaro, condenou a violência, mas também colocou parte da responsabilidade pelas falhas de segurança no governo Lula. “Agora sabemos que 48 horas antes de domingo, eles foram avisados de que isso poderia acontecer e, 20 horas antes de domingo, desmontaram todo o planejamento de segurança”, disse Portinho. “Isso é segurança nacional. Acho que foi uma falta geral do governo de Brasília, mas com certeza também do Ministério da Defesa e do Lula”.

O governo Lula disse estar ciente dos planos para um protesto, mas aponta que o plano de segurança foi reduzido sem o seu conhecimento por autoridades do governo do Distrito Federal.

Postagens nas redes sociais chamando bolsonaristas à capital mencionam repetidamente a empresa e o nome de um bilionário brasileiro próximo a Bolsonaro. Mas as autoridades dizem que ainda não têm provas suficientes para acusá-lo neste momento.

Os detalhes descobertos pela investigação referem-se principalmente ao que as autoridades descrevem como a superfície da trama: uma rede de empresas menores no sul do país, reduto de Bolsonaro.

A Advocacia Geral da União pediu a um tribunal federal que bloqueasse US$ 1,3 milhão em ativos pertencentes a 52 pessoas e sete empresas. Supostamente, fazem parte de uma rede de patrocinadores e organizadores locais que, em alguns casos, ajudaram a arrecadar doações para o ataque.

Um deles é um pequeno sindicato rural do agronegócio em Castro (PR). Sua página no Facebook, que não está mais disponível, inclui uma foto de grupo com um cartaz da campanha de Bolsonaro e uma carta do ano passado expressando solidariedade aos manifestantes contra um Supremo Tribunal Federal “excessivamente ativista”, alvo frequente de críticas bolsonaristas.

O sindicato disse defender os valores democráticos e as ordens jurídicas expressas na constituição brasileira. “Não toleramos manifestações que ultrapassem os limites da ordem estabelecida”, afirmou em nota no Globo.

Outras empresas na lista parecem ser pequenas agências de turismo ou transporte cujos ônibus foram usados pelos manifestantes. Dois deles reconheceram alugar veículos, mas disseram não saber que seriam usados para transportar pessoas à capital para participar de uma insurreição. Pelo menos um negou o transporte de manifestantes.

A notícia dos ônibus se espalhou por grupos de WhatsApp, bem como por canais de Telegram e YouTube.

A empresa brasileira de tecnologia Palver monitora mais de 17.000 grupos públicos de WhatsApp e outras mídias sociais usadas para organizar as viagens. Muitos dos que pediram doações, disse o presidente da Palver, Felipe Bailez, eram relativamente obscuros — youtubers com 50.000 seguidores ou menos, por exemplo.

Organizadores de ônibus e manifestantes descreveram o evento como a expressão de um movimento popular no qual muitos bolsonaristas pagaram suas próprias passagens de ônibus ou arrecadaram pequenas doações de amigos e familiares. Mas milhares de mensagens do WhatsApp contam uma história diferente, disse Bailez, com os organizadores locais se oferecendo para cobrir viagens de ônibus, refeições e outras despesas gratuitamente.

“Acho que havia autoridades [mais poderosas] e empresários e políticos e bolsonaristas radicais envolvidos nisso”, disse presidente da Palver. “Mas eu realmente acredito que houve muito engajamento orgânico de pequenos empresários e pessoas de várias cidades do Brasil. Não acho que foi totalmente planejado por uma pessoa ou um grupo de pessoas”.

Rodrigo Jorge Amaral, 44 anos, é dono de uma empresa de turismo em Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, no litoral sul do Brasil. Ele havia acabado de viajar a Brasília para protestar contra a posse de Lula quando começou a receber mensagens sobre outra viagem. Alguns vieram de números de telefone dos Estados Unidos, com códigos de área da Califórnia e da Flórida. “Você vai para Brasília?”

Membros de seus grupos locais de WhatsApp pró-Bolsonaro, alguns dos quais se reuniram para uma greve de caminhoneiros em 2018, sabiam que ele era dono de um ônibus. Ele começou a responder às mensagens com uma resposta recortada e colada.

“BRASÍLIA URGENTE”, escreveu. Um ônibus sairia da cidade-ilha de um píer às 20h do dia 6 de janeiro. Inicialmente, ele cobrou R$ 650. Mas os organizadores arrecadaram doações suficientes, disse Amaral, para cobrir a viagem. Ele não quis identificar os doadores, dizendo que estão preocupados em serem alvos das autoridades.

Amaral disse que seu grupo chegou a Brasília depois que os manifestantes já haviam entrado nos prédios. E disse que sabia que as pessoas queriam entrar nos prédios, mas não danificá-los.

Muitos que viajaram para Brasília disseram que não sabiam dos planos de invadir os prédios. Ainda não está claro quando e como a multidão decidiu invadir os prédios — e se alguém em particular deu a ordem.

Bailez, que vasculhou as mensagens do WhatsApp daquele dia, disse que não viu uma instrução direta. “Vi um cara falando: ‘Estou aqui em Brasília e vamos tomar o Congresso’, e outro dizendo: ‘Vamos explodir esse prédio’. Algum outro cara diria: ‘Precisamos destruir tudo’. Ele comenta: “Acho que eles começaram a ficar empolgados e foi como uma bola de neve”.

Mas Bailez notou contas do WhatsApp usando um emoji de bomba dois dias antes do tumulto de domingo. Em um grupo nacional do WhatsApp, também havia um plano passo a passo sobre o que fazer antes de entrar em prédios do governo. O manual dizia aos manifestantes para nunca iniciar uma invasão sem uma multidão e nunca tentar tomar “dois poderes ao mesmo tempo”. • Tradução de Olímpio Cruz Neto

`