O advogado diz que o país foi destruído por Bolsonaro e os conservadores e extremistas que o cercam. Ele diz que a reconstrução será longa e que os desafios são inúmeros. “O grande elemento simbólico seria a gente colocar, por exemplo, o SUS como um elemento vital da civilização brasileira. Precisamos reconstruir os direitos trabalhistas no Brasil. Nós precisamos civilizar o Brasil de um jeito que ele nunca foi civilizado”, afirma.

 

 

 

Autor de “Racismo Estrutural”, livro que transformou a discussão e a perspectiva sobre o racismo no Brasil, Sílvio Almeida apresenta nesta entrevista à Focus Brasil um diagnóstico detalhado e exato sobre o que levou Jair Bolsonaro ao poder, mas também sobre as características desse período que causam tanto sofrimento a todos os brasileiros.

Essa dor não é por acaso. É fruto do sequestro do Brasil por Jair Bolsonaro, de acordo com o professor de Direito e doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (USP). “Jair Bolsonaro está mantendo o Brasil em cativeiro”, afirma o pesquisador, um dos mais importantes pensadores atuais do país. O resultado desse cárcere é o sequestro do nosso presente. Jair Bolsonaro impede que o passado e o futuro sejam discutidos. Só conseguimos falar sobre essa figura que já teve o nome mencionado diversas vezes neste pequeno parágrafo: Jair Bolsonaro. Ou falamos sobre como tirá-lo do poder ou como vencê-lo nas próximas eleições.

A consciência sobre a contingência da realidade, ou seja, da provisoriedade dos significados, permite que Silvio Almeida não se apresente como um intelectual. De acordo com o professor, só é possível tentar ser um intelectual. Trata-se de um exercício permanente. Fazendo uma nota pessoal, ele afirma: “Ser um intelectual negro é um exercício de você tentar se conectar com o mundo intelectual, mas você tentar também sair dessa armadilha que o racismo coloca fazendo com que você seja obrigado a falar daquilo que as pessoas esperam que você, como negro, vá falar. E é sempre algo que é rebaixado. É sempre algo que é menor do que aquilo que precisa ser dito. Impressionante”.  Leia trechos da entrevista a seguir:

 

 

Focus Brasil — Professor, essa entrevista vai ser publicada no final de semana do dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. E essa é uma data que ainda provoca revolta entre pessoas identificadas com o bolsonarismo, com o conservadorismo e com a direita de uma maneira geral. O que o senhor pensa sobre essa revolta? Por que ela existe? É somente negacionismo, é o fascismo que existe em todos nós ou é o medo, medo de mudança?

Sílvio Almeida — Acredito que todos esses componentes que você estabelece podem servir como vetor de explicação dessa reação em relação ao tema. Mas eu acho que a gente precisa buscar as raízes disso em camadas mais profundas da nossa sociabilidade. Eu acho que pensar o que significa viver nesse momento histórico em que nós estamos posicionados, e eu não falo apenas do Brasil, mas em relação ao mundo. Acho que a gente vive num momento de profunda e acelerada degradação das condições socioeconômicas. Acho que tudo isso se reflete também na capacidade das instituições de dar respostas aos problemas concretos das pessoas. Hoje, estamos vivendo uma situação em que a institucionalidade política e aquilo que a gente convencionou chamar de democracia, em termos formais, já não é capaz de dar uma resposta para as angústias, para os problemas, para as insatisfações das pessoas. Acho que esse é um fator importante. Nós temos um problema econômico muito forte, ou seja, de reprodução material da vida. Tem um problema político-institucional que deriva disso e tem uma terceira questão também, que está relacionada a tudo o que eu falei agora, que é a questão ideológica.  

A decomposição da vida no sentido econômico, das formas de manutenção de uma coesão social com bases institucionais leva também ao que a gente pode chamar de uma crise civilizatória, uma crise de horizontes. Há uma profunda dissonância em relação às projeções de um horizonte comum. A gente perdeu as bases do comum. A gente não consegue mais se ver como comunidade e isso, obviamente, vai acirrando os discursos de ódio.

Você tem os discursos que vão apelar para um certo misticismo que também vai se voltar a um profundo conservadorismo, no pior sentido que essa palavra pode ter. Resumindo, essas reações são sintomas. Elas não são a causa do problema. A subjetividade das pessoas não é uma causa original, ela é sempre uma causa sintomática. Ou seja, a ideologia como sintoma de um mundo em decomposição. Esse é o mundo do neoliberalismo que vai levando a uma série de outras deformações do ponto de vista social e político.

 

— No livro “Racismo Estrutural”, você fala dentre outros temas sobre racismo e política e aponta a questão da sub-representação do negro brasileiro no Parlamento. Gostaria que você fizesse uma análise sobre isso. Mas também gostaria de lhe perguntar sobre a participação dos negros na política. Os negros brasileiros são 56% da população, já nos EUA os negros são 15%. E você é grande conhecedor sobre a realidade da luta do movimento negro americano. Você não acha que há uma certa síndrome de colonizado no movimento aqui no Brasil por querer, de certa maneira, copiar o movimento negro americano?

— A sua pergunta tem uma série de camadas. Vamos desmistificar algumas coisas que você coloca e que fazem todo sentido tanto na pergunta quanto nas possíveis respostas que você apontou. Vamos problematizar, né? Primeiro, a questão demográfica que eu acho que é importante. Você fala que no Brasil são 56%, nos EUA está em torno de 15%. E isso faz muita diferença porque ao contrário do que se pode imaginar, que o senso comum pode dizer: “Bom, lá eles são minoria e, portanto, deve ter algum elemento na luta política, deve ter algum tipo de ação política e de avanço no movimento negro que permitiu aos negros americanos, supostamente, avançar mais do que os negros brasileiros”. Esse tipo de resposta não leva em consideração elementos históricos e que são, portanto, políticos e que têm que ser vistos do ponto de vista econômico. Primeiro, os EUA têm um Produto Interno Bruto (PIB) muito maior do que o nosso, muitas vezes maior do que o nosso. Isso faz toda a diferença. Estamos falando de um país industrializado, o que significa que o trabalho lá é organizado de uma outra maneira, as políticas salariais são outras. Apesar de você não ter um sistema de proteção social como o que nós constituímos e que se deve muito ao movimento negro também, é bom que se diga isso. E a posição geopolítica dos EUA também como uma potência militar, econômica, enfim, tudo isso cria uma dinâmica da distribuição da riqueza e da maneira como ela é produzida dentro dos EUA. Isso também tem um efeito na dinâmica racial. De tal sorte que eu posso dizer o seguinte: o tipo de opressão e o tipo de violência por parte do Estado, por parte da sociedade americana contra os negros é diferente daquela que é feita aqui no Brasil.

Eu diria o seguinte, até de maneira contraintuitiva, a violência sofrida pelos negros aqui no Brasil, dado que são maioria, tem que ser muito mais sofisticada e muito mais incisiva do que aquela que é sofrida nos EUA. A violência direta, aparentemente, é mais contundente, mais visível. Mas não é mais sofisticada. Para lidar com casos de violência direta e para manter a estabilidade diante disso, você precisa de muito mais energia. Aqui no Brasil, os instrumentos de dominação têm que ser muito mais sofisticados tanto do ponto de vista político como do ideológico. Gosto sempre de trazer à mente uma imagem. Vocês imaginam que numa manifestação como a que houve no ano passado do Black Lives Matter, um policial no Brasil daria as mãos para os manifestantes e se ajoelharia junto com eles? Não. Isso não há possibilidade. Inclusive, a sociedade brasileira, instigaria o policial a atirar no negro e uma outra parte da sociedade sequer se chocaria com isso saindo nos jornais. Nós incorporamos a violência cotidiana contra os negros, naturalizamos de tal forma que os americanos não têm dimensão do nível de violência que os negros brasileiros sofrem. Todos os negros. No nível da violência física e no nível também daquilo que a gente poderia chamar de violência simbólica – do ponto de vista de uma naturalização e o lugar do negro na sociedade.

Isso leva a uma segunda questão também relacionada a sua pergunta. O movimento negro brasileiro é de uma originalidade, de uma capacidade e de uma sofisticação que não tem comparação com o que acontece nos EUA. E falo isso porque os movimentos sociais negros, assim como todos os movimentos sociais, têm um caráter histórico próprio. Ou seja, são o resultado das condições materiais e da luta contra as condições que justificam sua própria existência. Eu costumo dizer que todo o movimento social, de maneira paradoxal, luta para que possa ser superado, para que tenha fim. Existe por conta das reivindicações e das bandeiras que carrega. Ou seja, o movimento social negro luta para que não haja mais movimento social negro. Uma vez superado o racismo não existe mais o porquê desse tipo de reivindicação e, portanto, esse tipo de agrupamento. Agora, a gente olhando historicamente o Brasil vemos o seguinte, o movimento negro no Brasil se organiza desde o final do século 19 e depois vai também se adaptando a todas as transformações socioeconômicas e culturais do Brasil.

Tem um conceito que eu estou utilizando agora que chama “gramáticas da diáspora”. Os movimentos sociais, de uma maneira geral, e o movimento negro não é diferente disso, estabelecem uma comunicação e, portanto, uma troca de experiências e uma troca conceitual que faz com que as lutas, apesar de separadas pelos contextos históricos distintos, unifiquem-se de alguma forma. Exemplo, estamos no mês da consciência negra. O conceito de consciência negra foi forjado na luta contra o apartheid na África do Sul. São os textos de Steve Biko e, particularmente, o texto “Eu escrevo o que quero”, é onde ele vai trazer a formulação mais bem acabada do que é a ideia de consciência negra. Uma ideia que depois também vai se juntar à luta dos negros dos EUA. A luta de África vai influenciar também e ser influenciada dentro das gramáticas diaspóricas. A luta nos EUA, o black power. Olha o final dos anos 1970, black power, mas black is beautiful também. É a reconstrução de uma identidade orgulhosa de si que é forjada na luta contra o racismo, mas que levanta a cabeça e, portanto, tem orgulho de si mesmo. No final dos anos 1970, você tem a ideia da consciência negra, do black power e você tem um resgate. Tem algo mais brasileiro do que isso, você resgatar dentro dessa ideia de reconstrução de uma identidade negra, a figura de Zumbi dos Palmares que se torna um símbolo de libertação, não só para os negros brasileiros, mas um símbolo de libertação para o Brasil?

Eu sempre costumo perguntar o seguinte, essa lógica do “identitarismo” ou das políticas de identidade tal como falam os americanos, que esquece a dimensão estrutural – inclusive, o meu livro é para resgatar essa dimensão estrutural do problema das identidades, dentre outras coisas; é, justamente, um grito para dizer que ser negro significa estar dentro de certas condições políticas, econômicas, sociais, ideológicas que forjam a minha identidade. Eu não sou o que eu quero, eu sou aquilo o que o mundo fez de mim e misturado com as decisões que eu vou tomar a partir do momento que a minha vida faz algum sentido no interior desse contexto. Então, acho que entender a ideia do “identitarismo” é entender também as armadilhas da identidade como diz o Asad Hayder.

 

— O que são as armadilhas da identidade?

— Não são só as minorias, negros, mulheres, LGBTQIA+, enfim, que ficam todo o tempo afirmando a sua identidade, sem se conectar com as questões estruturais. Mas é também o branco que não entende que ele é resultado também dessas mesmas condições. Porque quem começa com o “identitarismo” são os brancos e de extrema-direita. A extrema-direita é identitária. Eles querem afirmar a sua identidade contra o resto do mundo. Há algo mais identitário do que o fascismo? Há algo mais identitário do que alguém dizer assim, “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”? Isso é “identitarismo”, no mais alto grau. O sujeito fala isso justamente para não ter que pensar na miséria das condições econômicas das quais ele faz parte, das quais ele é o dínamo. Então, o “identitarismo” é um problema que nasce no “colo” dos brancos de extrema-direita e que, porque todos estamos aqui inseridos nesse meio, nós, de alguma maneira, somos atravessados por isso. Então veja, o problema não é a gente de alguma maneira afirmar a nossa identidade, não é a gente ser capturado pela lógica das redes sociais, porque uma hora ou outra nos somos capturados. Por isso que somos seres no mundo, não estamos fora do mundo. O problema é a gente tentar pensar criticamente tudo isso e criar…e pensando na formação de estruturas, políticas e de mudanças nas relações econômicas que nos tirem dessa armadilha. Por que sabe uma coisa que está acontecendo muito comigo? É algo muito interessante. Tem algumas pessoas que ao me criticar – confesso que eu não dou muita bola para isso, não…

 

— Sequer leram o que você escreve.

— Pois é. Dizem, “o Silvio é identitário”. Mas sabe o que é isso? É que ninguém ainda falou isso para mim diretamente. Porque o dia que falarem “você é identitário”, eu vou falar “você é racista. Sabe por quê? Porque você está falando que eu sou identitário não é pelo que eu escrevo, mas porque eu sou negro e toda vez que um negro abre a boca é como se ele só pudesse falar de si mesmo”. Não é? Parece que eu estou sempre falando de mim mesmo. Não. Outro dia alguém falou assim para mim: “Você, quando for falar tal coisa, você tem que falar sobre cotas”. Eu falei: “Não. Não tenho que falar sobre cotas. Eu não sou doutor em cotas. Eu sou doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo”. Eu posso, eventualmente, falar porque eu ajudei a construir alguns programas. Outro dia falaram: “O Silvio é especialista em racismo”. Eu falei: “Não. Quem é especialista em racismo são os brancos. Eu sou especialista em Filosofia e Teoria Geral do Direito”. Tem algumas coisas que são muito curiosas.

Uma nota pessoal. Ser um intelectual… tentar ser. Porque ser intelectual é sempre uma tentativa. Você nunca está pronto. Todo dia você precisa ler alguma coisa e tentar… Ser um intelectual é sempre um exercício. Eu estou tentando todos os dias fazer isso. Mas ser um intelectual negro é um exercício de você tentar se conectar com o mundo intelectual, mas você tentar também sair dessa armadilha que o racismo coloca fazendo com que você seja obrigado a falar daquilo que as pessoas esperam que você, como negro, vá falar. E é sempre algo que é rebaixado. É sempre algo que é menor do que aquilo que precisa ser dito. Impressionante.

 

— Temos na Presidência um homem que é tratado por antropólogos e outros especialistas como uma figura geradora e propagadora de ódio. Ele não apenas detém um discurso odioso, como também fomenta o ódio de todos quando faz com que o odeiem e expressem esse ódio por ele. Quanto esse grupo político que está no poder conseguiu gerar retrocessos no debate social e no debate racial?

— Conseguiram, claro que conseguiram. Tanto que conseguiram que a gente, primeiro, não consegue discutir a questão racial sob uma perspectiva ampla. O Brasil está interrompido. O Brasil está em transe. Então, a gente não consegue discutir essa questão e quando discute é sempre nessa dimensão restritiva e que se torna necessária porque a gente precisa salvar as nossas vidas. O governo colocou o Brasil e também, por óbvio porque está no Brasil, a questão racial em estado de emergência. A gente sempre faz as coisas na emergência porque há um medo permanente da morte, é o medo permanente da miséria, é o medo permanente de perder a dignidade. Então, diante de uma situação como essa, obviamente que todo discurso político, todo projeto de futuro, tudo o que a gente precisa debater com mais profundidade está agora no campo da superfície, da emergência.

Nós somos, talvez, o país da América Latina – e as nossas independências foram todas muito próximas – que está às vésperas do bicentenário da sua independência e que não conseguiu fazer nenhuma discussão importante sobre isso. Principalmente, no campo da esquerda. Nós estamos totalmente capturados por isso. E a direita está discutindo. Vocês acham que é à toa que existe um revisionismo histórico em torno do que foi o Império? O revisionismo histórico em torno do que foi a escravidão, que é uma bandeira permanente da extrema-direita? Eles estão, portanto, fazendo algo que nós teríamos que fazer, mas não estamos tendo as condições para fazê-lo, que é aquilo o que o Walter Benjamin falava: “Disputar os mortos”. Nós somos um país que precisa disputar o passado. A gente não está disputando só o futuro, nós estamos disputando o passado também. Os sentidos do Brasil. A gente está hoje, por conta desse governo — falo do “governo” porque não quero ficar só na figura do seu principal nome, todos ali fazem parte desse projeto de destruição do país e de inviabilização de qualquer Brasil possível —, estamos presos no presente. Tudo o que a gente pensa ou discute hoje, é discutir Bolsonaro. É discutir como tira o Bolsonaro ou como minimiza os efeitos da desgraça que esse homem está fazendo na nossa vida.

A gente não consegue espaço para discutir o futuro do Brasil. Isso é muito ruim. De novo, nós estamos às vésperas do bicentenário da independência, o que parece uma coisa menor, mas nós não estamos com tempo para disputar os mortos e discutir o passado. Aliás, nós não estamos com tempo para disputar e para ressignificar os mortos do último ano. O Brasil é um país em que morreram mais de 600 mil pessoas e que nós não tivemos luto. A gente não tem futuro possível se a gente não ritualizar a morte. A gente não consegue ritualizar a vida. A gente vai ter que, de alguma maneira, abrir uma agenda para pensar essas dimensões que não são só simbólicas, são as dimensões da ressignificação da vida. A nossa vida está sem sentido hoje porque nós não estamos disputando os mortos e nem conseguindo pensar no futuro. O Bolsonaro sequestrou o Brasil. Ele colocou o Brasil em cativeiro. Ele é um sequestrador da alma nacional. É isso o que ele é. 

 

— Existe a possibilidade de um novo governo progressista a partir de 2023, espero que seja do presidente Lula…

— Esperamos. Esperamos. Todos.

 

— O que o senhor espera, o que acredita que deva ser prioridade para esse novo governo? Imaginamos que a reconstrução vá ser demorada.

— Na verdade, eu não acho que vá ter reconstrução, acredita? Eu acho que vai ter que ser uma construção porque o Brasil que a gente conheceu não existe mais. Acabou. Vamos nos conformar com isso? Em certos pontos, ainda bem. Porque não estava bom também, antes, né… é aquela velha história, “nada está tão ruim que não possa piorar” e piorou muito. Eu quero me lembrar aqui dos termos usados pelo professor Wanderley Guilherme dos Santos sobre o governo Bolsonaro. É um governo de ocupação, não é um governo normal. É um governo da desordem, do caos. Governo, para essas pessoas que estão lá, é justamente instalar o caos. É a destruição de todas as leis institucionais possíveis e imagináveis, e eles nunca mentiram em relação a isso. Lembram daquele famoso jantar nos EUA em que ele falou “a gente vai ter que destruir muita coisa para poder construir”? Eles vieram para destruir. Destruir, inclusive, a nossa sanidade mental. Destruir a nossa capacidade de se manter hígido diante do mundo.

Então, eu espero de um próximo governo de esquerda, um governo progressista, um governo que se reconecte com a população… E eu estou dizendo isso porque eu espero um governo nesses moldes… Porque tem muita gente se apresentando como diferente do que aí está, mas que na verdade são só pessoas que parecem ser mais educadas, mas que têm o mesmo projeto. Então, são várias armadilhas, como a luta contra a corrupção que começa a movimentar um certo moralismo político e que serviu muito às propostas de destruição do Brasil. Eu estou esperando, primeiro, a construção de um desenho político-institucional no Brasil que pudesse se colocar a partir de três eixos que eu chamo de tendências estruturais do Brasil. O primeiro eixo é o da dependência econômica. Nós precisamos pensar num projeto econômico para o Brasil que seja consistente, que mude as bases da economia nacional, que seja de industrialização do Brasil e que permita ao país não mais ser refém da banca internacional, do capital internacional, que consiga proteger a economia e o povo brasileiro. Um sistema de financiamento sólido para os direitos sociais e pensarmos a economia como desenvolvimento, mas pensarmos também o desenvolvimento como trazer para dentro do orçamento aqueles que mais precisam. Esse é o primeiro eixo.

O segundo eixo é o político, que vai atacar o problema que podemos chamar de falta de democracia, de autoritarismo, de falta de participação política. Precisamos ampliar os espaços da democracia, cada vez mais fazendo com que algumas decisões fundamentais do Brasil passem pelo povo brasileiro e nós precisamos organizar institucionalmente o país para permitir esses canais de participação política permanente. Porque é isso o que vai nos defender contra esses grupos que estão instalados, inclusive, na burocracia do Estado – como estávamos falando –, e que muitas vezes eles se colocam como os arautos do povo brasileiro e, na verdade, não são. São burocratas que não tem nenhuma conexão com o povo, mas que se assenhoram dos destinos do Brasil muitas vezes. E o terceiro eixo, acho que a gente não pode escapar disso, é a gente pensar na questão do racismo. A gente vai ter que pensar nisso, vai ser inevitável. A gente mostrar como o racismo é um elemento fundamental, estrutural portanto, que compromete a nossa possibilidade do desenvolvimento econômico, a democracia, também a emergência de uma energia popular que poderia, inclusive, nos proteger, do ponto de vista cognitivo, contra o autoritarismo. Veja, ficamos anos construindo no imaginário social brasileiro a importância do Sistema Único de Saúde, da vacina… tanto que eles não conseguiram destruir o SUS, não conseguiram fazer com que o povo brasileiro não se vacinasse. Olha só o que é ter uma defesa cognitiva. Então, precisamos valorizar o que a cultura popular tem de mais potente da resistência do povo brasileiro, da luta contra o racismo. Nós precisamos criar desenhos institucionais em torno disso.

E eu termino dizendo o seguinte, por isso que vamos precisar não só de ter boa vontade, a intenção e a vontade de tirar esses horrores que nos governam, mas a gente vai ter que pensar o mundo… que, inclusive essas pessoas não estarão ou estarão na cadeia que é onde elas devem estar na próxima quadra. Elas têm que ser responsabilizadas por isso. E precisamos também fazer uma grande homenagem às pessoas que foram vítimas desse período. Nós precisamos fazer monumentos, lembrar das pessoas que morreram nessa pandemia. Isso vai ser um elemento civilizatório para nós. E eu acho que o grande elemento simbólico seria a gente colocar, por exemplo, o SUS como um elemento vital da civilização brasileira. A reconstrução dos direitos trabalhistas no Brasil. Olha só o mote que a gente tem. Precisamos reconstruir os direitos trabalhistas no Brasil. Nós precisamos civilizar o Brasil de um jeito que ele nunca foi civilizado, porque civilização para nós sempre foi sinônimo de destruição do meio ambiente, de destruir os povos originários, matar preto… isso foi a civilização que nós entendemos. Temos que construir uma civilização que englobe a utilização das energias do povo brasileiro para fazer um desenho institucional que possa nos colocar em direção e em linha com o futuro. Acho que é isso. Tem muita coisa para fazer e a gente vai precisar de inteligência para fazer isso.