Em 11 de outubro de 1996, o Brasil perdia Renato Russo, o maior compositor do rock brasileiro. Naquele dia, um dos mais irrequietos cantores e poetas do Brasil cerrava os olhos e entrava para a galeria de mitos do rock’n’roll, tornando-se referência constante para a juventude brasileira, ansiosa por sua poesia marcada pela ética e pelo amor. Renato, além de um excepcional letrista, foi um grande cantor e um artista complexo, em permanente estado de ebulição.

O jovem Renato Manfredini Júnior morreu, mas a gigantesca sombra do mito permanece. Para muitos, parece mesmo que ele jamais se foi. O culto à Legião Urbana e Renato continua crescendo há 25 anos à medida que seu trabalho ganha mais fãs e suas composições, novos intérpretes.

Poucas vezes, no rock brasileiro, um artista foi elevado à condição de semi-deus. Talvez apenas Raul Seixas. Os discos da carreira solo de Renato, bem como toda a obra da Legião, continuam em catálogo, vendendo sempre bem. Existem mais de 4,5 milhões de citações em páginas que mencionam ou destacam Renato Russo e à sua obra na internet. Muitas construídas pelos fãs. A fama, como se vê, só aumentou com o seu desaparecimento, uma regra na construção dos mitos do rock.

É bem verdade que essa fama e o status de “monstro” fez justiça a Renato, que foi construindo a carreira como um artesão, moldando sua personalidade artística com integridade e, sobretudo, ética. Ele sabia o que queria desde o início, quando, ainda moleque, sonhava montar uma banda de rock.

“Quem acredita, sempre alcança”, repetia em entrevistas no início da carreira e que acabou virando tema da música “Mais uma vez”, gravada com o 14 Bis em 1986. Renato acreditou sempre em si mesmo e na força do seu trabalho. E, se existiu no país um rock com um discurso distante do banal e com forte conotação social e política, a juventude deve isso ao líder da Legião Urbana.

No final dos anos 70, quando o país já rumava para a reabertura política — lenta e gradual, como havia imposto o general Golbery do Couto e Silva, ex-chefe da Casa Civil do governo João Figueiredo —, Brasília também sofria com o fato de estar à sombra do poder dos militares.

Antes da anistia política, em 1979, pouco ou nada havia para os garotos filhos da classe média que ocupava cargos na máquina pública. “Não havia o que fazer”, disse Renato, em entrevista concedida a Celso Araújo, em 1984.

Não havia mesmo. Quando Renato era pouco mais que um adolescente, aos 16 anos, adorava as grandes bandas de rock dos anos 60 e 70, além do poeta Bob Dylan, o que o levava a divagar, nas tardes secas de Brasília, como seria montar um grupo de rock. Tímido e desengonçado, o ainda imberbe Júnior pensava ser o líder de uma banda — 40th Street Second Band —, na qual participariam Jeff Beck, Mick Taylor e outras figuras lendárias do rock. Renato Manfredini Júnior era Eric Russel, o cantor.

Nascia ali, sem saber, o embrião da persona Renato Russo. Mas até aquele momento, só as paredes do quarto de Júnior, que morava com os pais num apartamento funcional do Banco do Brasil, na 303 Sul, sabiam da banda. Eram divagações e sonhos na mente juvenil do rapaz franzino que usava óculos e era desajeitado devido a uma doença que o mantivera paralisado, na infância, por quase dois anos.

Tudo vinha assim, sem muita pretensão até que, em 1977, eclodiu na Inglaterra o movimento punk. A revolta dos filhos da classe operária inglesa contra o establishment britânico e a pompa que cercava as lendas do rock. Aquilo foi o estalo para Renato Russo, que descobriu a existência e o nascimento do punk lendo as páginas da hoje extinta revista Pop — única publicação nacional que falava sobre rock na década de 70.

Era um cara muito bem informado para a sua idade. “Sabia um pouco menos que praticamente tudo sobre cinema e música americana e, aquilo que ele não sabia, tinha imaginação suficiente para inventar”, lembrava, em 1985, o jornalista Alcimar Ferreira, amigo de Renato nos tempos da Cultura Inglesa e com quem estudou na Faculdade de Jornalismo do Ceub. “O blefe era seu trunfo capital, que tornava exasperantes nossas muitas polêmicas pelos corredores do Ceub, a respeito sempre do mesmo tema: música”.

Verdadeira enciclopédia de rock — tinha centenas de discos em casa — Renato era capaz de citar, infinitamente, nomes de trocentas bandas, desde as óbvias até as mais obscuras. “Algumas eu tinha absoluta certeza de que não existiam, porque eu lia de maneira contumaz todas as revistas inglesas e americanas, que nunca citavam aqueles grupos de nomes geniais”, anotou Ferreira.

Ainda em 1979, um grupo de estudantes de Jornalismo, colegas de Renato no Ceub, se juntaram para lançar um livro de poemas, chamado “Sinal”. Ferreira lembrou, em texto escrito no Jornal de Brasília, seis anos depois: “O poema de Renato foi escrito num jato, um longo box verbal, uma pulsação ginsberguiana, um acerto artesanal com as palavras, ainda que faltasse a cirurgia, faca amolada”.

Aborto Elétrico

Renato era um bom garoto, ainda adolescente. Inteligente e intuitivo, não parecia que se tornaria o cara com o discurso afiado visto em “Que País É Este?” ou “Conexão Amazônica”, marcas registradas da sua primeira banda: o Aborto Elétrico.

A mudança radical ocorreu em 1978 quando encontrou-se com Felipe Lemos. Fê era filho de professores universitários e tinha acabado de chegar de Londres, depois de uma estadia com os pais. Debaixo do braço, alguns discos de rock, quase os mesmos que seriam colocados por Renato para tocar numa festa, em que os dois se encontraram. Ficaram amigos.

“A gente não se desgrudava e o Renato ia na minha casa todos os dias”, lembrou o baterista do Aborto Elétrico e do Capital Inicial, em entrevista à Showbizz, em maio de 1997. Fê morava na Colina, o conjunto de prédios no campus da UnB, que passou a ser o centro do “movimento” punk de Brasília.

Ambos fizeram amizade com outros caras, que também se identificaram com os três acordes dos Ramones, Clash, Sex Pistols e Comsat Angels. A Turma da Colina reunia Loro Jones e o irmão Geraldo Ribeiro (futuros integrantes da Blitx 64, depois Capital Inicial e Escola de Escândalo), André Müller e o irmão Bernardo (Plebe Rude e Escola), Gutje Woorthman (fundador da Blitx 64 e depois da Plebe), Bi Ribeiro (Paralamas) e muitos outros. No começo, não passavam de uns 20 moleques. Dedicavam suas horas a ouvir discos, promover festas, passear pelas quebradas de Brasília…

A primeira apresentação ocorreu muito tempo depois, em 1980, quando fizeram um show no Só Cana, o extinto bar localizado no Gilberto Salomão, no Lago Sul, bairro de classe média alta. Renato rememorou, muitos anos depois, o show, em entrevista a Sonia Maia, na Bizz, em abril de 1989:

“Nós fomos, levamos umas coisas, o Fê estava com caxumba, febre de 40 graus e, quando terminamos o set de cinco músicas, o pessoal reagiu com: Êhhhh! De novo! Porque brasileiro gosta muita de zona. Então, dá-lhe zona. Eles não entenderam nada: todo mundo parado… Aí tocamos as cinco músicas de novo e, pelo que eu soube, a cidade inteira falou disso depois. Porque, primeiro, ninguém tinha ouvido falar de um grupo de música chegar e tocar de graça e ainda fazer aquele barulho. E o guitarrista loiro (Pretorius), sangrando a guitarra. O Aborto Elétrico era assim – Paaammmm!!! E não era rápido – era lento, tipo (Sex) Pistols. Aí o que aconteceu, a cidade começou a falar. Nos colégios de classe média – Objetivo, Elefante Branco, Marista… – o comentário era: Você viu? Aqueles caras são maconheiros, bla blá blá…”

A banda estava no auge em Brasília quando uma briga entre Fê e Renato acabou com tudo. “Eu briguei com o Fê por causa da música ‘Química’”, disse Renato. “Nessa época estávamos supersofisticados, ouvindo sei lá o quê – Joy Division, essas coisas e eu cheguei com aquela música: Não saco nada de química… E eles: Pô, Renato, você está atrasado…” Fê bateu pesado: “Você está perdendo seu jeito de fazer música”. Depois, reconheceu que errou: “Que bobagem minha! Hoje a música é um clássico”.

O fim do Aborto não levou Renato a desistir da música. Muito pelo contrário. Estava convencido que seu trabalho era bom. E era. Passou então a se apresentar sozinho, munido de um violão de 12 cordas, nos intervalos dos shows da Plebe e da Blitx 64. Uma espécie de Bob Dylan – uma de suas grandes influências – do cerrado. São dessa época “Faroeste Caboclo”, “Eduardo e Mônica”, “Eu Sei” e “Dado Viciado”. Philippe Seabra lembra que no intervalo dos shows das bandas, quando Renato subia ao palco para se apresentar, ele e a turma da Plebe perturbavam o “Trovador Solitário”. “Ficávamos jogando moedas”, conta.

“Eram baladas com uma história (começo, meio e fim) bem diferentes do seu estilo junto ao Aborto Elétrico. Inevitavelmente, essa mudança começou a chamar atenção a atenção de pessoas menos ligadas – havia os que detestavam de verdade – ao movimento elétrico da cidade. Agora era possível compreender as letras das músicas, o que tinha sido impossível até então, devido a problemas com microfones e volume alto demais”, escreveu o próprio Renato num proto-release, em maio de 1982. Ele chegou a gravar algumas dessas composições numa fita k7, em que brincava de locutor de uma imaginária Rádio Brasília.

Legião Urbana

Essa fase violão e voz durou até agosto daquele ano. Renato então resolveu montar uma nova banda. Encontrou-se com Marcelo Bonfá, baterista egresso do SLU – uma brincadeira com a sigla da companhia de lixo de Brasília, Serviço de Limpeza Urbana, e que tinha tido uma rápida passagem pelo grupo Dado e O Reino Animal —, numa festa organizada por André Müller. A idéia, segundo Renato, era montar um núcleo mínimo para a banda – baixo e bateria – e convidar guitarristas esporadicamente para tocar como convidados. A idéia em gestação, entretanto, não foi para frente. A banda, entretanto, já tinha nome: Legião Urbana.

Em abril, o grupo era uma das estrelas da chamada Temporada do Rock Brasiliense, realizado durante dois finais de semana no Teatro da Associação Brasileira de Odontologia (ABO). Além da Legião, apresentaram-se Plebe Rude, Capital Inicial e XXX, que depois geraria o Escola de Escândalo, e a Banda 69.

“Como havíamos alugado o teatro, ficamos ensaiando lá direto”, lembra Dado. “A gente era quase hardcore, mas como as melodias do Renato eram geniais, o resultado acabou ficando bem satisfatório”. Usando um pijama como roupa, o novo guitarrista estreou na banda num teste de força, tendo em vista que sua guitarra quebrou logo depois das duas primeiras canções. Mas a banda não deixou cair a bola. Renato já era um grande entertainer, emendou uma jam com a platéia e fez bonito. “Viramos a zebra do páreo”, recorda Dado. “Nos saímos tão bem que a galera resolveu nos dar a maior força”. Na platéia, uns 50 gatos pingados assistiam ao show. “Tocamos sete músicas. Era mais um negócio de tocar para os amigos”.

Logo depois, uma matéria publicada na revista “Pipoca Moderna”, escrita por Hermano Vianna, irmão do líder dos Paralamas, chamou a atenção da imprensa nacional para o movimento brasiliense. “O cerrado contra-ataca”, escreveu. Em pouco tempo, graças aos Paralamas, que já gravado o primeiro compacto com a EMI e mandavam nos shows “Conexão Amazônica”, e “Química”, a Legião desceu para o eixo Rio-São Paulo para fazer apresentações.

No verão de 1984, junto com a Plebe e os Paralamas, além de outros grupos, participaram do 1º Fest Rock 84, mais uma vez no Circo Voador. A imprensa especializada cobriu o evento e mostrou-se surpresa com a banda. O grupo tocara um dia antes no Rose Bom Bom, outra danceteria também de São Paulo, junto com a Plebe.

No início de 1985, a EMI lança Legião Urbana, com produção do jornalista José Emílio Rondeau, em meio ao Rock in Rio, que consagrou os Paralamas e incluiu o Brasil no roteiro das grandes bandas de rock americanas e inglesas. “É a única maneira de ver o seu produto bem divulgado, já que a produção independente, além de muito cara, atinge só a um público de elite”, definiu Renato, em entrevista a Wilma Lopes, publicada no Jornal de Brasília. “Há o lado negativo, mas este é contrabalançado pelas vantagens do lado positivo, que é bem maior. Com jeito, se faz muita coisa. Conseguimos fazer o disco como queríamos, desde a escolha da música até a capa e o encarte”.

O disco chegaria às lojas junto com o fim da ditadura militar e o início do processo de redemocratização do Brasil, que via nascer a Nova República. “A gente tem esperança que as coisas vão melhorar. É daqui de Brasília que vai surgir a garotada nova, com idéias novas, não só na música, mas no campo das artes em geral”, previa Renato. “Para o futuro, planejamos muita música, muitos agitos, muito trabalho e tudo de bom”.

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