As duas primeiras décadas do século 21 assistiram uma junção curiosa na música brasileira: a sempiterna MPB, aquela oriunda dos festivais dos anos 1960 + a Tropicália, em movimento de recuperação e renovação e uma jovem geração de bandas alimentadas e re-reverentes às diversas vertentes da MPB. 

Esse cenário de uma música brasileira nova e diversa explodiu em shows pequenos de cidades grandes, em casas noturnas que perderam a vergonha de fazer discotecagens de música brasileira, retomando desde o samba-rock mais dançável esquecido dos  anos 1970 até promovendo festas cujos DJs faziam das setlists uma viagem musical pelo Brasil.

Os anos 2000 viram uma efervescência na música brasileira comparável em termos de diversidade e qualidade aos anos 1960, mas, ao mesmo tempo, incomparável quanto aos seus modos de  afirmação.

Nesse sentido, é uma música brasileira que reivindica sua herança negra com muito mais propriedade e vigor, sem precisar da chancela embranquecedora da bossa nova por exemplo. Da mesma maneira, a condição periférica da cultura brasileira,  e o caráter multicultural e transnacional das diversas músicas brasileiras, também passa a ser menos atormentada ou necessitada de confirmação acadêmica, questões que tiraram parte das possibilidades criativas da geração dos festivais em vários  momentos entre os  anos 1980 e 1990.

Juçara Marçal, fluminense de Duque de Caxias, residente em São Paulo desde a infância, é de uma geração intermediária. Aos 59 anos, lançou seu segundo álbum solo “Delta Estácio Blues” em 30 de setembro (disponível em todas as plataformas de streaming) sete anos depois da pancada de “Encarnado”.

Apesar da raiz óbvia no samba, a música de Juçara desafia quaisquer categorias. Em primeiro lugar, Juçara canta — e como canta essa mulher! —, mas compõe, arranja, escreve letras e trabalha em coletivos.

Sua parceria mais constante longa e constante é com o violonista Kiko Dinucci, mas ela já integrou o trio Metá Metá com Kiko e Thiago França, colaborou com Rodrigo Campos e Gui Amabis (Sambas do Absurdo, 2017) e faz vocais em discos de artistas como Elza Soares (A Mulher do Fim do Mundo, 2015, e Deus É Mulher, 2018) e Jards Macalé (Besta Fera, 2019).      

Além disso, Juçara, que já trabalhou como professora de português e canto (formou-se em Jornalismo e Letras, na USP), tem erudição musical invejável, seja pela curiosidade com qual transita do samba carioca à chamada vanguarda paulista e ao rap como pela sua formação especificamente musical mesmo.

No final dos anos 1990, fez parte do projeto A Barca, que juntava músicos e compositores à trupe teatral Companhia do Latão que refez viagens pelo Brasil inspiradas pelas Missões de Pesquisa Folclórica do Mário de Andrade, para ouvir e aprender o que ainda havia desse repertório musical desde que o escritor enviou pesquisadores ao Norte e Nordeste do país em 1938.

Em “Delta Estácio Blues”, Juçara parece condensar toda essa trajetória nas suas 11 faixas, tão diferentes entre si e, no entanto, com sua voz grave, profunda e urgente a costurar todas as parcerias e participações.

A primeira canção que estreou nas redes, “Crash” é, até agora, a melhor e mais potente canção de 2021. Composição do rapper paulistano Rodrigo Ogi, com quem divide vocais, é um rap anguloso, agônico, enunciando a letra de protesto — “Ele veio lá da Calábria/ Seu braço é uma arma que tem alto calibre/ Mas só que agora eu assino a sua eutanásia/ A minha ira é um câncer que não te deixa livre” — e de disposição de luta — “Eu faço tudo pra não entrar numa guerra/ Mas se entrar não vou parar de guerrear/  Ninguém mandou você vir me aperrear/ Eu vou te madeirar!”.  Junto com a “Ciranda do Aborto”, do Encarnado (2014), talvez seja a dupla de letras mais feministas de toda a história da música brasileira até agora.

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