A liberdade de expressão de oligopólios
Elaboração de um marco regulatório para os meios de comunicação não avança no Executivo. Entidades consideram a Lei de Meios da Argentina um exemplo a ser seguido pelo governo brasileiro
O debate sobre a necessidade de democratização da comunicação no Brasil tem sido feito há muito tempo. Movimentos sociais, parlamentares e organizações da sociedade civil defendem a criação de um marco regulatório para o mercado midiático brasileiro, para que se amplie o acesso de diferentes vozes aos meios de comunicação em massa.
No final do segundo mandato do expresidente Luís Inácio Lula da Silva, em 2009, a esperança pela criação da lei para o setor foi fortalecida com a realização da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). No encontro, foram levantadas mais de 600 propostas para a democratização da comunicação brasileira, que tratavam desde o fim do monopólio no setor até o fomento à produção independente nacional. Um estudo para a elaboração da nova legislação chegou a ser encomendado por Lula para o então ministro das Comunicações, Franklin Martins. No entanto, a discussão não avançou no Executivo.
Como forma de pressionar o governo federal para a elaboração do marco regulatório, diversas entidades lançaram em agosto deste ano a campanha “Para expressar a liberdade, uma nova lei para um novo tempo”. A campanha, encabeçada pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), alerta para a urgência em se ter uma nova lei de regulação da mídia. O atual Código Brasileiro das Telecomunicações (CBT), única legislação do setor, completou 50 anos em 2012 e, segundo as organizações sociais, “é de outro tempo, de outro Brasil”. O ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, chegou a anunciar que uma proposta seria apresentada em consulta pública ainda neste ano, o que não ocorreu até o momento.
Monopólios
Mesmo sem ter um avanço na elaboração da nova legislação, grandes grupos de comunicação e parlamentares a eles ligados acusam que a instituição do marco regulatório representaria uma tentativa de cercear a liberdade de imprensa. A reação é decorrente da possibilidade de perderem concessões públicas de uso das radiofrequências e terem o controle do setor comprometido.
De acordo com o estudo Donos da Mídia, do FNDC, o Brasil possui 9.477 veículos de comunicação, mas quatro grandes grupos nacionais controlam diferentes mídias, criando uma espécie de oligopólio no setor da comunicação. A Re-de Globo de Televisão possui 340 veículos; o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) tem 195; a Rede Bandeirantes de Televisão, 166; e a Rede Record, 142.
O marco regulatório visa, entre outras coisas, democratizar o acesso a essas concessões públicas, garantindo, assim, a pluralidade de meios e a diversidade de ideias e opiniões a serem difundidas. Este é, também, o objetivo da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual da Argentina, mais conhecida como Lei de Meios. A lei foi aprovada em 2009, mas ainda não entrou em plena vigência devido ao embate travado pelo Grupo Clarín, expressão do monopólio midiático no país, contra o governo da presidenta Cristina Kirchner. O Clarín tem conseguido impedir a aplicação da lei, que deveria ter entrado em vigor no último dia 7 de dezembro, por meio de liminares judiciais. O motivo é que, com a nova legislação, o conglomerado perderá grande parte de seus veículos. Isto porque a Lei de Meios estabelece que nenhuma empresa pode ter mais do que dez emissoras de rádio e televisão e 24 licenças de TV a cabo, nem superar 35% de alcance em relação ao total da população ou do total de assinantes. O Clarín possui 240 concessões no sistema de cabo, nove rádios AM, uma FM e quatro canais na televisão aberta.
Em visita não-oficial ao Brasi em dezembro de 2012, o relator especial para promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e expressão da Organização das Nações Unidas (ONU), Frank La Rue, elogiou a lei argentina, justamente porque combate o monopólio dos meios de comunicação e cria um órgão regulador independente para o setor. “Na América Latina, temos permitido que a comunicação social seja vista, especialmente o rádio e a TV, pela ótica comercial. E isto é um erro. Qualquer Estado, inclusive o Brasil, tem a obrigação de regular o uso das frequências audiovisuais como um patrimônio da nação”, defende.
Segundo La Rue, o Uruguai também está produzindo uma legislação semelhante “ou mais avançada”. Para o relator da ONU, todo país deve ter um órgão regulador no setor das comunicações porque as concessões são bens públicos e devem ser ofertadas de forma igualitária entre todos. Ele pondera, contudo, que este órgão deve seguir princípios estabelecidos a partir de um amplo debate com os diversos setores da sociedade. “É importante que o órgão regulador seja coletivo, com a representação de muitos setores de diferentes partes, e que haja um processo de diálogo com a sociedade para a aplicação e implementação da regulação”, explica.
Democratização
Nesse sentido, Rosane Bertotti, coordenadora-geral do FNDC, afirma que a Lei de Meios é um exemplo para os países que ainda não possuem uma regulação específica para o setor, como o Brasil. “Ela é fruto de um processo de debate e construção política pública feitos com o povo argentino”, descreve.
A mesma opinião é compartilhada por Pedro Eckman, do Coletivo Intervozes. Segundo ele, a lei tornou-se uma referência internacional, pois “diminui a concentração de meios e aumenta a pluralidade e diversidade de pontos de vista, atores e falas, o que reforça a questão da liberdade de expressão”.
No caso do Brasil, Eckman conta que a concentração midiática por alguns grupos específicos impede a consolidação da democracia no país, já que por meio de seus veículos influenciam a opinião de grande parte da população. “A democracia, em seu sentido mais amplo, não vai se consolidar no Brasil enquanto a gente não conseguir democratizar a comunicação, porque ela é parte constituinte da cultura da sociedade”, afirma.
Por isso, de acordo com a deputada federal Luciana Santos (PCdoB), o debate pela regulação das concessões públicas de frequências audiovisuais no país é estratégico e deve ser ampliado. “É importante enfatizar o papel da comunicação enquanto direito básico de qualquer cidadão, que repercute diretamente no seu modo de agir, de pensar e de se relacionar culturalmente”, analisa.
O relator da ONU, durante sua passagem pelo país, ouviu diversos relatos de violação da liberdade de expressão e de dificuldades de setores da sociedade brasileira de terem acesso aos meios de difusão de informação. Ele disse esperar um convite oficial para que possa retornar ao Brasil para investigar os casos e produzir um informe com recomendações ao governo brasileiro.