Leia a Carta de Porto Velho resultado da III Conferência da Amazônia.

Diversidade sim, Desigualdade não

Este documento será encaminhado a entidades e instituições públicas e privadas de todos os Estados da Amazônia, além do governo federal. A expectativa é que os debates, idéias, críticas e sugestões que aconteceram durante o evento balizem as discussões sobre a Região Norte no Congresso Nacional.

As organizações da Sociedade Civil realizaram nos dias 2, 3 e 4 de abril de 2004, em Porto Velho, a III Conferência da Amazônia. O Movimento Articulado das Mulheres da Amazônia, as Fetag’s, a Central Única dos Trabalhadores, o Conselho Nacional dos Seringueiros, o Grupo de Trabalho Amazônico, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira e a Fundação Perseu Abramo mobilizaram mais de 600 militantes, estudiosos, pesquisadores e lideranças de toda a região para esta III Conferência. Ampliou-se assim o espaço construído em Belém e Macapá, a partir do ano 2000.

O Governo Federal e os governos estaduais acolheram ao chamado dos movimentos sociais. Enviaram a Porto Velho cinco Ministros de Estado, dirigentes de empresas públicas e agências de desenvolvimento. Estiveram presentes três governadores de Estado, parlamentares municipais, estaduais e federais de diferentes partidos.

O estado brasileiro, historicamente autoritário e oligárquico oferece, hoje, uma inédita demonstração de espírito republicano ao reconhecer a legitimidade dos movimentos sociais como interlocutores na busca de alternativas de desenvolvimento sustentável e socialmente justo e do espaço democrático e plural da III Conferência da Amazônia como um lugar privilegiado dessa busca.

Neste novo papel da Conferência da Amazônia, nos reunimos não como meros representantes do governo, nem como exclusivos representantes da sociedade, mas como militantes do mesmo PROJETO de transformação social e ambiental. Conscientes de que somente a união uns e outros, mesmo com papéis estratégicos diferentes, é a única possibilidade de somarmos forças na direção das grandes transformações que a Amazônia e o Brasil precisam que sejam feitas.

A magnitude de nossas responsabilidades – Estado e Sociedade – é a da dimensão de um processo de globalização complexo que, se de um lado caminha rumo à integração e à interdependência planetária no contexto de disputas em que a correlação de força é desigual, de outro exige a afirmação de projetos que reafirmem as identidades nacionais sob pena de diluir-se e submeter-se na cultura, na economia e na política.

Neste contexto, é que mais uma vez chamamos a atenção dos governantes, lideranças e da sociedade em geral para a importância do “lugar da Amazônia” no nosso Projeto Nacional. Com mais de 50% do território brasileiro, centro de grandes interesses mundiais e celeiro de grandes potencialidades, a região pode cumprir papel relevante tanto na estratégia de desenvolvimento econômico e social do Brasil quanto na conquista de sua plena Soberania.

A condição preliminar para a compreensão de tais potencialidades é a percepção de que suas peculiaridades não são obstáculos, mas caminhos para torna-la efetiva no desenvolvimento nacional. Para isso, cumpre firmar a idéia: “Diversidade sim, Desigualdade não”.

É preciso fazer com que as políticas públicas sejam regionalizadas, que considerem a realidade das tantas amazônias em que habitamos, vivemos e amamos. É necessário que elas se somem à riqueza cultural, aumentem a viabilidade dos projetos e façam com que a democracia se aprofunde em qualidade, porque é da diversidade biológica, étnica, racial e sócio-cultural que decorre a sustentabilidade do desenvolvimento nacional, político, econômico e social.

É preciso compreender que aquilo que muitas vezes é visto como “atraso”, precisa ser percebido, em toda a sua extensão, como grande oportunidade de construirmos o novo. É preciso que se deixe claro que o espaço amazônico é vasto mas não é “vazio”. Não se pode ler a Amazônia apenas a partir dos indicadores de densidade demográfica, porque eles não contém o jeito como ocupamos a região a partir de sua história e de suas culturas. É necessário superar preconceitos.

Destacamos que os maiores preconceitos giram em torno da questão indígena: a idéia equivocada de que as demarcações envolvem “muita terra para pouco índio” não se sustenta porque o índio não é proprietário da terra, a terra continua da sociedade, apenas seu uso é diferente do que a maioria concebe. Da mesma forma, a idéia de que o índio na fronteira representa ameaça não faz justiça com a história, já que muito antes do Estado, lá estavam os indígenas mantendo a integridade do território. E, como brasileiros, os povos indígenas querem participar do projeto de desenvolvimento nacional, com contribuições importantes na importantes na afirmação da diversidade cultural, no turismo e ecoturismo, no artesanato, na produção agroflorestal e como parceiros no desenvolvimento do conhecimento científico, entre outras possibilidades.

A construção do PAS (Plano Amazônia Sustentável) como referência para convergências imediatas tanto entre governo e sociedade, quanto entre as diversas iniciativas dos ministérios e dos diferentes níveis de governo, precisa ser trabalhada no dia-a-dia como tarefa estratégica para que se alcance a otimização dos resultados que desejamos: o novo modelo de desenvolvimento que agora estamos trabalhando. É fundamental que o PAS também se coloque como referência para a revisão do PPA (Plano Plurianual 2004-2007) reorientando e reequacionando os grandes investimentos públicos e privados que se processarão na região.

São os seguintes os desafios que pontuamos como prioritários

– Os investimentos em infraestrutura precisam ser precedidos de Ordenamento Territorial e Plano de uso econômico diversificado, que distribua oportunidades e internalize riqueza no âmbito das comunidades locais.

– Combate prévio aos impactos nagativos: coibindo a grilagem, a violência no campo (principalmente com a regularização fundiária), o desmatamento, as monoculturas e a concentração de terra e renda.
– Articular estratégias de Desenvolvimento Local, através de Arranjos Produtivos econômico-sociais que organizem a sociedade local tanto para a melhoria do abastecimento, da eletrificação, do Zoneamento Ecológico-Econômico (com ênfase no ordenamento e regularização das Unidades de Conservação) quanto do saneamento, da educação, da saúde e da segurança pública.
– Estabelecer um peso regional que compense a demografia como critério dos investimentos públicos, principalmente os de saúde, educação e proteção ambiental – inclusive na distribuição do FPE (Fundo de Participação dos Estados), como incentivo às iniciativas que somem para a sustentabilidade do desenvolvimento.
– A questão urbana merece prioridade. Como traduzir o avanço dos conceitos da sustentabilidade a partir do rural para as cidades, sem separar campo e cidade? Como criar estratégias de integração entre a Produção Familiar Rural e a Economia Popular e Solidária que pulsa vigorosamente nos centros urbanos da Amazônia?
– O resgate do Planejamento Estratégico Regional como mecanismo participativo, técnico e político que estabeleça critérios concretos para a convergência de políticas públicas e dos investimentos privados é fundamental. A criação da Nova SUDAM, consolida esta perspectiva.
– O novo papel da SUFRAMA e do BASA, em complementaridade com o BNDES, o BB e a CEF, deve estabelecer um perfil de financiamento do desenvolvimento na Amazônia que oportunize investimentos em infraestrutura pública e esteja acessível a todos os segmentos econômicos, inclusive à Produção Familiar Rural e a Economia Popular Urbana, antes excluídas.
– A Reforma Agrária “Amazônica” através de assentamentos florestais, flonas e demais Unidades de Conservação, apoio à exploração agroflorestal de assentamentos tradicionais – para recuperação de área já devastadas – com o apoio de instrumentos como o Proambiente, precisa se estabelecer como referência unitária para o conjunto das iniciativas do governo federal na região.
– O incentivo à Ciência e Tecnologia é incontornável para fazer da biodiversidade riqueza efetiva e viva que flua nos processos de estruturação econômica e sócio-cultural sustentável desde as comunidades até às plantas industriais de envergadura.
– Quanto às grandes intervenções que se colocam no curto e médio prazos, destacamos a necessidade histórica e urgente da homologação em área contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Da mesma forma, o projeto de desenvolvimento sustentável em torno da BR 163 deve garantir o equilíbrio entre os investimentos específicos de infraestrutura e os investimentos sócio-ambientais. Quanto às Hidrelétricas de Belo Monte, Sto Antônio e Jirau(Complexo do Madeira), Gasoduto de Urucu e às Hidrovias, é preciso acelerar o processo de diálogo envolvendo o conjunto de setores interessados para que em torno de dados e proposições concretas se tomem decisões fundamentadas e adequadas aos anseios das comunidades amazônicas.
– Por fim, destacamos que, tão importante quanto, e compondo, as políticas estruturantes do novo modelo de desenvolvimento econômico e sócio-ambiental, está o Fome Zero, o Primeiro Emprego, a Bolsa Família, Moradia, Saneamento, Educação, Saúde, Crédito Popular e Assistência Técnica. Sem estas iniciativas em estratégica articulação com as comunidades e municípios, tanto pela participação quanto pelo controle social, necessários para evitar desvios, o desenvolvimento não se completa como dimensão concreta da melhoria da qualidade de vida da maioria do povo.

Porto Velho, 4 de abril de 2004
Fundação Perseu Abramo, GTA, CNS, MAMA, COIAB, Fetag’s, CUT

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