A grande mídia e o golpe de 64
No debate contemporâneo sobre a relação entre história e memória, argumenta-se com propriedade que a história não só é construída pela ação de seres humanos em situações específicas como também por aqueles que escrevem sobre essas ações e dão significado a elas. Sabemos bem disso no Brasil.
No debate contemporâneo sobre a relação entre história e memória, argumenta-se com propriedade que a história não só é construída pela ação de seres humanos em situações específicas como também por aqueles que escrevem sobre essas ações e dão significado a elas. Sabemos bem disso no Brasil.
Ao se aproximar os 45 anos do 1º de abril de 1964 e diante de tentativas recentes de revisar a história da ditadura e reconstruir o seu significado através, inclusive, da criação de um vocabulário novo, é necessário relembrar o papel – para alguns, decisivo – que a grande mídia desempenhou na preparação e sustentação do golpe militar.
Referência clássica
A participação ativa dos grandes grupos de mídia na derrubada do presidente João Goulart é fato histórico fartamente documentado. Creio que a referência clássica continua sendo a tese de doutorado de René A. Dreifuss (infelizmente, já falecido), defendida no Institute of Latin American Studies da University of Glasgow, na Escócia, em 1980 e publicada pela Editora Vozes sob o título 1964: A Conquista do Estado (7ª edição, 2008).
Através das centenas de páginas do livro de Dreifuss o leitor interessado poderá conhecer quem foram os conspiradores e reconstruir detalhadamente suas atividades, articuladas e coordenadas por duas instituições, fartamente financiadas por interesses empresariais nacionais e estrangeiros (“o bloco multinacional e associado”): o IBAD, Instituto Brasileiro de Ação Democrática e o IPES, Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais.
No que se refere especificamente ao papel dos grupos de mídia, sobressai a ação do GOP, Grupo de Opinião Pública ligado ao IPES e constituído por importantes jornalistas e publicitários. O capítulo VI sobre “a campanha ideológica”, traz ampla lista de livros, folhetos e panfletos publicados pelo IPES e uma relação de jornalistas e colunistas a serviço do golpe em diferentes jornais de todo o país. Além disso, Dreyfuss afirma (p. 233):
O IPES conseguiu estabelecer um sincronizado assalto à opinião pública. Através de seu relacionamento especial com os mais importantes jornais, rádios e televisões nacionais, como: os Diários Associados, a Folha de S. Paulo, o Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde (…) que também possuía a prestigiosa Rádio Eldorado de São Paulo. Entre os demais participantes da campanha incluíam-se (…) a TV Record e a TV Paulista (…), o Correio do Povo (RS), O Globo, das Organizações Globo (…) que também detinha o controle da influente Rádio Globo de alcance nacional. (…) Outros jornais do país se puseram a serviço do IPES. (…) A Tribuna da Imprensa (Rio), as Notícias Populares (SP).
Vale lembrar às gerações mais novas que o poder relativo dos Diários Associados no início dos anos 60 era certamente muito maior do que o das Organizações Globo neste início de século XXI. O principal biógrafo de Assis Chateaubriand afirma que ele foi “infinitamente mais forte do que Roberto Marinho” e “construiu o maior império de comunicação que este continente já viu”.
A visão do USIA
Há outro estudo, menos conhecido, que merece ser mencionado. Trata-se de pesquisa realizada por Jonathan Lane, Ph. D. em Comunicação por Stanford, ex-funcionário da USIA, United States Information Agency no Brasil, publicado originalmente no Journalism Quarterly, (hoje Journalism & Mass Communication Quarterly), em 1967, e depois no Boletim n. 11 do Departamento de Jornalismo da Bloch Editores, em 1968, (à época, editado por Muniz Sodré) sob o título “Função dos Meios de Comunicação de Massas na Crise Brasileira de 1964”.
Lane enfatiza a liberdade de imprensa existente no país e a pressão exercida pelo governo sobre os meios de comunicação utilizando os recursos a seu dispor (empréstimos, licenças para importação de equipamentos, publicidade, concessões de radiodifusão e “recursos de partidos comunistas”). A grande mídia, no entanto, resiste, até porque “o governo não é a única fonte de subsídio com que contam os jornais. Existem outras, interesses conservadores, econômicos e políticos que controlam bancos ou dispõem de outros capitais para influenciar os jornais” (p. 7).
O autor, curiosamente, não menciona o IBAD ou o IPES e conclui que as ações do governo João Goulart e da “esquerda” retratadas nos meios de comunicação provocaram um “desgaste da antiga ordem baseada na hierarquia e na disciplina” que se tornou “psicologicamente insuportável” para os chefes militares e para a elite política, levando, então, ao golpe.
O artigo de Lane, no entanto, traz um importante conjunto de informações para se identificar a atuação da grande mídia. Tomando como exemplo a cidade do Rio de Janeiro – “o centro de comunicações mais importante” – afirma:
“Apesar das armas à disposição do governo, Goulart passou um mau bocado com a maior parte da imprensa. A maioria dos proprietários e diretores dos jornais mais importantes são homens (e mulheres) de linhagem e posição social, que freqüentam os altos círculos sociais de uma sociedade razoavelmente estratificada. Suas idéias são classicamente liberais e não marxistas, e seus interesses conservadores e não revolucionários” (p. 7).
No que se refere aos jornais, Lane chama atenção para a existência dos “revolucionários”, de circulação reduzida, como Novos Rumos, Semanário e Classe Operária (comunistas) e Panfleto (Brizolista). O mais importante jornal de “propaganda esquerdista” era Última Hora, “porta-voz do nacionalismo-esquerdista desde o tempo de Vargas”. Já “no centro, algumas apoiando Jango, outras censurando-o, estavam os influentes Diário de Notícias e Correio da Manhã”. E continua:
“Enfileirados contra (Jango) razoavelmente e com razoável (sic) constância, encontravam-se O Jornal, principal órgão da grande rede de publicações dos Diários Associados; O Globo, jornal de maior circulação da cidade; e o Jornal do Brasil, jornal influente que se manteve neutro por algum tempo, porém opondo forte resistência a Goulart mais para o fim. A Tribuna da Imprensa, ligada ao principal inimigo político de Goulart, o governador Carlos Lacerda, da Guanabara (na verdade, a cidade do Rio de Janeiro), igualmente se opunha ferrenhamente a Goulart” (pp. 7-8).
Quanto ao rádio e à televisão, Lane explica:
“Cerca de metade das estações de televisão do país são de propriedade da cadeia dos Diários Associados, que também possui muitas emissoras radiofônicas e jornais em várias cidades. (…) Os meios de comunicação dos Diários Associados, inclusive rádio e tevê, empenharam-se numa campanha coordenada contra a agitação esquerdista, embora não contra Goulart pessoalmente, nos últimos meses que antecederam ao golpe” (p. 8).
Participação ativa
A pequena descrição aqui esboçada de dois estudos que partem de perspectivas teóricas e analíticas radicalmente distintas não deixa qualquer dúvida sobre o ativo envolvimento da grande mídia na conspiração golpista de 1964.
A relação posterior com o regime militar, sobretudo a partir da vigência da censura prévia iniciada com o AI-5, ao final de 1968, é outra história. Recomendo os estudos de Beatriz Kushnir, “Cães de Guarda – Jornalistas e censores do AI-5 à Constituição de 1988” (Boitempo, 2004) e de Bernardo Kucinski, “Jornalistas e Revolucionários nos tempos da imprensa alternativa” (EDUSP, 2ª. edição 2003).
As Organizações Globo merecem, certamente, um capítulo especial. Elio Gaspari refere-se ao “mais poderoso conglomerado de comunicações do país” como “aliado e defensor do regime” (Ditadura Escancarada, Cia. das Letras, 2004; p. 452).
Em defesa da democracia
Não são poucos os atores envolvidos no golpe de 1964 – ou seus herdeiros – que continuam vivos e ativos. A grande mídia brasileira, apesar de muitas e importantes mudanças, continua basicamente controlada pelos mesmos grupos familiares, políticos e empresariais.
O mundo mudou, o país mudou. Algumas instituições, no entanto, continuam presas ao seu passado. Não nos deve surpreender, portanto, que eventualmente transpareçam suas verdadeiras posições e compromissos, expressos em editoriais, notas ou, pior do que isso, disfarçados na cobertura jornalística cotidiana.
Tudo, é claro, sempre feito “em nome e em defesa da democracia”.
Por todas essas razões, lembrar e discutir o papel da grande mídia na preparação e sustentação do golpe de 1964 é um dever de todos nós.
*Venício A. de Lima é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília. É colunista da revista Teoria e Debate e autor/organizador de A mídia nas eleições de 2006 e Mídia: Teoria e Política (publicados pela EFPA).
Mais:
– Conheça o livro A mídia nas eleições de 2006
– Conheça o livro Mídia: Teoria e Política