A dramaturgia e a esquerda brasileira perdem Gianfrancesco Guarnieri, que faleceu no sábado, dia 22 de julho, em São Paulo, onde se encontrava internado para tratamento de uma insuficiência renal crônica. Leia homenagem de Hamilton Pereira, o poeta Pedro Tierra.

A dramaturgia e a esquerda brasileira perdem Gianfrancesco Guarnieri, que faleceu no sábado, dia 22 de julho, em São Paulo, onde se encontrava internado para tratamento de uma insuficiência renal crônica.

Clique aqui para ler texto de Gianfranceso Guarnieri e Vanya Sant’Anna na página especial de 20 anos de anistia.

Leia abaixo homenagem de Hamilton Pereira, o poeta Pedro Tierra*.

“Se a mão livre do negro
Tocar na argila
O que é que vai nascer?”
(Arena Conta Zumbi) Edu Lobo
e Guarnieri.

Há certos momentos na vida das nações em que a criação artística consegue estabelecer uma fina e profunda sintonia com aspirações de amplas camadas sociais. Então a obra de arte se constitui numa referência de valor não apenas no sentido político imediato, mas vai além e toca nas formas de comportamento individuais ou comove impulsos coletivos silenciados em sociedades fechadas pela repressão cultural ou religiosa ou pela força bruta, como ocorreu no Brasil da ditadura militar.

Alguns artistas são (es)colhidos, pela fortuna, nesses momentos, para produzir com sua obra aquela sintonia entre a representação estética do mundo materializada na arte e a mais básica e irrecusável das aspirações humanas: a liberdade. Gianfrancesco Guarnieri foi um deles. Ao introduzir o quotidiano da vida dos trabalhadores no palco brasileiro, com “Eles não usam black-tie”, ainda em 1958, Guarnieri contribuiu para uma importante renovação do teatro, aproximando-o de outras expressões artísticas – como a música – que buscavam abrir espaço para dizer de maneira direta “a realidade do nosso povo”. Naquele momento diferentes gerações de artistas se empenhavam na “busca do povo brasileiro”, para servir-me da expressão feliz que dá título ao livro de Marcelo Ridenti sobre o movimento cultural que agitou o país, “do CPC à era da TV”. Guarnieri estava escolhendo um lado e seria fiel a ele ao longo de sua vida. Em outras palavras, construía para si uma ética que vinculava de maneira indissolúvel, sua arte e seu compromisso com as lutas do nosso povo. Quantos de nós nos tornamos militantes de esquerda naqueles anos, educados pelo romance, pelo poema, pela música, pela peça de teatro ou pelo filme que lemos, ouvimos ou assistimos?

Durante os primeiros anos da Ditadura Militar, o teatro, ao lado da música foi, sem dúvida, a expressão cultural de maior incidência na disputa de idéias e valores entre a esquerda derrotada e a direita fardada, triunfante. Talvez por isso tenha sido tão perseguido pela censura ou agredido pelos esbirros do CCC. Naquele período Guarnieri recorreu a uma fórmula tão singela quanto eficaz de manifestar o inconformismo de amplos setores sociais contra a opressão que se abatia sobre nós. “Arena Conta Zumbi” recupera uma antiga tradição das culturas ágrafas de “contar a história” contando-a com os recursos poderosos da poesia oral e cantando-a, quando introduz a música como o elemento que “desarma o espectador” para receber o novo, o diferente, o que se insurge contra a ordem opressora e então produz indignação, conscientiza, para usar uma expressão ao gosto da época, em uma palavra: comove. Ou seja, induz à ação. Aquele espetáculo não só obteve um impacto relevante no sudeste do país, mas, por sua estrutura extremamente simples e de baixo custo, reproduziu-se espontaneamente pela ação de grupos de teatro estudantil nas mais diferentes regiões do Brasil. Ainda estávamos distantes do que seria o controle e a padronização da indústria cultural. Alimentou, assim, uma percepção rebelde e crítica da realidade brasileira, desde uma perspectiva de esquerda.

Ainda dentro da noite – “a noite não bela, a noite treva” – sob o impacto da morte de Vladimir Herzog, Guarnieri escreveu “Ponto de Partida” como nos relata em seu comovente testemunho sobre Vlado oferecido à Fundação Perseu Abramo por ocasião dos 25 anos do assassinato “motivado não só pela dor e indignação mas, particularmente, pela urgência de alardear o que se passava conosco, com nosso país e com os melhores de nossa sofrida gente. Amordaçados pela censura, éramos obrigados a descobrir caminhos que nos permitissem a expressão sem colocar em perigo a obra e a nós mesmos. Impedidos de escrever sobre a realidade presente classifiquei a peça como uma “fábula” na acepção de narração de coisas imaginárias, ficção. Afirmei ter me inspirado numa lenda medieval“. Aqui, como sempre, encontramos em Guarnieri as duas dimensões do artista e do cidadão que diante de um homem morto não permanece indiferente. “A morte de um amigo é a de todos nós. Sobretudo quando é o Velho que assassina o Novo.”

Essa última frase me trouxe à memória um encontro com Guarnieri, durante a campanha pela Anistia. Reunimos em Sorocaba, em 1978, um grupo de militantes para homenagear o estudante Alexandre Vannucchi Leme, assassinado pela ditadura cinco anos antes, talvez aquele que, antes de Herzog, tenha mobilizado pela brutalidade de sua morte a mais importante mobilização da sociedade brasileira contra o regime criminoso que se impunha então de forma absoluta. Conversamos no porão da casa dos pais de Alexandre, sobre Arena conta Zumbi e o projeto que me ocupava então: a Missa dos Quilombos, em parceria com Pedro Casaldáliga e Milton Nascimento. E Guarnieri refletia sobre o quanto o novo – leia-se Palmares – carrega dentro de si do velho – leia-se a sociedade colonial – da qual era a negação.

Guarnieri viveu a felicidade de ver sua criação “Eles não usam black-tie” para o teatro servir-se de outro suporte – mais ágil, mais dinâmico e de maior alcance – o cinema, pelas mãos de Leon Hirzmann, num momento novo quando despertava o vigoroso impulso do movimento operário, no ABC, quando chorávamos a morte de Santo Dias, mas emergíamos como portadores de grandes esperanças, de novas utopias. O reencontro da criação artística com a realidade do povo contribui para produzir uma nova consciência sobre uma relação opressiva que se alterara na forma, mas não essencialmente, no conteúdo. Gianfrancesco Guarnieri dá com isso um testemunho da solidez das raízes da opressão aos trabalhadores, neste país. Da vigência de sua obra e do compromisso dela com as lutas dos movimentos sociais por um país democrático, socialmente justo, ambientalmente sustentável e soberano diante das demais nações do mundo. Mas, sobretudo dá testemunho de que sem novos valores culturais não se constrói uma sociedade nova, democrática e socialista. Gianfrancesco Guarnieri, o Brasil deve a este homem uma parcela importante dos sonhos que nos animaram a lutar contra a ditadura militar e a construir – como os povos dos Palmares, cantados em Arena conta Zumbi – um país que acolha todos os seus filhos.


*Hamilton Pereira (Pedro Tierra)
é Presidente da Fundação Perseu Abramo e Secretário Executivo da área de Cultura do Programa de Governo.

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