“O desemprego que ocorre em qualquer país é resultado de um crescimento medíocre e de um investimento também medíocre.”

Mercado de trabalho vive pior momento da história*

Por Vitor Nuzzi

Além de não adotar uma política de crescimento econômico para abrir postos de trabalho, o governo tenta fazer com que o desempregado se culpe pela sua própria situação. A avaliação é de Jorge Mattoso, professor do Instituto de Economia da Unicamp. Ele acaba de lançar o livro O Brasil Desempregado, publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo, no qual expõe os motivos que levaram à eliminação de mais de 3 milhões de empregos nos anos 90. Para Mattoso, o mercado de trabalho do País vive o pior momento de sua história, com riscos inclusive à democracia.

Diário O desemprego é um dos assuntos mais discutidos ultimamente…
Mattoso:
Eu só antes faria uma complementação, pela gravidade da situação. A situação do mercado de trabalho no Brasil hoje possivelmente é a mais grave por que já passamos na nossa história. Estranhamente, não é só o desemprego que afeta o mercado. Talvez seja a ponta do iceberg. Temos hoje um nível de precarização das condições de trabalho, de informalização, absolutamente inaudito. Se nós podemos imaginar que temos nas grandes cidades um em cada cinco Desempregado, temos também dois em cada cinco na informalidade. A situação é socialmente, pessoalmente e economicamente grave. Porque termina por afetar toda a sociedade, inclusive a questão da Previdência.

DIÁRIO São pessoas que poderiam estar contribuindo…
Mattoso:
Temos 18,3 milhões de assalariados contribuindo, mais cerca de 7 milhões como trabalhador independente, num universo de 160 milhões de habitantes e 70 milhões da População Economicamente Ativa. Está aí a causa do déficit da Previdência.

DIÁRIO- Essas duas pessoas na informalidade tinham carteira assinada?
Mattoso
: Durante todo o pós-guerra, o Brasil foi crescendo o seu grau de assalariamento. Na década de 90, ele passa a se reduzir, pela primeira vez na história. Hoje temos menos de 50% como assalariados. O resto é essa plêiade de conta própria, trabalho informal, pequenos bicos, um conjunto de mecanismos que não podem ser identificados como uma coisa positiva.

DIÁRIO O governo fala que o fenômeno não é exclusivamente brasileiro.
Mattoso
: O Brasil é vítima das opções que fez. De uma abertura comercial indiscriminada, uma abertura financeira absurda, de juros muitos elevados e de uma sobrevalorização do real que durou cerca de cinco anos. São essas as causas do desemprego. Responsabilizar o mundo é uma forma muito marota de esconder as suas responsabilidades. Nos Estados Unidos ele é elevado? No Japão, apesar de uma crise de uma década, estão em torno de 5%. A Europa vem reduzindo as taxas de desemprego há cerca de dois anos. O desemprego que ocorre em qualquer país é resultado de um crescimento medíocre e de um investimento também medíocre. Outros argumentos do governo são dizer que o desemprego é resultado da inovação tecnológica. Se é verdade que ela gera demandas diferenciadas, novas qualificações e reduz o trabalho diretamente envolvido, desde que não haja aumento da produção. Se uma empresa tem um aumento de produtividade de 4% mas tem um aumento de produção, não terá crescimento de desemprego. Veja o que ocorreu com o trabalho agrícola neste país durante 50 anos. Passamos de cerca de 80% da população no campo para menos de 25%, e essas pessoas foram incorporados no processo produtivo, inicialmente na construção civil, depois na indústria, e assim por diante. A tecnologia não pode ser responsabilizada. Outro elemento do governo é responsabilizar o próprio trabalhador.

DIÁRIO Por não ser qualificado?
Mattoso:
Essa também é uma forma marota, irresponsável, de colocar no desempregado a responsabilidade pelo seu desemprego. Aí é toda essa discussão sobre empregabilidade, formação profissional, levada por um mau caminho. Formação profissional e educação é um direito do cidadão, não é o mercado do trabalho que exige. Dizer que com algum tipo de reciclagem a pessoa vai dar conta de gerar emprego, isso não existe. Emprego é gerado por investimento público e privado. Formação melhora a qualificação e permite melhor disputar um espaço no mercado. Se não, vamos estar tratando do jogo das cadeiras. Nós estamos vivendo essa situação. As cadeiras se reduzem e cada vez mais aumenta o número de pessoas do lado de fora. Então, a pessoa qualificada pode perfeitamente encontrar o lugar na cadeira. Mas ela vai substituir alguém, e esse outro vai sobrar. Por isso que as empresas estão contentes, já tem ascensoristas que falam inglês, francês, choferes que se dirigem aos fregueses em outras línguas… Mas isso não significa uma melhoria do mercado, nem das condições educacionais do povo brasileiro.

DIÁRIO Mas também não há deslocamento de empregos de um setor para outro?
Mattoso
Sim, mas esse não é um fenômeno brasileiro, e nem de hoje. Assim como a agricultura foi reduzindo a sua participação, a indústria também vem reduzindo, e os serviços vem assumindo maior peso no conjunto da mão-de-obra empregada. Há uma modificação gradual da estrutura das ocupações. O problema todo é que a economia não cresce, no padrão necessário para incorporar as pessoas que ingresssam e as que são excluídas. A década de 90 apresenta o pior crescimento do século 20. A de 80 era considerada a década perdida, mas o crescimento da década de 80 é quase o dobro daquele verificado na de 90, que teve um crescimento entre 1,5% e 1,7%, dependendo do que ocorra em 1999. Ficamos amarrados numa economia que não cresce e só paga juros.

DIÁRIO Como explicar esse processo para quem perdeu o emprego?
Mattoso
: Muitas vezes há dificuldade de os trabalhadores entenderem que a diminuição dos postos de trabalho em determinados setores se por um lado tem como pano de fundo a questão da inovação, tem como razão real o fato que a economia não está crescendo e não permite incorporar essas pessoas em outras atividades. Isso é o mais difícil de explicar. O Brasil achou que esse processo de globalização financeira iria ser benéfico. O presidente da República chegou a dizer que nós vivíamos um novo Renascimento, que representava uma expansão da razão e da técnica… E a gente observa que existe uma hierarquia nesse processo, há regiões afastadas, como a África, e há países que abriram mão de seu processo estratégico nacional, como o Brasil.

DIÁRIOIndependentemente da política aplicada, não há um fator estrutural que tira empregos?

Mattoso: Mas sempre foi assim. A reestruturação produtiva não é de hoje. O fato novo hoje é que a economia não está crescendo. O fato de hoje não termos carroças, e por conseqüência condutores de carroças, não significa que não tenhamos muitos choferes de táxi, motoristas de ônibus e pilotos de aviões. O capitalismo não é só destruidor de empregos, mas também gerador. Os Estados Unidos têm inovação tecnológica e não têm desemprego, porque vêm crescendo desde 1984. O Brasil adotou uma política destruidora da produção, do emprego e da própria nacionalidade. Se isso continuar, coloca se em risco a própria democracia. Continuando nessa toada, a ruptura social é inevitável.

DIÁRIO Alguns especialistas também dizem que a legislação trabalhista é antiquada. Ao mesmo tempo, o governo adotou medidas como o contrato por prazo determinado e o chamado lay-off…

Mattoso: Iniciou-se um processo de mudança da legislação na Constituinte, que não se completou. A Fiesp, por exemplo, fez lobby com setores atrasados do movimento sindical a favor da preservação do imposto sindical. Agora, são os mesmos setores que fazem discurso contra. O que mudou? Basicamente, quando você está numa situação como a que estamos vivendo, de baixo crescimento, de elevado desemprego e de extraordinária precarização das relações de trabalho, a ausência de mecanismos de defesa dos trabalhadores e dos mais pobres por parte do Estado e da Justiça só elevam a pobreza e a desigualdade. Essas políticas do governo são somente para ampliar a precarização. O Brasil não tem problema de custo do trabalho, que é baixo.

DIÁRIO Neste momento, mexer no artigo 7ºda Constituição, que trata dos direitos sociais, para que o negociado prevaleça sobre o legislado, é um risco para o trabalhador?

Mattoso: É um risco, mesmo para os sindicatos mais organizados. Mesmo São Bernardo, que é quase um sindicato de Primeiro Mundo. Nas condições atuais, qualquer sindicato se encontra na defensiva. E não é um problema do dirigente. Você tem hoje um conjunto de pressão muito forte que vai contra o trabalhadores e reduz o seu poder de barganha.

DIÁRIO Essa informalização do mercado não deixa de ser uma tendência?
Mattoso: Uma tendência resultante dessa dinâmica medíocre da economia. Quando você pega os dados para o mundo desenvolvido, não reduziu o nível de assalariamento. Isso não implica que não tenha havido também o aumento do trabalho no tempo parcial, mas nas condições de trabalho assalariado. Não estamos transformando o Brasil no país só dos meninos de rua, mas dos velhinhos de rua.

DIÁRIO È muito difícil medir o tamanho do desemprego no Brasil?
Mattoso: Em qualquer país é difícil. Você tem situações que se assemelham ao desemprego, que tornam a pessoa desempregada. No Brasil, isso é extraordinário. Isso tem feito com que muitos países alterem os seus instrumentos de medição. Eu cito o caso do Bureau Labour Statistics, do governo norte-americano, que produz sete taxas diferentes. Por isso que você tem taxas diferenciadas, por exemplo, entre o IBGE e a pesquisa do Dieese e do Seade, que incorporam pessoas diferentes. Do ponto de vista do Brasil, não tenho dúvida de que a pesquisa da Fundação Seade e do Dieese é muito mais apropriada, porque incorpora aquelas pessoas que exerceram algum tipo de bico mas procuraram trabalho. A do IBGE é mais limitada metodologicamente.

DIÁRIO O senhor defende a adoção de medidas emergenciais ou assistencialistas? Para quem está desempregado, é difícil esperar que o país cresça.
Mattoso: Se o governo tivesse promovendo, por exemplo, frentes de trabalho.É óbvio que são necessárias políticas emergenciais, e no plano federal, sem nenhuma ilusão de que isso vai resolver o problema.

DIÁRIO Também não há um deslocamento de emprego para outros pólos?
Mattoso: Isso é um fato, sempre ocorreu. Você vai ter regiões que por razões variadas se desenvolvem mais intensamente. O que um Estado nacional tem de fazer é olhar essa mapa e distribuir os ganhos gerais. A guerra fiscal é o contrário disso que estou falando, com os Estados abrindo mão de rendas futuras em troca de tirar o empreguinho de outro lugar. Não tem nada a ver com desenvolvimento regional, faz parte do processo de desestruturação da nação. A Europa, quando decidiu formar a União Européia, sabia que era absolutamente indispensável elevar o padrão de vida e o desenvolvimento econômico dos países mais pobres, para impedir que a equalização se fizesse puxando dos ricos para baixo. Aqui, o BNDES e outras instituições, que deviam estar financiando capital nacional, ficam financiando parque temático, privatização e coisas do gênero. Foi um grande equívoco no Brasil pensar que se construiria uma nação a partir do consumo. Antes de mais nada, você precisa ter produtores.

Leia a resenha sobre este livro


* Entrevista publicada no Diário Popular 24/10/1999