A prefeitura pode ajudar a combater as desnutrição infantil atuando intersetorialmente e fazendo parceria com entidades da sociedade civil.
Autor: Marco Antonio de Almeida
Entrevistas: Carlos A. Avancini

A prefeitura pode ajudar a combater as desnutrição infantil atuando intersetorialmente e fazendo parceria com entidades da sociedade civil.
Autor: Marco Antonio de Almeida
Entrevistas: Carlos A. Avancini

O problema da desnutrição é decorrente de causas sociais amplas. Mas a fome e a desnutrição, especialmente a infantil, não podem esperar por mudanças estruturais no Estado e na sociedade brasileira. Elas têm que ser combatidas o quanto antes, pois prejudicam irremediavelmente a formação das crianças. A sociedade civil, através de entidades e movimentos, tem se organizado para desenvolver iniciativas que minimizam este problema.

No entanto, cabe ao poder público, em primeiro lugar, a responsabilidade pelo combate à fome. Sendo a prefeitura a instância de governo mais próxima da população, deve assumir a execução de políticas sociais como educação e saúde, envolvendo-se diretamente na luta contra a fome e a desnutrição. O poder público municipal pode potencializar seus recursos através de alternativas criativas e relativamente baratas. Alguns municípios já desenvolvem ações desse tipo.

EXPERIÊNCIA

No município de Campinas-SP (879 mil hab.), foi criado em 1994 um programa para combater a desnutrição infantil. A iniciativa foi essencial num momento em que a sociedade estava particularmente sensibilizada para essa questão. O primeiro passo do programa foi adaptar um procedimento já consagrado no campo da saúde pública: a notificação compulsória (NC). A NC desencadeia, a partir do diagnóstico de uma determinada doença, todos os procedimentos necessários pra controlar sua propagação e extingüi-la. É utilizada no controle de doenças como a meningite, o tétano e a poliomielite.

Através de um decreto municipal foi criado o Sistema de Vigilância Nutricional de Campinas, que incluía a desnutrição infantil entre os agravos à saúde de notificação compulsória no município. A aplicação desse mecanismo buscou identificar de forma rápida e ágil o quadro da desnutrição, movendo as ações necessárias para revertê-lo.

Desde o início o programa foi estruturado para enfrentar o desafio de combater a desnutrição infantil através de um modelo de intervenção que reunisse esforços dos diversos setores da administração. No caso de Campinas, isto só foi possível através da atuação das Secretarias de Ação Regional, as SARs. O município foi dividido em quatro regiões (Norte, Sul, Leste e Oeste), que correspondem a núcleos urbanos de até 300 mil habitantes. Cada um desses núcleos é gerido por uma SAR, que administra de forma descentralizada os serviços básicos para a população.

Dessa forma, as quatro SARs tornaram-se os pilares de uma abordagem intersetorial no combate ao problema da desnutrição, agregando as equipes das principais áreas envolvidas no programa: Saúde, Ação Social e Educação.

Foram enquadradas no programa as crianças que apresentavam o maior risco de vida ___ desnutridas graves ou moderadas, de 3 a 59 meses. Isto foi regulamentado através de um decreto complementar, que também estabeleceu os critérios de diagnóstico. O universo potencial do programa, a partir de dados do IBGE e da Fundação SEADE, foi calculado como sendo de 1.200 a 1.400 crianças. Esta quantidade equivaleria a aproximadamente 1,3% da população infantil de Campinas situada na faixa de idade selecionada pelo programa.

Cabe à área da saúde, como "porta de entrada" do programa, diagnosticar o problema através da rede de postos de saúde, emitindo a NC que deflagrará as ações previstas. As crianças são pesadas, examinadas e medicadas, e suas fichas são encaminhadas às SARs. O procedimento seguinte é a visita de uma assistente social da SAR às famílias das crianças, para fazer um diagnóstico de sua condição sócio-econômica e avaliar quais ações são mais adequadas para cada caso.

Entre as ações possíveis propostas pelo programa constam a preferência de vagas em creches municipais, a prioridade para inclusão das famílias no programa de "Renda Mínima" mantido pela prefeitura, a inserção em programas de alimentação alternativa (que inclui orientação sobre o manejo, preparo e aproveitamento de alimentos e estímulo ao aleitamento materno), encaminhamento de pais desempregados ao Balcão de Emprego. No início do programa também foram fornecidas cestas básicas ___ procedimento extinto com a criação do Programa de Renda Mínima. Para desenvolver atividades educativas com as mães e acompanhar o progresso das crianças são organizadas reuniões periódicas, geralmente nos próprios postos de saúde da prefeitura.

Parcerias com a sociedade civil somam esforços em algumas ações desenvolvidas pela prefeitura, através de trabalhos conjuntos com a Igreja Católica (Pastoral da Criança), entidades beneficentes, associações de moradores, etc., que por vezes também encaminham crianças suspeitas de desnutrição para os postos de saúde. No caso da Pastoral, houve um envolvimento importante no início do programa, com a inserção das mães em cursos e oficinas de alimentação alternativa realizados nas paróquias. Hoje a as próprias SARs desenvolvem este trabalho.

A Igreja também contribuiu, em alguns lugares, treinando grupos de idosos e hipertensos atendidos pelos postos de saúde municipais, que se incorporaram voluntariamente ao programa, passando a auxiliar no monitoramento das crianças notificadas em suas respectivas comunidades.

DIFICULDADES

Este tipo de programa pode encontrar dificuldades maiores ou menores. Na experiência de Campinas, a primeira dificuldade foi de ordem cultural, dizendo respeito diretamente ao diagnóstico da desnutrição: há uma resistência, por parte das mães, em perceber ou admitir que seu filho possa estar com esse tipo de problema. Uma estratégia possível para superar esta dificuldade é a de desencadear ações pedagógicas que permitam um "diagnóstico doméstico" da desnutrição, através da distribuição de cadernetas com gráficos e curvas de crescimento para que as próprias famílias acompanhem o desenvolvimento das crianças. A presença de um agente de saúde pertencente à comunidade também pode contribuir para quebrar essa resistência.

Uma segunda dificuldade foi o problema de monitoração das crianças desnutridas para o acompanhamento da evolução de seu quadro. As reuniões nos postos de saúde, envolvendo as equipes intersetoriais e as mães, é uma das formas de se enfrentar esse problema. O treinamento de monitores voluntários, juntamente com os agentes de saúde, pode preencher eventuais lacunas que as reuniões não têm como cobrir.

Uma terceira dificuldade detectada em campinas foi de ordem interna, na integração entre as equipes e no fluxo de comunicação. Em geral não há informações facilmente acessíveis nas prefeitura, porque faltam profissionais responsabilizados especificamente para organizá-las. Isso pode gerar atrasos no processamento e envio das notificações compulsórias de desnutrição nas unidade de saúde. Para superar estas dificuldades, o expediente de reuniões entre as equipes envolvidas no programa, pode ser uma solução, detectando os "nós" do processo, proporcionando um melhor conhecimento do programa para todos e delimitando claramente as responsabilidades de cada funcionário e o que ele necessita para cumprir seu papel.

Uma última dificuldade dizia respeito às pessoas que não se encaixavam nos critérios dos programas sociais da prefeitura (como programa de renda mínima, por exemplo), mas que necessitavam de subsídios para enfrentar suas precárias condições de vida. Estas famílias poderiam entrar em programas de complementação da quota alimentar, como distribuição de cestas básicas ou vales de alimentação. Em alguns bairros de Campinas esta lacuna tem sido coberta por entidades assistenciais, associações ligadas às diversas Igrejas, etc., que doam alimentos para a prefeitura repassar às famílias.

LIÇÕES

A cidade de Campinas possui características específicas que foram consideradas no planejamento de seu programa de combate à desnutrição infantil. No entanto, alguns dos pontos contidos nesse programa devem ser levados em conta por quaiquer prefeituras que queiram desencadear ações semelhantes:

a-) O programa não deve ter um caráter meramente assistencial ou paliativo: precisa contar, portanto, com ações que envolvem as diversas áreas da administração, atacando de fato as raízes do problema.

b-) As ações das diversas áreas devem ser integradas, o que pressupõem um bom planejamento, que considere as características do município e a criação de formas de comunicação e integração entre as equipes envolvidas.

c-) Os funcionários envolvidos precisam ser sensibilizados e conscientizados da importância do programa, bem como adequadamente preparados para o desempenho de suas funções.

d-) Os recursos devem ser potencializados. A soma das verbas dos programas sociais, de saúde e de educação, se bem dimensionada e aplicada, pode produzir melhores resultados do que a sua utilização pulverizada.

e-) Finalmente, o envolvimento da sociedade civil merece ser constantemente estimulado, buscando ampliar o patamar de sua participação nas parcerias com a prefeitura, para a obtenção de melhores resultados.

RESULTADOS

A experiência de Campinas é inovadora por seu caráter intersetorial. Por se tratar de um programa que busca potencializar e otimizar recursos humanos e infra-estrutura já existentes, não há uma dotação de verbas específica para ele.

Considerando apenas os casos registrados na rede de postos da prefeitura, foram atendidas, entre julho de 1994 e julho de 1995, de 50% a 60% do total estimado de crianças subnutridas da cidade (um total de 591 atendimentos). Numa amostra de 169 desses casos foram verificados o seguintes resultados: 38,46% das crianças melhoraram, 50,88% estabilizaram e 10,66% regrediram. O fato de metade das crianças ter mantido o mesmo quadro deve ser visto de uma maneira positiva: significa que sua tendência não é piorar e sim reagir à continuidade do tratamento.

Os critérios clássicos de alta (cura, morte, abandono e mudança de endereço), devem ser estudados e discutidos para definir se eles são os mesmos para a área de saúde e para a área social. A manutenção das famílias dentro de um programa de complementação da quota alimentar, por exemplo, pode ser importante mesmo após a criança ter atingido um padrão considerado bom, para não haver um retorno ao quadro de subnutrição.

Além dos resultados sociais, uma avaliação do programa deve considerar sua função "pedagógica interna", já que propicia, através da prestação de serviços aos cidadãos mais carentes, a oportunidade para o funcionalismo viver uma ação intersetorial na prática, através da integração com outras áreas da administração e com entidades da sociedade civil.

Outras ações podem ser pensadas e desencadeadas buscando aprimorar ainda mais o programa. Um trabalho de acompanhamento de gestantes, por exemplo, contribuiria para a eficácia do programa. A adoção de programas de complementação alimentar alternativa, como os já adotados por algumas prefeituras, como Rio Branco-AC e Apucarana-PR, ou pela Igreja, através da Pastoral da Criança, também poderiam somar esforços na busca de melhores resultados.


* Publicado originalmente como DICAS nº 55 em 1996