A parceria entre fazendeiros e bóias-frias, intermediada pela prefeitura, ajuda a gerar renda extra para os trabalhadores volantes e restaura as terras desgastadas pela pastagem.Autora: Veronika Paulics

A parceria entre fazendeiros e bóias-frias, intermediada pela prefeitura, ajuda a gerar renda extra para os trabalhadores volantes e restaura as terras desgastadas pela pastagem.Autora: Veronika Paulics
O êxodo rural decorrente da crescente concentração latifundiária e da mecanização da agricultura faz aumentar nas periferias das cidades os trabalhadores agrícolas volantes, mais conhecidos como bóias-frias. São famílias inteiras geralmente sem qualificação profissional e que só têm renda durante um período do ano.

Como a reforma agrária não é da alçada do município, as ações das prefeituras restringem-se, quase sempre, à distribuição de cestas básicas e remédios, inclusão destas famílias em programas habitacionais, e garantia de que crianças e jovens freqüentem a escola para que possam se qualificar e buscar emprego em outro setor. Estes paliativos muitas vezes acentuam as relações clientelistas e não resolvem o problema.

A prefeitura de Iguaraçu-PR (3.600 hab.) buscou uma solução inovadora com o Programa Terra Solidária, intermediando a relação entre fazendeiros, que teriam suas terras remanejadas, e trabalhadores volantes, que teriam uma renda extra com o plantio e a colheita de algodão.

IMPLANTAÇÃO

Em sua grande maioria, os habitantes de Iguaraçu são trabalhadores rurais volantes (bóias-frias). A concentração de terras nas mãos de um pequeno número de proprietários caracteriza o município desde o seu início. O ciclo do café trouxe riquezas e gerou empregos. Com a decadência do café nos anos 60 e 70, os trabalhadores foram aproveitados na cultura do algodão. O algodão foi sendo substituído pela soja, cuja cultura é mecanizada; pela criação pecuária extensiva, que ocupa pouca mão-de-obra; e, mais recentemente, pela cana, que oferece trabalho sazonal.

Além dos grandes proprietários e dos bóias-frias, há também os chamados pequenos produtores: são arrendatários, têm maquinário, e vivem da atividade agrícola. Também utilizam a mão-de-obra volante.

Nas grandes extensões de pasto a terra estava degradada, reduzindo o desempenho do rebanho bovino.

Diante deste quadro de fatores produtivos sub-utilizados, a prefeitura propôs aos fazendeiros do município cederem uma parte de suas terras para um projeto envolvendo os bóias-frias e os pequenos produtores. As terras desgastadas pela pastagem seriam remanejadas, a mata ciliar reconstituída. Ao mesmo tempo, com o plantio do algodão, o Programa qualificaria mão-de-obra agrícola e as famílias teriam uma renda além do trabalho como bóias-frias. Através de contrato de comodato, os proprietários cederiam a terra por um ano. Numa primeira etapa foram selecionadas 18 famílias que participariam do Programa e a prefeitura conseguiu o apoio dos pequenos produtores, que emprestariam seus equipamentos. Os critérios para escolha das famílias foram: morar no município, ter experiência de trabalho no campo e realmente necessitar deste apoio. O algodão foi escolhido por ser uma cultura que propicia o controle de ervas daninhas, devolve a fertilidade do solo via adubação residual, gera emprego por demandar muita mão-de-obra e por ser tradicional na região.

Após várias reuniões de discussão do projeto com os trabalhadores, o solo foi preparado com a ajuda dos técnicos da EMATER, e as cooperativas da região financiaram insumos e sementes a serem pagos na colheita. Depois de plantado o algodão, os lotes foram divididos entre as famílias, cabendo a cada uma 1,5 hectares. A partir disso, cada um cuidou de sua lavoura, sempre com acompanhamento de técnicos, que ensinaram a evitar pragas e a melhorar a produção. Quando a safra foi colhida, meio ano depois, cada família recebeu de acordo com o que colheu em seu lote, ressarcidos os custos que a prefeitura teve com sementes e insumos.

Segundo os coordenadores, os principais objetivos do Programa foram atingidos:

1. dar oportunidade de uma renda adicional às famílias de trabalhadores volantes (bóias-frias);
2. desenvolver no trabalhador volante a experiência de pequeno produtor que conduz sua lavoura com mão-de-obra familiar e de forma associativa, onde o trabalho mecanizado é feito coletivamente e o trabalho manual, individualmente;
3. profissionalizar os trabalhadores volantes de forma que estes possam conduzir uma lavoura de forma técnica;
4. viabilizar a cultura do algodão no município;
5. promover a reforma das pastagens do município, melhorando o desempenho do rebanho bovino.

RECURSOS

Na experiência de Iguaraçu, o custo do Programa é de R$ 1070,00/hectare (incluindo arrendamento, aluguel de máquinas para preparo de solo, compra de sementes e insumos e a mão-de-obra das famílias). Cada família trabalha em 1,5 hectares, o custo anual por família, portanto, é de R$ 1605,00. Este investimento é mais do que recuperado quando não há frustração de safra.

No primeiro ano do Programa, deduzidos os custos com arrendamento da terra e das máquinas, sementes e insumos, cada família recebeu, em média, R$ 1512,00. Já nas safras frustradas, por problemas climáticos, cada família recebeu apenas pelas diárias trabalhadas, em média, R$ 480,00.

O dono da terra recebe pelo arrendamento e a terra lhe é devolvida recuperada e o pasto e a mata ciliar replantados. Alguns proprietários de Iguaraçu abriram mão de receber pagamento pelo arrendamento.

Como a produção agrícola depende de fatores que não são previsíveis e o preço dos produtos varia muito, é fundamental a existência de um fundo rotativo para cobrir os custos. Existindo esse fundo, pode-se, inclusive, comprar insumos e sementes pelo preço à vista, adquirir trator e implementos suficientes para não depender dos equipamentos alugados ou emprestados (os produtores rurais normalmente cedem-nos quando já terminaram os seus próprios serviços, e isso pode prejudicar o plantio que precisa obedecer a prazos).

Os recursos iniciais e de aquisição de equipamentos vieram do Governo do Estado do Paraná e do Ministério da Agricultura.

O Programa Terra Solidária está previsto na Lei de Diretrizes Orçamentárias da prefeitura municipal de Iguaraçu-PR, estabelecendo as parcerias entre os proprietários de terras do município, a associação de pequenos produtores, as cooperativas da região e os trabalhadores volantes (bóias-frias).

DIFICULDADES

Uma das maiores dificuldades enfrentadas pelo Programa é a inexistência de um fundo rotativo que permita ao menos pagar as horas trabalhadas pelas famílias quando houver frustração de safra.

Além disso, o Programa ressente-se de uma legislação municipal tanto para garantir sua continuidade como também para integrá-lo a outros projetos e atividades da prefeitura como freqüência das crianças à escola, acompanhamento das mulheres pela equipe de saúde, erradicação do analfabetismo, instauração de novos hábitos alimentares, etc. Enquanto não há legislação ou incentivos fiscais para que os fazendeiros arrendem uma parte de suas propriedades para o Terra Solidária, fica cada vez mais difícil para a prefeitura concorrer com os preços pagos pelos produtores de cana e soja, que estão chegando na região.

Como o maior custo é no primeiro ano, quando se faz a recuperação e o manejo do solo, ficar com a terra por apenas um ano é muito caro. E como os acordos entre bóias-frias, proprietários e produtores que emprestam seus equipamentos têm sido informais, nada assegura a continuidade do Programa e a permanência por mais tempo no solo remanejado.

A existência de um Conselho Municipal que definisse critérios para escolha das famílias que devem ser incorporadas e o prazo máximo que cada uma pode permanecer no Programa, além de permitir maior transparência, facilitaria o processo de avaliação de resultados. Nos quatro anos de existência do Terra Solidária, de 72 famílias que foram atingidas, apenas cinco saíram para se tornar pequenos produtores, arrendando terra sem a intermediação da prefeitura.

Está prevista a constituição de uma cooperativa entre os trabalhadores volantes com orientação e respaldo da prefeitura, com a possibilidade, inclusive de comprar terras, e a abertura de uma escola rural para capacitar tecnicamente os trabalhadores e seus filhos. Mas estas metas ainda não foram atingidas pela exiguidade da equipe da prefeitura que acompanha o Programa.

Outra dificuldade encontrada é o transporte das famílias, que moram na cidade, até as áreas de cultivo, que em geral são distantes, nos horários e dias de folga, como sábados, domingos e feriados.

A falta de uma opção de cultura no inverno também dificulta o atendimento às famílias uma vez que nesta época do ano a demanda por mão-de-obra nas propriedades em torno do município é menor. Assim, apesar do Programa favorecer a renda extra na safra do verão, não garante trabalho no inverno e as famílias abandonam seus lares em busca de emprego principalmente na colheita de café em São Paulo e Minas Gerais, provocando o recrudescimento da evasão escolar e a desagregação familiar.

RESULTADOS

O Programa Terra Solidária é uma alternativa para que a prefeitura possa interferir no problema na concentração de terra sem ter que esperar pela reforma agrária, que é da alçada do governo federal.

Para o trabalhador volante, o resultado imediato e mais visível é, ao final da safra, poder pagar suas dívidas, comprar alimentos, roupas e, algumas vezes, geladeira, fogão, máquina de lavar roupa e construir sua casa. Isto permite melhorar a qualidade de vida das famílias atingidas pelo Programa e romper com o clientelismo.

Além disso, o trabalhador volante passa a ter noções de preparo de solo e técnicas de lavoura, conscientizando-se de sua força ao se juntar a outros. Os trabalhadores percebem também a possibilidade de uma renda extra ao usar a sua mão-de-obra e de sua família em plantações como o algodão, que não são mecanizados.

Com acompanhamento técnico, reuniões para organização e outras atividades necessárias para a operacionalização do Programa, formam-se cidadãos comprometidos com o bem comum, conscientes de seus direitos e qualificados profissionalmente.

O sucesso da continuidade do Programa, derivando em cooperativa ou outra forma de associação para a produção, ajuda a fixar o bóia-fria no município e, sem tantas viagens sazonais, as crianças e jovens podem estudar e desenvolver atividades que permitam uma melhor qualidade de vida.

Ajuda a fortalecer a parceria entre donos de terra, prefeitura, trabalhadores volantes e sociedade civil, mudando a forma de se encarar os trabalhadores volantes e fazendo todos se sentirem co-responsáveis por um problema que antes parecia ser um problema individual (a situação vivida pelos bóias-frias).

O Programa Terra Solidária foi uma das vinte experiências finalistas do ciclo de premiação 1997 do Programa Gestão Pública e Cidadania, iniciativa conjunta da Fundação Getúlio Vargas e da Fundação Ford.

RESULTADOS OBTIDOS PELO PROGRAMA TERRA SOLIDÁRIA

Safra 93/94

29,04 hectares

18 famílias beneficiadas

Safra 94/95

29,04 hectares

19 famílias beneficiadas

Safra 95/96

36,30 hectares

22 famílias beneficiadas

Safra 96/97

125,84 hectares

72 famílias beneficiadas

Fonte: Prefeitura Municipal de Iguaraçu


* Publicado originalmente como DICAS nº 110 em 1998

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