Entrevista a Isaías Dalle para o Observa BR

Como parte da série de entrevistas sobre o Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil, formulado originalmente pelos NAPP’s (Núcleos de Acompanhamento de Políticas Públicas), ligados ao PT e à Fundação Perseu Abramo, Clemente Ganz Lúcio fala das propostas emergenciais para geração de emprego e renda (acesse o Plano aqui).

Ex-diretor técnico do Dieese (Departamento Intersindical de Estudos Socioeconômicos) e integrante do NAPP Trabalho, Clemente acredita ser possível implementar parte das propostas ainda que o governo federal seja contrário a elas. Na opinião do sociólogo, o caminho para isso é a pressão sobre o Congresso Nacional, de onde, por exemplo, saíram projetos sem apoio do presidente e do ministro da Economia, como o auxílio emergencial de R$ 600 por nove meses. A prorrogação do auxílio, inclusive, é uma das propostas contidas no Plano. Ele fala ainda do caso Ford, recente capítulo no processo de destruição de empregos no país.

Clemente, a Ford anunciou que vai retirar sua produção do Brasil. É um exemplo de desindustrialização e de perda da capacidade de gerar emprego. A associação dos fabricantes e parte da mídia afirmam que a decisão se deve ao chamado custo Brasil. O que de fato explica a saída da Ford, na visão dos trabalhadores? E o fato de a empresa manter a produção na Argentina, por exemplo?

Já faz quase seis anos que a Ford não faz investimentos no Brasil. Já havia anunciado o fechamento da planta no ABC e agora anuncia o fechamento dessas outras no Brasil. E decidiu manter a planta que produz na Argentina. Isso em certa medida faz parte de um processo de reposicionamento da marca, veículo elétrico, investimentos que ela está fazendo em outras plantas. Isso decorre também do fato de que o Brasil não vem mantendo uma política estável de desenvolvimento industrial e produtivo. É mais ou menos o tempo desde o golpe que tira a presidenta Dilma. E uma mudança, evidente, na estratégia de negócios da empresa dentro do setor como um todo. Junto com a Ford, a Mercedes Benz recentemente anunciou o encerramento da produção de automóveis (no Brasil), a Audi anunciou o encerramento de sua produção no Paraná; ou seja, há claramente um reposicionamento da estrutura de produção automobilística brasileira que vai ao encontro de um processo de desindustrialização muito mais profundo.

Créditos: Michel Jesus/Agência Câmara

Há sim, muito provavelmente, um gargalo estrutural na estratégia de desenvolvimento da indústria no Brasil. Em parte, isso pode estar associado a uma organização administrativa do Estado mais complexa – não necessariamente o Brasil tem as melhores condições para o desenvolvimento produtivo. Isso não quer dizer que na Argentina seja mais fácil. A Ford recebeu milhões e milhões de incentivos fiscais ao longo desses anos todos. Da parte do governo há claramente uma falta de diálogo, no sentido de formular uma estratégia de médio e longo prazo, algo em torno de 10 a 20 anos, o que a Ford deve ter encontrado na Argentina. A saída da Ford está muito mais ligada à ausência de um projeto de desenvolvimento industrial, de uma estratégia de desenvolvimento produtivo. Não é só uma decisão pontual. E ao mesmo tempo as empresas estão se reorganizando no mundo todo, por isso o Brasil precisa desenvolver uma plataforma produtiva que dê segurança a essas empresas.

O que seria essa plataforma produtiva?

Requer alguns elementos estruturantes. Há uma base que é a infraestrutura econômica, o Brasil enunciar uma política de infraestrutura: portos, aeroportos, energia elétrica, transporte, comunicação, para que as empresas tenham segurança que vão poder produzir. Isso tudo precisa estar permanentemente atualizado. Junto a esses elementos, que o governo tem que apresentar, há a estrutura para que a produção possa ter encadeamento. No caso da indústria automotiva, por exemplo, recuperar a infraestrutura ligada ao fornecimento de insumos, máquinas e equipamentos, autopeças, logística para importação e exportação, para distribuição para os mercados interno e regional. Um conjunto de elementos. A outra parte é a de crédito para produção e para o consumidor. E o Estado fornecer uma arquitetura tributária e administrativa que facilite a operação das empresas. O Brasil tem uma estrutura tributária complexa que precisa ser simplificada. Isso não significa tributar menos, significa tributar de maneira mais racional. Essa é a base de uma estrutura produtiva. Associada a ela existe o conhecimento: formação de engenheiros, pesquisadores, inovação, tecnologia. Desenvolvimento da capacidade cognitiva transformada em tecnologia. Tecnologia que inove rumo à fronteira. No caso da Ford, é uma empresa que há aproximadamente dez anos não investia em inovação, apenas reproduzia os produtos. Desenvolver uma plataforma produtiva significa articular esses elementos, apresentar isso para a sociedade e para as empresas, e coordenar o processo. É dizer: o Brasil está preparado. E fazer isso de forma coordenada com as vocações do território. O Brasil, por exemplo, tem uma base material para a produção de fármacos.

Quando você fala de infraestrutura, isso me lembra que há setores que dizem: “por isso é que é preciso privatizar o máximo possível, porque a iniciativa privada vai dar conta de suprir essas carências”. Outra pergunta é sobre a estrutura tributária. Além de complexa, a estrutura tributária é elevada?

O Brasil tem uma carga tributária compatível com a de países de desenvolvimento médio. Essa carga é mal distribuída do ponto de vista da arrecadação e dos efeitos orçamentários. Nós tributamos muito o consumo e pouco a riqueza. Deveríamos ter uma estrutura que cada vez mais facilitasse a importação e exportação. Deveríamos tributar menos a produção e mais o rentismo. Uma estrutura mais próxima do que os países desenvolvidos têm: quem ganha mais, paga mais, quem ganha menos paga menos. Outro ponto é que nossa estrutura tributária é muito complicada, existem centenas de tributos. As empresas deveriam gastar menos tempo se organizando para atender as exigências tributárias. Isso é uma outra dimensão do problema. Se você pensar, fazer uma declaração de imposto de renda hoje é muito mais fácil do que era anos atrás. Foi sendo simplificado.

A estrutura tributária visa proporcionar capacidade para o Estado, aí sim, no caso da atividade produtiva, organizar a infraestrutura econômica. E é o Estado o articulador e o mobilizador dos investimentos em portos, aeroportos, estradas, energia elétrica, telecomunicações. Quem dá base para isso é o Estado, que pode fazer diretamente ou por intermédio de concessões ao setor privado. Mas nenhum país do mundo desloca sua estrutura produtiva e econômica para o setor privado. Lembremos agora do caso da energia elétrica no Estado do Amapá. Foi deslocada a produção de energia para o setor privado, que não fez os investimentos. O caos se estabelece naquela região e quem entra para corrigir o problema é o Estado. A empresa privada não fez os investimentos que haviam sido propostos. É diante dessas inseguranças que as empresas optam por ir para outros países mais seguros, que dão estabilidade aos investimentos. O Brasil está deixando de dar essas condições.

O Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil fala da importância da retomada da política de valorização do salário-mínimo, da extensão do auxílio emergencial, da criação do Mais Bolsa Família. Como implementar medidas como essas se o governo federal é contrário a elas? Qual a margem de manobra da oposição?

O Plano prevê retomada dos investimentos em infraestrutura em obras emergenciais e no consumo das famílias para gerar empregos rapidamente. Chegamos a identificar no Brasil 14 mil obras que deveriam ser retomadas. E do outro lado todos os investimentos para manutenção da renda, como o salário-mínimo, auxílio emergencial e outras medidas. Como fazer tudo isso se o governo federal não é o coordenador? Esse é o problema básico. Nós não teremos essas medidas implementadas de maneira plena se o governo não for o articulador. Acontecerá o mesmo que está acontecendo hoje com o enfrentamento da pandemia e o plano de vacinação. O Brasil tem um dos mais sofisticados programas nacionais de vacinação do mundo, e estamos jogando isso no lixo. O Brasil tem uma Ferrari para fazer vacina e está usando uma carroça. Os governos estaduais e municipais estão tentando suprir essa ausência do governo federal.
Acho que, no conjunto das propostas, a saída é continuar tentando aprovar, como feito no ano passado, parte delas no Congresso. Assim o foi o auxílio emergencial. Se a gente lembrar, na visão do Guedes, R$ 5 bilhões resolveriam o problema, e no final gastamos quase R$ 300 bi, quase 60 vezes mais com que o ministro da Economia estimava gastar com o auxílio emergencial. Fizemos isso com a ação dos parlamentares, dos partidos, das centrais sindicais e dos movimentos sociais no Congresso Nacional. Depois, aprovando a proteção aos salários. Se você se lembrar, o governo fez uma medida provisória que suspendia os contratos de trabalho sem pagamento de salário. Nós fomos pra cima e criamos um programa de proteção aos salários; o contrato era suspenso e entrava o Estado pagando parte do salário. E essas medidas que propomos no Plano – valorização do salário-mínimo, criação de empregos e outras – exigem uma articulação nacional. Não existindo essa articulação, os partidos têm um papel importante no Congresso Nacional. Não conseguiremos fazer todas porque exigem atuação do governo, mas temos que continuar insistindo, como hoje estamos praticamente obrigando o governo a fazer um plano de vacinação. Não será como deveria, mas já será alguma coisa. Na área de infraestrutura econômica, temos condições de fazer. As propostas podem criar milhões de empregos, e rapidamente. Se depender do governo, passaremos para a série B, a série C, a série D e acabaremos fora de qualquer competição econômica.

O Plano tem uma proposta muito importante para parcelas significativas da população, que é a renegociação de dívidas de famílias e de empresas. O que é possível fazer dentro desse cenário que você descreveu?

É bem difícil. Um plano de renegociação de dívidas das famílias e das empresas, especialmente as pequenas e médias, exige uma articulação forte do Estado, no caso o papel fundamental seria do Banco Central e do BNDES, da Caixa e do Banco do Brasil, para ajudar as pessoas a saírem das mãos dos agiotas e dos agiotas formalizados, que são os bancos. São juros de até 400% ao ano se você entra no cheque especial. Oferecer linhas de crédito mais baratas e alongamento de prazo para que as pessoas possam sair desses juros é fundamental para retomar as atividades, para consumo e produção. Isso pode ser feito por governos estaduais e prefeituras, em alguma medida, especialmente para os trabalhadores por conta própria, que muitas vezes estão endividados localmente. Mas os grandes instrumentos para uma ação massiva são do governo federal. Neste caso, o Congresso Nacional tem sim um poder forte de pressionar o governo. Temos que criar essas políticas no âmbito do Congresso e obrigar o governo e os bancos a implementar parte dessas políticas.

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